terça-feira, 3 de maio de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - PARTE 5



Parte 5


Aqui estou eu, sentada em minha sala de estar limpa e cheirosa sem saber o que fazer do resto do meu dia – ou da minha vida. Silêncio de uma manhã de sexta-feira. Meu pai foi enterrado ontem. Minha mãe morreu quando eu tinha sete anos. Nunca vejo meus avós. Minha mãe tinha sido amante de meu pai antes de se casar com ele. Fernanda, a ex-mulher de meu pai, se matou ao saber que minha mãe estava grávida de mim, o que, de certa forma, significa que eu tive alguma culpa nisso. Meu pai mentiu para mim a vida toda, dizendo que ele e mamãe eram um casal perfeito cujo amor transcendental superava a morte, enquanto escondia o fato de ter tido uma amante durante dois anos enquanto minha mãe estava doente.

Tenho 17 anos, e acho que é tarde demais para reconstruir minha relação com meus avós, pois eles já são bem idosos e não estão interessados em novidades em suas vidas. E se quisessem saber de mim, teriam tentado me visitar, teriam enfrentado meu pai. Mas quem sabe, a minha visão pudesse despertar neles algumas memórias de coisas que eles preferiam não lembrar? Eles tinham perdido uma filha. Perderam a filha duas vezes: quando ela saiu de casa para se casar com meu pai e depois que ela morreu. Lembro de meus avós me visitando quando eu era pequena, e são lembranças vagas, mas eu também me lembro que depois daquelas visitas sempre tão raras e breves, meu pai e minha mãe sempre brigavam, e meu pai nunca estava presente quando meus avós vinham. Minha mãe se afastou dos próprios pais por causa de meu pai. E se hoje meus avós e eu não temos nenhuma intimidade, é por causa dele.

Mas lá vou eu estabelecendo culpas de novo. Minha tia me pediu para não julgar o meu pai. Ela disse que ele cometeu erros, mas que me amava, e eu sinto que era verdade. É estranho que crescer signifique desconstruir a imagem que temos dos nossos pais. Eles são apenas pessoas comuns, que erram e falham, e dizem coisas absurdas, e fazem coisas bizarras. Não são os heróis que às vezes imaginamos.

Mas eu sinto falta do meu pai. Eu sinto falta dele, e me arrependo das vezes em que olhei ele desacordado na cama de hospital e desejei que ele morresse. Eu só estava cansada, exausta, para ser mais precisa, e os médicos diziam que ele não ia melhorar, só ia piorar cada vez mais, exatamente como a minha mãe. 

Eu tenho lembranças muito vagas da minha mãe. Nenhuma memória inteira, só pedaços enevoados de momentos. Temos alguns vídeos que meu pai fez de nós três juntos. Bia – minha mãe – era uma mulher um pouco acima do peso, de cabelos pretos e lisos cortados na altura dos ombros, grandes olhos castanho-claros, enfim, uma pessoa comum, diferente da imagem que minha tia Atena fizera de Fernanda. Mas quando ela sorri, seu riso se espalha em luz na tela do computador. Os olhos dela são expressivos e cheios de vida, principalmente quando ela me olha. Não me lembro da maioria daquelas cenas que ficaram gravadas, é como ver o vídeo sobre a vida de outra pessoa a maior parte do tempo, mas eu digo a mim mesma que se trata de mim, aquela criança sou eu, é a minha vida, a minha família. 

Minha mãe não era nenhuma beldade. As roupas dela eram comuns, jeans e camisetas lisas e vestidos estilo boho. Meus pais pareciam um casal de hippies. Mas minha tia Atena me disse que minha mãe era de família muito rica. Meu pai me dizia a mesma coisa. Talvez ela fosse bonita quando conheceu meu pai. 

Vou até o quarto dele, abro o armário dele a procura de mais memórias. É muito estranho mexer nas coisas de alguém que já morreu. A todo momento, penso que estou invadindo a privacidade dele. Eu nunca abri o armário do meu pai, a não ser para pegar roupas para levar para o hospital. Esta é a primeira vez que eu abro o armário do meu pai a procura de segredos ou memórias. Sim, isso configura uma invasão de privacidade, então, para me sentir melhor, vou até a garagem e trago algumas caixas de papelão; assim, posso fingir que estou separando as roupas e sapatos dele para doar – e não há muita coisa, na verdade. Coloco tudo em três caixas de tamanho médio. Tem coisas aqui que eu nunca o vi usar. Elas cheiram a mofo.

Mas logo encontro o que eu estava procurando: uma caixa de papelão na prateleira de cima, bem no fundo. Ali, encontro documentos – a certidão de nascimento de minha mãe, a escritura da casa, algumas contas antigas pagas. E debaixo de tudo, uma fotografia colorida grande, meio-desbotada e um pouco amassada. Meu pai bem jovem e bonitão está ao lado de uma mulher lindíssima, loira, alta, parece uma modelo de revista. Ela é séria, e tem olhos tristes. Só pode ser a Fernanda. Talvez esta seja a única lembrança que meu pai tinha daquela fase de sua vida, e me pergunto se minha mãe sabia sobre essa foto. Fico muito tempo olhando a foto. Chego à janela, tentando reter a imagem na minha cabeça, caso um dia a foto desapareça, e depois volto a olhar para confirmar se consegui.

Após arrumar as coisas em caixas, ligo para uma instituição de caridade que vai buscar tudo horas depois. Enquanto espero, assisto filmes na TV. Como cookies de chocolate. Durmo no sofá da sala. Me arrasto até a varanda, onde me sento embrulhada em uma manta, olhando a rua vazia. De vez em quando, um carro passa. Às vezes as pessoas nos carros me olham, e fico pensando no que elas pensam ao me verem. Não sabem nada de mim, da minha vida, do que eu estou enfrentando. É assim com todo mundo: ninguém sabe o que a pessoa que está sentada ao lado dela no ônibus está passando. Não sabem que aquele menininho no consultório médico, esperando sua vez enquanto brinca com um carrinho, tem uma doença incurável. Muitas vezes, eles mesmos tem doenças incuráveis e não sabem, nem desconfiam. Estão a ponto de descobrir, o que mudará todas as suas perspectivas, expectativas e sonhos.

Uma vez eu vi um filme em que o marido saía de casa ao descobrir que sua mulher estava doente; não conseguia lidar com o problema. A vida da gente pode mudar a qualquer momento, de forma radical, e tudo o que sempre foi certo pode se mostrar bem diferente. 

A caminhonete da casa de caridade encosta junto ao meu portão. O motorista sai, e ao olhar para ele, percebo que não deve ter mais que vinte anos de idade, e que ele é lindo. Ele sorri ao me ver, e eu me levanto (ainda embrulhada na manta) e sem retribuir o sorriso, vou até o portão e o abro para que ele entre. Ele me diz boa tarde, e eu respondo entre os dentes. Não quero ser mal-educada, mas falar dói. Ele me segue casa adentro, e aponto as caixas para ele no chão da sala. Ele me pergunta:

- Isso é tudo?

Concordo com a cabeça. Ele me olha longamente, e sinto meu coração acelerar. Ele me pergunta:

-Você está bem?

E eu não sei mais quem eu sou, ou o que acontece, ou porque acontece: de repente, estou me debulhando em lágrimas bem na frente dele. Não é um choro doce, mas um choro quase raivoso, de revolta mesmo. Ele fica estupefato, sem saber como agir, mas de repente ele caminha até mim e me envolve em seus braços com manta e tudo.

Eu me deixo abraçar por ele, o rosto em seu pescoço, sentindo o cheiro de malva dos seus cabelos curtos e pretos cortados em camadas. Sinto o formato do seu queixo quadrado contra a minha testa. Sinto as mãos dele, fortes, me amparando. Ele é mais alto do que eu, mais forte, e me sinto segura aninhada contra ele. Raramente, alguém me abraça. Nem mesmo meu pai me abraçava muito. Ele não diz nada, apenas me deixa chorar. E eu choro. 

Quando finalmente eu pareço ter esgotado todas as minhas lágrimas (pelo menos, naquele momento), ele me encara com seus olhos castanhos, emoldurados por sobrancelhas negras arqueadas. Ele é realmente lindo, penso. Eu poderia me apaixonar por ele, se... mas eu nunca me apaixonei, nem sei o que é paixão. E talvez nem seja a hora apropriada, então eu o empurro, devagar e docemente, para cada vez mais longe de mim. Ele se deixa levar pelas minhas palmas, cumprindo a distância que eu ponho entre nós. Murmuro um “desculpe” cheio de vergonha. Ele diz que está tudo bem, e me pergunta se tem alguma coisa que ele poderia fazer por mim. Sacudo a cabeça, dizendo um “não”. Ele me olha, e os olhos dele parecem lavas quentes escorrendo pelo meu rosto, ombros, corpo. 

Largo a manta sobre uma poltrona, porque de repente, eu começo a sentir calor. Logo me arrependo, pois me lembro de que estou vestindo calças de moletom rasgadas nos joelhos e uma blusa de lã velha e cheia de bolinhas. Tarde demais: ele me olha da cabeça aos pés, muito sério. De repente, a boca dele se abre, e espontaneamente, ele diz:

- Você é tão linda!

Fico surpresa. Nunca ninguém me disse aquilo antes. Dou um meio sorriso (porque acho que uma garota que acaba de perder o pai não tem o direito de sorrir tão cedo). Ele corresponde, e me estende a mão:

- Meu nome é Jonathan. 

E assim termina meu primeiro dia como órfã.


(CONTINUA...)





segunda-feira, 18 de abril de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 4

 





Parte 4

 

Depois do velório, entrei no carro dos meus tios, e tio Raul nos levou até a minha casa, deixando-nos lá sozinhas. Eram quase cinco da tarde quando chegamos, e eu estava exausta, tanto emocional quanto fisicamente. Eu estava acostumada à presença dos meus tios – crescera tendo-os em minha vida – mas agora que eu sabia que durante todo aquele tempo eles tinham escondido coisas de mim, de repente não me sentia mais tão à vontade com eles. Para mim era como se eu estivesse cercada de pessoas estranhas, que sabiam tudo de mim sem que eu soubesse o suficiente sobre elas. A sensação de solidão era excruciante.

Na varanda, encontramos sobre a mesinha alguns cartões de pêsames e também vasilhas com comida, como uma lasanha, salada, bolos e biscoitos caseiros. Todos com um cartãozinho. Senti gratidão e simpatia por aquelas pessoas, vizinhos que nem moravam tão perto e que eu mal cumprimentava, e que estavam demonstrando solidariedade. Eu me sentia grata também pelo fato de que por causa da generosidade deles, eu não precisaria comer a comida da minha tia.

Eu e Tia Atena levamos tudo aquilo para dentro e guardamos. Ela colocou a lasanha semipronta no forno e começou a pôr a mesa para o jantar. Com toda aquela comida, eu concluí que não teria que me preocupar em cozinhar por pelo menos uma semana, o que é um alívio para quem está passando por um momento de luto.

Nós comemos – ou seja, tia Atena devorou a maior parte da lasanha, enquanto eu dei apenas algumas garfadas, desmanchando o resto no prato em uma massa disforme e repugnante. Fiquei me perguntando se algum dia eu teria fome outra vez. Depois que eu a ajudei a limpar a cozinha, nós nos sentamos no sofá da sala, cobertas pelas mantas que estavam sempre jogadas sobre o sofá. Acendemos a lareira, pois a noite era fria, e deixamos apenas as luzes dos dois abajures acesas. E então ela me contou a história dos meus pais.

Meu pai era um homem casado quando conheceu minha mãe. O nome da primeira esposa dele era Fernanda. Aquela informação, por si só, já me deixou boquiaberta. Ele tinha 36 anos, e minha mãe, 25 quando se conheceram em um bar. Eles começaram a se relacionar naquela mesma noite. Meus tios sabiam de tudo, pois eles namoravam naquela época, e os quatro – meu pai, Fernanda e meus tios - saíam juntos algumas vezes. Naquela noite, Fernanda tinha ficado trabalhando até mais tarde. Minha tia me disse que meu pai e minha mãe trocaram olhares durante alguns minutos (meu tio Heitor tentando fazer ele não perder o juízo) e depois ele a convidou para dançar. No começo do relacionamento do meu pai com minha mãe, meu tio Heitor foi totalmente contra, pois não gostava da ideia de meu pai estar traindo a esposa com quem estava casado há cinco anos e meio. Tia Atena, porém, passou a gostar muito de minha mãe e as duas ficaram muito amigas.

Fernanda, a primeira esposa de meu pai, era uma pessoa difícil e problemática, muito ciumenta, quase sempre em estado depressivo. Meu pai se apaixonou por ela porque ela era extremamente bonita, segundo minha tia me contou. A paixão dos dois era puramente sexual, quase uma doença da qual eles não conseguiam se curar, mas ela não sentia que havia amor entre eles, pois na opinião dela, nenhum tipo de amor poderia causar tanta discórdia e tantos problemas. Na cama, eles se davam perfeitamente bem, segundo confissões da própria Fernanda a ela, mas fora dela, eram como água e óleo. Mesmo assim, agiam como se não pudesse respirar sem a presença um do outro, até que Bia – minha mãe – surgiu.

No começo, meus tios pensaram que seria apenas um caso passageiro, mas à medida que o tempo passava, eles viam que era muito mais que isso. Logo, a paixão sexual que meu pai nutria por Fernanda diminuiu, e ela percebeu logo que alguma coisa estava errada. Mas meu pai não tinha coragem de se separar de Fernanda, pois tinha medo de que ela cumprisse sua promessa de se matar caso ele fosse embora. Ao mesmo tempo, Bia também cobrava dele uma escolha. Fernanda desconfiava que ele estava tendo um caso, mas tio Heitor o ajudava a encobrir tudo, e minha tia Atena também procurava se envolver o menos possível naquela história, já que era amiga de Fernanda e tinha se tornado também amiga de Bia.

E quando meus avós - pais de Bia - descobriram quem era o homem com quem a filha deles vinha saindo, a pressão aumentou ainda mais. Não queriam o escândalo de ter sua filha sendo amante de um homem casado. Fizeram tudo para separar os dois, mas não conseguiram. Quanto mais tentavam, mais os dois se uniam. Até que eles acharam que a única saída seria procurar Fernanda e contar tudo a ela.

E foi o que eles fizeram. Meu pai e minha mãe já vinham se relacionando há quase um ano quando aquilo aconteceu. Exatamente naquela época, minha mãe ficou grávida. Quando Fernanda soube de tudo, ela procurou minha mãe e pediu a ela que se afastasse, mas quando minha mãe disse que estava grávida, Fernanda não suportou, já que ela mesma não podia engravidar. Naquela mesma noite, Fernanda cometeu suicídio.

Aquilo arruinou o relacionamento que meu pai poderia ter tido com meus avós para sempre, pois meus avós culpavam meu pai, e ele, aos meus avós, pelo que tinha acontecido com Fernanda (eles ficaram com muita pena dela). E a família de Fernanda passou a perseguir meu pai e minha mãe, o que fez com que ele vendesse a casa e se afastasse, e foi quando fomos morar em Lumiar. Mesmo desaprovando o relacionamento, meus avós jamais deixaram de proteger a filha, e fizeram questão de dar a ela uma casa decente para morar, mesmo ela tendo se casado com um homem que eles detestavam. Pelo menos, sua filha e sua neta teriam uma vida confortável, como eles mesmos disseram. No começo, meu pai não queria morar na casa, mas com o tempo, achou que seria egoísmo privar a mim e à minha mãe de conforto apenas por causa do seu orgulho ferido.

Naquele trecho da história, senti raiva de meu pai; a vida toda, ele me dissera que meus avós não gostavam dele porque ele não era rico, e que eles só nos presentearam com uma casa porque não queriam que os seus amigos ricos ficassem sabendo que nós morávamos em seu apartamentinho. Privou-me de ter um relacionamento com meus avós e minha tia e primos porque não queria que eu soubesse da verdade. Minha tia respondeu, à minha observação:

- Jamais duvide do amor do seu pai por você. Ele cometeu muitos erros. Talvez mais erros do que a maioria das pessoas, mas depois ele caiu em si, ele compreendeu o quanto ele tinha magoado Fernanda e sua mãe, e se arrependeu. Se ele não queria que você ficasse sabendo da verdade, foi apenas por medo de perder você. Eu e seu tio sabemos o quanto ele sofreu depois que sua mãe se foi. A vida para ele nunca mais teve sentido, ele nunca mais conseguiu amar outra mulher.

No fundo, eu sabia que ela estava dizendo a verdade, mas não era fácil para mim aceitar que meu pai não era o homem que eu crescera acreditando que fosse. Eu não sabia quase nada sobre ele durante todo o tempo em que cresci. E agora eu ficava sabendo que ele era um homem egoísta, mulherengo e tóxico. Minha tia arregalou os olhos ao ouvir aquilo:

-Não diga isso, Valentina, porque a vida particular dele era a vida particular dele, e você... você era a melhor parte dele.  Otávio faria qualquer coisa para te proteger.

Os olhos dela se encheram de água, e percebi que minha tia Atena também tinha sido apaixonada pelo meu pai. Ao falar dele, os olhos dela brilhavam, seus lábios tremiam. Ela estava a ponto de explodir. Aproximei-me dela:

-Tia Atena... você era apaixonada pelo meu pai não era?

Ele enrubesceu e tentou negar, mas eu insisti:

- É claro que era. Senão, por que teria passado tempo tomando conta de mim, uma menina que sequer é seu parente de sangue?

Ela levou a mão à garganta, e vi o rosto dela se transformar em uma careta, antes que as lágrimas pulassem de suas órbitas. Fiquei sem saber o que fazer, então permaneci sentada perto dela, sem tocá-la. O choro de tia Atena era convulsivo.

- Que baita cliché, não é, uma mulher se apaixonar pelo próprio cunhado. Sim, você está certa, Valentina, eu fui apaixonada por ele, mas ele nunca ficou sabendo. E eu te peço que jamais comente nada com seu tio Heitor. Ele não merece isso.

Eu me levantei, caminhando até o outro lado da sala, e me voltei para encará-la:

-E quanto a Natália, tia?

Ela enrubesceu, respirando profundamente:

-Ela foi amante de seu pai enquanto ele era casado com sua mãe. Aconteceu nos últimos dois anos de casamento, antes de sua mãe ir embora. Ela já estava doente na ocasião, e acho que Natália foi uma válvula de escape.

-Pensei um pouco sobre aquilo antes de perguntar:

-E onde ela está agora?

-Não sei. Ele deixou de vê-la depois que sua mãe morreu. Nunca mais se encontraram.

-Você a conheceu?

-Superficialmente. Ela era frívola, engraçada... como eu disse, acho que foi apenas uma válvula de escape.

Concordei com a cabeça, pensando que a minha ida toda, eu nunca soubera muito sobre meu próprio pai. Caminhei de volta até o sofá, e segurei as mãos de tia Atena, fazendo-a me olhar de frente:

-O que mais eu não sei sobre esta família, tia Atena? Seria um bom momento para me contar.

Ela negou com a cabeça, colocando as mãos sobre o colo:

-Não há mais nada, eu juro. Mas agora seu pai se foi, tudo isso ficou no passado. Você deveria deixar o passado no passado.

Achei que aquele era um bom conselho, mas era mais fácil falar do que fazer. Pensei que eu precisaria de tempo para digerir tudo aquilo. Então, fui para o meu quarto. Tirei a roupa e entrei na banheira, enchendo-a com espuma de banho e água bem quente. Foi reconfortante o calor da água sobre a minha pele, que ficou avermelhada. Quando saí da banheira, uma hora e meia depois, a água estava fria. Depois, enfiei uma camiseta velha que tinha sido de meu pai sobre a cabeça e me deitei na cama desarrumada da noite anterior. O sono foi quase instantâneo. Há muito tempo eu não dormia daquele jeito.

Acordei na manhã seguinte com o barulho do aspirador de pó. Passava das dez da manhã. Levantei-me, escovei os dentes e fui para a sala, onde minha tia Atena estava finalizando a limpeza. Tudo estava limpo e organizado. Ela ergueu os olhos para mim, apontando para a cozinha:

-Bom dia, querida. Tem café e panquecas na cozinha. Sirva-se enquanto arrumo o seu quarto.

-Bom dia, tia... não precisava arrumar nada...

-A casa estava uma bagunça, e muito empoeirada. Parecia que não via uma faxina há meses. Aproveitei e coloquei as mantas do sofá ao sol, não se esqueça de recolhê-las mais tarde. Parece que vai chover.

Me lembrei que a última faxina que eu fizera tinha sido mesmo há meses.

Sentei-me à mesa, e devorei as panquecas. Meu apetite tinha voltado. A casa cheirava bem, e o chão de madeira brilhava de novo. Sobre o fogão, meu almoço me esperava entre dois pratos sobre uma panela de água para que eu o esquentasse em banho-maria quando tivesse fome. Me senti grata. O ruído do aspirador recomeçou, e quando acabei de comer, cerca de dez minutos mais tarde, minha tia passou carregando minhas roupas de cama:

- Troquei sua roupa de cama, vou colocar esta para lavar. Mais tarde, estenda-a para terminar de secar. Daqui em diante, você terá que fazer essas coisas sozinha ou então contratar alguém.

Eu não disse nada, mas estava acostumada a fazer metade do serviço de casa. Às vezes, tínhamos uma arrumadeira, mas na maior parte do tempo, eu e papai nos virávamos sozinhos.

Ela desapareceu em direção a área de serviço, e segundos depois escutei o barulho da máquina trabalhando. Depois que terminou de arrumar tudo, tia Atena me abraçou, dizendo:

-Se precisar de mim, sabe como me encontrar. Quer que eu passe aqui mais tarde?

Neguei com a cabeça:

-Não tia, obrigada. Obrigada por tudo, obrigada por me dizer a verdade.

Ela saiu e fechou a porta atrás de si.

Eu fiquei sozinha.

Começaria aquele que foi o dia seguinte ao funeral de meu pai, e o resto da minha vida sem ele.



(continua)




 

quarta-feira, 6 de abril de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - PARTE 3

 




Parte 3

 

Cada um dos muitos amigos de meu pai compareceram ao velório, e também muitas mulheres que vi no hospital e outras que eu nunca tinha visto na vida. Todos eles ficaram me paparicando, e conversando entre eles e olhando para mim com pena. Eu só queria que fosse todo mundo embora e me deixassem ter um momento a sós para que eu pudesse me despedir do meu pai.

Ninguém da família compareceu, a não ser Tio Heitor e Tia Atena, mas minha tia Agnes me telefonou, perguntando se eu gostaria de morar com ela na Europa. Meus avós me ligaram fazendo a mesma proposta. Quando eu disse a eles que não precisava, pois estava bem financeiramente e meu pai tinha me emancipado, todos pareceram aliviados, mas disseram que caso eu precisasse de alguma coisa, não deveria hesitar em pedir. Agradeci polidamente, feliz por me livrar deles.

Alguns colegas da escola passaram por lá, dizendo que sentiam muito, e que se eu precisasse de alguma coisa, não deveria hesitar em ligar para eles a qualquer ora do dia ou da noite. Achei engraçado, pois eles nunca tinham se importado comigo antes. Alguns professores compareceram também, rapidamente. Fiquei surpresa de que aquelas pessoas tivessem se dado ao trabalho. Meus professores também me disseram que se eu precisasse de alguma coisa, não deveria hesitar em pedir.

Aliás, ouvi aquela frase dezenas de vezes naquele dia, quando tudo o que eu queria era ser deixada em paz, mas certamente, não poderia pedir aquilo a eles.

Meu pai estava lá, deitado, indiferente a tudo o que acontecia. As pessoas olhavam para ele, tocavam as mãos deles por alguns instantes enquanto murmuravam coisas, jogavam água benta nele. Aquilo era tão patético. Velórios são sempre tão patéticos. E no final, um padre todo paramentado chegou. Olhei para o meu tio, que me olhou de volta e encolheu os ombros, olhando na direção da tia Aurora, querendo dizer que aquilo era coisa dela. Meu pai não gostava de padres, nem de igrejas, e ela o estava forçando a ouvir um sermão em seus últimos momentos na Terra.

Sem pensar, eu me levantei como um raio do banco onde estava sentada, caminhando na direção do padre no momento em que ele começou a abrir a Bíblia:

- Vá embora, por favor. Meu pai não era religioso e nem gostava de padres.

Falei aquilo baixinho, olhando nos olhos dele. Ele pareceu confuso por um momento:

-Bem, eu fui chamado aqui...

- Foi um engano, o senhor pode ir, por favor.

Ele abriu a boca para dizer mais alguma coisa, mas eu o fuzilei com os olhos:

-Por favor!

As pessoas já tinham percebido o que estava acontecendo. Minha Tia Atena chorava. O pobre homem recolheu sua Bíblia e saiu, humilhado. Mas antes, parou diante do caixão e fez o sinal da cruz. Tia Atena chegou perto de mim, falando baixinho:

-Me desculpe, eu não deveria...

-Não deveria mesmo. Ele era meu pai. A decisão teria que ter sido minha.

-Mas... as pessoas... é que eu pensei...

-A última coisa que preocupava meu pai era a opinião alheia, tia, e você sabe disso. Além disso, quem são todas essas pessoas? Meu pai as conhecia de verdade? Eu nunca vi a maioria delas. Precisava chamar toda essa gente?

Ela hesitou, e respondeu:

- Eles são... conhecidos, querida, ex-vizinhos do bairro antigo, a gente avisa as pessoas nessas horas...

-Ou seja: são curiosos. E carpideiras.

Ela me olhou, zangada:

- Seu pai tinha uma vida social que você desconhecia, ele não era só o ‘seu’ pai. Ele tinha amigos. E amigas também, se é que você me entende. Mas ele não gostava que você ficasse sabendo disso.

-Ou seja, esse pessoal aqui são amigos de copo, amigos de bar, amigas de cama.

Ela concordou com a cabeça:

-Mais ou menos, sim..., mas são pessoas que se importavam com ele, que gostavam dele.

-Interessante eu nunca ter visto a maioria deles no hospital, ou visitando meu pai em casa depois que ele adoeceu.

Ela me pegou pelo braço, me arrastando para o corredor:

- O que você quer que eu faça, Valentina? Que eu expulse os amigos do seu pai? Que eu mande todos embora, que impeça as pessoas de se despedirem dele? Você acha que ele vivia apenas para você, por você, que a existência dele se resumia apenas a tomar conta de você? Este é um pensamento egoísta!

Naquele momento, enquanto lágrimas quentes e grossas queimavam meu rosto, eu percebi que estava com ciúmes do meu pai. Eu tinha ciúmes por não conhecer a maioria das pessoas que ele conhecia, por ele ter isolado de mim aquela parte importante da sua vida. Eu estava revoltada porque, no fundo, eu não conhecia meu pai de verdade. Ele me mantivera dentro daquela casa, me dizendo para escolher bem as pessoas que fariam parte da minha vida, enquanto ele tinha uma vida cheia de pessoas que eu não conhecia. Eu percebi que ele não estava, na verdade, me ensinando a ser livre e independente, como ele dizia, mas poupando a si mesmo das preocupações que teria, caso eu tivesse sido uma adolescente que gostasse de sair com amigos e ter muitos namorados. Naquele momento, eu me senti muito magoada com meu pai. Enquanto ele viajava quase todo final de semana e chegava tarde em casa muitas noites para estar com seus amigos, eu ficava isolada naquela casa junto à floresta, lendo os livros que ele dizia que seriam bons para a formação da minha personalidade. E a maioria daquelas pessoas nem deveria saber que eu existia, que eu era a filha dele!

Meu pai me protegia do mundo apenas para que eu não desse trabalho a ele, para que eu não ficasse no caminho dele.

De repente, lembrei-me de uma discussão que eu ouvira entre ele e minha mãe quando eu tinha seis anos, uma cena da minha vida que tinha sido totalmente apagada da minha memória. Eu acordei no meio da noite, e ouvi vozes alteradas vindas da sala de estar. Eu abri a porta do quarto e me sentei nos primeiros degraus, e vi meus pais discutindo. Minha mãe chorava, e perguntava a ele: “Você estava com ela, não estava? Você está sempre com ela, nem liga mais para nós! Só quer saber dessa... Natália!” Meu pai estava sentado no sofá, a cabeça entre as mãos: “Sim, eu estava com ela, e sabe por quê? Porque lá eu tenho paz!”

Meu estômago revirou. Corri até o banheiro, seguida pela minha tia, que segurou meu cabelo enquanto eu vomitava. Eu não estava pronta para aquele torvelinho de memórias repentinas.

Eu nunca, até hoje, compreendi como aquela cena tinha voltado tão de repente, se eu nunca pensava nela, nem sequer me lembrava daquele dia. Eu cresci acreditando que o casamento dos meus pais era alguma coisa sagrada, e que o amor dele pela minha mãe era tão puro e profundo ao ponto de ele jamais querer se casar de novo. Ele me fez acreditar naquilo. Eu cresci com aquele pensamento. Mas ele mentiu. Ele não se casou de novo porque, na verdade, nunca foi talhado para o casamento. Sua vida era ter muitas mulheres e não ser de nenhuma.

Aquele nome nome não me saía da cabeça: Natália. Eu ouvira minha mãe gritar aquele nome naquela noite, há anos atrás, quando eu tinha seis anos.

Lavei o rosto na pia do banheiro, enxugando-o com uma toalha de papel que tia Atena me entregou. Me olhei no espelho, e vi que eu estava muito pálida. Tia Atena me olhava, preocupada. Ela me perguntou:

-Você está melhor?

Não respondi; ao invés disso, perguntei:

-Quem é Natália? Ela está aqui?

Vi minha tia empalidecer e gaguejar:

- Quem? Natália... que Natália? Não conheço nenhuma Natália.

Eu tinha certeza de que ela estava mentindo. Insisti:

- Se você não me disser a verdade, eu vou entrar lá agora mesmo e gritar o nome dela. Então eu vou saber quem ela é.

Ela sabia que eu faria exatamente aquilo. Tia Atena concordou com a cabeça, vencida.

-Eu vou te dizer quem é Natália. Mas será que você pode esperar até o final do velório? Vamos enterrar seu pai primeiro.

-Mas você promete que vai me contar?

- Eu prometo que vou te contar. Vou passar a noite na sua casa hoje, só nós duas, e te conto tudo. Mas por favor, não faça nenhum escândalo. E não importa o que eu te disser, quero que saiba de uma coisa: seu pai amava muito você. Você era o centro da vida dele. E se ele mentiu para você, foi para poupar você de qualquer sofrimento. Mas por favor, Valentina, agora não. Não é hora.

Dizendo aquilo, ela voltou para a sala onde meu pai estava sendo velado, e eu a segui, em silêncio. Quando entramos, notei que algumas pessoas me encararam. Ergui a cabeça e as encarei de volta, e elas baixaram os olhos.

E foi assim o dia em que eu enterrei meu pai.



(CONTINUA...)






 

quinta-feira, 3 de março de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 2

 





Parte 2

 

Desperto na manhã seguinte com um barulhinho na vidraça. Abro a cortina devagar, e vejo que é um passarinho bicando o vidro. Ele voa para longe quando me vê. Pela posição do sol eu percebo que já passa das dez da manhã, e ao olhar o relógio na mesa de cabeceira, confirmo. De repente, o tal passarinho volta a pousar à janela, bicando o vidro e piando de mansinho. É uma saíra azul, a espécie preferida do meu pai. Ela agora parece não ter medo de mim. Fico olhando para ela, me deixando acreditar que aquela é apenas uma manhã normal, como tantas outras.

São as férias de julho da escola. Estou no último ano. Penso em voltar ao hospital, e ao mesmo tempo, me pergunto o que eu vou fazer lá, se meu pai já não está mais lá. Mas é o meu dever estar lá quando acontecer. Não quero que ele se vá sozinho, então visto meus jeans, calço meus tênis de lona encardidos, escolho uma camiseta cinza no armário e um casaco de moletom preto. Passo as mãos e uma escova pelo meu cabelo ondulado e castanho, desembaraçando os fios. Me olho no espelho: apenas uma adolescente normal, penso.

Mas quando pego meu celular, percebo que houve várias ligações do hospital naquela manhã, e eu me esqueci de ligar o som do telefone antes de dormir. Enquanto seguro o aparelho, ele toca. Atendo.

- Por favor, é da casa do senhor Otávio Moreno?

Concordo com a cabeça, engolindo em seco. Ela repete a pergunta, e percebo que não a respondi em voz alta.

-Sim.

-Com quem falo, por favor?

-Sou Valentina, filha dele.

- Senhorita Valentina, precisamos que compareça ao hospital e que traga documentos e uma muda de roupas para o seu pai.

-Ele... melhorou?

- Não posso informar. Por favor, peço que compareça ao hospital imediatamente.

Desligo o telefone, pensando que se me pediram para levar roupas para o meu pai, é porque ele acordou e melhorou. Escolho uma camisa azul que ele adora e um par de jeans. Antes de sair, ligo para o tio Heitor:

-Tio, ligaram do hospital pedindo para eu levar documentos e uma muda de roupas. Acho que o papai melhorou!

Ele diz alguma coisa para minha tia, mas não consigo ouvir o que é. Depois, ele responde:

-Estamos indo para lá também.

Entro no ônibus após esperar durante vinte intermináveis minutos. O ar frio da manhã deixa meus dedos arroxeados, mas eu não ligo. Entro no ônibus e dou bom dia às pessoas, e algumas respondem, enquanto outras me olham com uma cara indiferente. Começa a chover no caminho até o hospital, e a chuva bate no vidro da janela do ônibus. Após uma viagem de meia hora, finalmente chego ao hospital. Meus tios estão me aguardando na recepção, e me abraçam de uma forma estranha. Digo:

-Eu trouxe as roupas e os documentos. Como ele está?

Olho por cima do ombro e vejo o médico de braços cruzados, e a cara dele não é boa. Ele se aproxima ao me ver.

Entendo tudo, meu pai não melhorou. Ele não melhorou, e eu não estava lá com ele. Eu o deixei ir embora sozinho. Digo aquilo em voz alta. Tio Heitor diz para eu ficar calma, e não me preocupar, pois ele “vai cuidar de tudo.” Só quero ver o meu pai, mas o médico me diz que ele ainda está no necrotério, e me pede as roupas. Meu tio pega a sacola da minha mão e faz sinal para Tia Atena me tirar dali, e ela me puxa para a cafeteria do hospital. Eu me deixo levar, pois não sei o que mais eu poderia fazer. Olho para trás e vejo meu tio conversando com uns homens de terno, que mais parecem urubus. Minha tia me diz que são agentes funerários. Ela me diz para não me preocupar com nada, pois o Tio Heitor ia cuidar dessa parte.

Estou sentada em frente a minha tia na cafeteria do hospital. Ela assopra um café preto, dando pequenos golinhos, e eu seguro uma xícara de café com leite entre as mãos sem tomar nada. Diante da gente, um cesto com cookies de chocolate que me embrulham o estômago só de olhar. Ela me pede para comer algo, pois o dia seria longo. Mas eu não consigo. Minha tia começa a mastigar os biscoitos um a um, enquanto chora. Mas eu não consigo chorar. Ela segura a minha mão por cima da mesa:

- Valentina, você não está sozinha, e é importante que você entenda isso. Vamos arrumar um quarto lá em casa para você passar a noite, não se preocupe com nada. Depois tratamos da sua mudança para a nossa casa...

Eu a interrompo:

- Não precisa, tia Atena. Eu vou para a minha casa. É lá que eu vou morar.

-Mas você não pode... ainda é menor de idade.

-Posso sim, eu sou emancipada. Meu pai me emancipou. Ele sempre soube que eu posso tomar conta de mim mesma.

Ela parece surpresa, e ao mesmo tempo, aliviada. Não consegue suprimir um longo suspiro que eu interpretei como sendo de alívio. Tia Atena é uma ótima pessoa, mas nunca gostou de tomar conta de crianças, e eu sei que ela pensa que eu sou uma criança.

Alguns minutos depois, meu tio senta-se à mesa conosco. Diz que o velório foi marcado para a manhã seguinte, e que ele já estava avisando a todo mundo. Agradeço, pois eu não saberia como fazer isso: “Oi, aqui é a Valentina, e estou ligando para avisar que o meu pai morreu.” Olho para o meu tio, e de repente ele me parece dez anos mais velho. Ele e meu pai eram muito próximos. E eu sei que ele me ama. Pergunto:

- Você avisou aos meus avós?

-Sim, Valentina. Eles disseram que sentem muito por não poderem comparecer, mas seu avô está com a pressão muito alta. Disseram que vão te ligar mais tarde.

Pensei que nem precisaríamos avisar à tia Agnes, pois ela com certeza não conseguiria chegar a tempo, e talvez nem estivesse interessada. Ela e meu pai nunca tinham sido exatamente amigos, mas meu tio disse que tinha mandado uma mensagem para ela.

Quando terminamos o café, fomos novamente até a recepção do hospital, pois eu queria ver o meu pai antes de ir, mas me informaram que ele já tinha sido levado para ser preparado para o velório. Olhei para meu tio zangada, pois ele tinha me prometido que eu ia ver meu pai. Ele me disse:

-Querida, é só o corpo dele, ele não está mais entre nós. Eu só quis te poupar de um sofrimento desnecessário. Amanhã você terá a chance de se despedir do seu pai.

Meus tios disseram que iam passar a noite na capela mortuária, mas perguntei a eles:

-Para quê? Vão para casa. Meu pai não está lá, é só um corpo.

 E foi assim o dia em que meu pai morreu.


 (continua)




terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

SEGUIR PARA TRÁS - Parte 1






Esta é a história de uma adolescente que precisa seguir com sua vida após a morte do pai, que a emancipou antes de morrer. Porém, antes, ela precisa descobrir a verdadeira história de sua família, aquela que ninguém lhe contou.


SOZINHA

Parte 1

Quando alguém está muito doente, quem o acompanha é quem mais sofre, e é visitado por sentimentos inconfessáveis. Estar diante da dor de quem se ama em uma posição totalmente impotente é, talvez, uma das piores dores. Chega um momento em que não aguentamos mais. Passamos a desejar que alguma coisa – qualquer coisa – possa acontecer e mudar aquela situação. Porém, não se pode dizer isso aos outros, pois eles não estão prontos. Eles não sabem como é. Eles têm suas crenças e opiniões sobre tudo, e gostam de acreditar que as outras pessoas pensam e sentem da mesma forma. Eles passam por aquele quarto, e da porta, lamentam e dizem palavras que consideram como sendo motivadoras: “Ele vai melhorar.” “Confie em Deus.” “Você precisa ter fé.” Depois, caminham pelo corredor, se afastando cada vez mais, tentando esquecer o que viram e voltar para suas vidas e seus problemas, dando graças a Deus por não estarem no nosso lugar.
Mas eu não os culpo. Não há muito mais que se possa fazer.
Certa vez, achei absurda a fala de alguém que há muitos anos me disse; “Só quero que tudo isso acabe.” 
Mas hoje, sou eu quem digo a ele: “Só quero que tudo isso acabe.” E peço aos céus que seja logo. Eu me sinto presa aqui, eu me sinto impotente, fraca, vulnerável, imensamente triste, e com aquela sensação de que ainda temos um longo caminho pela frente, um caminho cheio de dor, noites sem dormir, crises de desespero (que preciso viver o mais silenciosamente possível, trancada no banheiro do quarto de hospital para que ele não me escute).
E a comida esfria na mesa, me embrulhando o estômago. E a cada dia, um pouco mais dos meus ossos se tornam visíveis sob a blusa de malha. Às vezes, chego a pensar que eu vou primeiro, e que não seria nada mal. Assim, não teria que lidar com o que vem depois que tudo acabar.
Os amigos e familiares telefonam para saber como ele está. Mas na verdade, eles não querem ouvir. Raramente, me perguntam como eu estou. E nas raras vezes em que eu respondo – estou um caco, não sei mais como eu estou, já passei do desespero – eles só me dizem para ter fé e continuar acreditando. Daí eu olho para ele, deitado naquela cama, cercado por aparelhos e tubos, e me pergunto se essas pessoas sabem, realmente, com o que eu estou lidando.
Ontem, após três dias, ele acordou e me olhou. Abriu os olhos lentamente. Não sei se me reconheceu (eu ando irreconhecível até para mim mesma). Depois, fechou os olhos novamente, como quem não deseja mais ficar. Falei com o médico, e ele me disse que isso pode acontecer nessa fase, mas ele me disse que isso é normal, e não significa que o paciente está melhorando. É apenas um reflexo. O médico me olhou com aquela cara de pena e me disse para ir para casa. Que se houvesse alguma mudança, eles me avisariam.
Pela primeira vez em dias, eu concordei com ele.
A visão da minha cama me trouxe sentimentos controversos: eu só queria me jogar nela e dormir para sempre. Ao mesmo tempo, como eu podia estar pensando em dormir quando meu pai estava naquele estado? Achei melhor comer alguma coisa, forçando cada gole de café e cada pedacinho de pão garganta abaixo. Depois, tomei meio iogurte. O resto eu joguei fora. Simplesmente não desceu. 
Fico feliz que meu pai tenha antecipado a minha maioridade. Aos dezessete anos, por lei eu teria que ser acolhida por algum parente ou então ir para uma instituição. Mas assim que ele soube do quão grave era a sua doença, ele fez questão de me antecipar: “Não quero que ninguém estrague o trabalho que eu e sua mãe fizemos em você.” Ele também cuidou de toda a parte legal da coisa, para que eu não tivesse que me preocupar com nada. Pelo menos, não com nada material.
Meu pai só tem cinquenta e seis anos. Poderia viver muito, ainda, poderia ver eu me formar, casar, e quem sabe, me transformar naquilo que ele mais temia: uma pessoa comum. Ele vivia me dizendo o quanto eu sou extraordinária, o quanto eu tenho talento, e que eu jamais deveria me deixar levar pelas pressões alheias para ser isso ou aquilo. 
Minha mãe morreu quando eu tinha apenas sete anos e meio, e meu pai fez questão de terminar de me criar. Ele me ensinou a ser seletiva quanto às minhas amizades, e só desejar a companhia de pessoas que me acrescentassem alguma coisa. No começo, eu não entendi bem, mas depois, quando cheguei ao ginásio, eu compreendi o que ele quis dizer: a superficialidade das outras meninas me enjoava. Elas só queriam saber de garotos, vestidos, roupas, maquiagem. Falavam mal umas das outras sempre que podiam, competiam entre si, mesmo sendo “amigas” e viviam contando vantagem, como se estivessem em algum tipo de concurso de popularidade.
Os meninos, ah, os meninos... eles só queriam uma coisa. Só uma coisa. E achavam que tinham o direito de ter o que queriam, o que era concedido sem muito esforço da parte deles pela maioria das meninas. E foi no ginásio que eu comecei a me afastar cada vez mais de tudo. Achava que eu e meu pai nos bastaríamos. E passamos muitos bons momentos juntos. Ele lia para mim, ele me indicava livros e músicas. Mas às vezes, ele sumia nos finais de semana, ou chegava tarde em casa à noite. Minha tia Atena costumava tomar conta de mim naquelas ocasiões, ou então ele contratava uma baby sitter.
Quando minha mãe morreu, ele vendeu a nossa casa de condomínio em Teresópolis e comprou uma outra bem menor, junto a uma floresta que ficava em Lumiar, em uma rua afastada do centro da cidade. Eu não me lembro muito da outra casa, mas todos diziam que ela era muito bonita e bem maior do que esta, e que tinha sido um presente dos meus avós quando minha mãe se casou com meu pai. Meus avós eram muito ricos, e aquela casa era apenas uma das muitas propriedades que eles tinham. Eles não eram muito próximos da gente, pois não gostavam muito do meu pai, como fiquei sabendo mais tarde. Depois que minha mãe morreu, eles se afastaram ainda mais, embora me mandassem presentes de Natal e aniversário, cartões e convites para passar férias com eles, mas meu pai sempre arranjava outras coisas para fazermos nas férias, então eu nunca cheguei a visitá-los.
 A nossa casa é rústica, feita com largas toras de madeira. É aconchegante. Mas a Grota do Retiro não é exatamente um bairro residencial, é mais uma estrada, uma passagem. Os vizinhos mais próximos ficam a quinze minutos de carro, e não há muitos deles. A nossa água vem de uma mina, que meu pai me ensinou a limpar e a cuidar, e a nossa eletricidade vem de painéis fotovoltaicos e também de um gerador de emergência que fica no celeiro. Plantamos muitas coisas: tomates, verduras, frutas, para consumo próprio. Meu pai me ensinou a cuidar de tudo e a ser o mais independente possível. Mesmo assim, temos um senhor que vem duas ou três vezes na semana para fazer algum serviço de manutenção e dar uma olhada nas minas e nas hortas. 
Meu pai trabalhava como marceneiro, e ganhava o suficiente para termos uma boa vida. Minha mãe deixou para mim sua parte na herança da avó dela, mas meu pai jamais usou o dinheiro, dizendo que ele ficaria para eu usar como eu quisesse. Tive acesso às contas, através do advogado do meu pai, e é uma boa quantia de dinheiro que vai me permitir fazer muitas coisas e ficar anos sem ter que trabalhar. Se eu poupar bastante, pode ser que eu nunca precise, pois as nossas despesas são muito baixas, já que nossa casa é totalmente sustentável e nosso estilo de vida, bem simples.
Nossa casa, em si,  não é muito grande; temos cerca de 80 metros de área construída e um terreno de aproximadamente quatrocentos metros, por onde corre um riacho que nasce no alto da montanha e cruza toda a floresta até chegar ao nosso quintal. Usamos a água para regar as hortas e abastecer a cozinha e o banheiro. Estamos próximos a uma área de preservação, então eu acho que não vou ter problemas quanto a isso.
Nosso estilo de vida fez com que eu fosse vista na escola como a ermitã esquisita. Mas na maior parte do tempo, meus colegas me deixavam em paz, pois percebiam que seus ataques não surtiam nenhum efeito em mim. Além disso, hoje eu tenho nos fundos da casa uma pequena plantação de algo que eles adoram, e sendo eu uma boa fornecedora, eles me deixam em paz.
Temos muito pouco contato com alguns dos nossos poucos parentes – Tia Agnes, irmã de mamãe, que mora na Europa com meus dois primos; Tio Heitor, irmão de meu pai e sua mulher, Atena, que moram por perto, e com eles, temos contato regularmente; e meus avós por parte de mãe moram em outro estado. A última vez que vi Tia Agnes, meus avós e meus primos, foi no velório de minha mãe. Tio Heitor e tia Atena costumam vir nos finais de semana para jogar cartas com meu pai, e passamos alguns momentos divertidos, isso é, quando Tia Atena não resolve cozinhar, pois a comida dela é péssima. Mas depois que meu pai piorou, eles só o visitam no hospital e não vem mais aqui quando sabem que eu estou sozinha em casa. Acho que é porque não sabem o que me dizer, ou o que fazer comigo quando meu pai se for. Acredito que não querem a responsabilidade de assumir uma garota de dezessete anos, já que nunca tiveram filhos por opção. Mas eles não sabem que meu pai me emancipou.
Estou sentada no sofá da sala, enrolada em uma toalha de banho. Tenho na minha frente, sobre a mesinha, os documentos que me conferem a minha liberdade, e também os números das contas bancárias e os dados e documentos de um pequeno apartamento que meu pai aluga para uma família no centro da cidade. Estou ciente de tudo. Eu ficarei bem, financeiramente. Meu pai me ensinou a ser forte e independente. Segundo ele, eu ficarei bem. 
Mas eu não sei se posso. É muita coisa. É assustador. Minha vida é um grande ponto de interrogação. Mas quando ainda estava bem, meu pai me disse um dia que a vida de todos era um grande ponto de interrogação, mas as pessoas gostavam de fingir que tinham tudo sob controle. 
Ele também me ensinou a aceitar a morte, e eu fingi que aprendi. Meu pai me explicou que morrer faz parte da vida, que todos morreremos um dia, que o que importa não é com quantos anos, e sim viver de forma intensa, etc., etc., e mais um monte de clichês. Meu pai nunca foi um homem religioso, mas ele me confessou que acredita que a vida continue em algum lugar, e me falou sobre umas coisas que aconteceram com ele após a morte de minha mãe. Ele me disse que a viu em vários sonhos, e que uma noite, enquanto ele estava tomando café na cozinha, ela apareceu para ele. Acho que ele me disse a verdade – ou pelo menos, o que ele acha ter sido verdade. Porque meu pai jamais mentiu. E eu acho que por achar que minha mãe continua viva em algum lugar, ele nunca se casou, embora ainda fosse jovem, bonitão e muito assediado pelas mulheres. Saiu com algumas delas – ok, muitas delas – mas jamais trouxe nenhuma para a nossa casa.
De vez em quando, no hospital, uma delas aparece com flores, derrama algumas lágrimas, olha para o meu pai com saudades. Elas se apresentam como “amigas” de meu pai.  Depois, elas me abraçam talvez pensando que poderiam ter se tornado minhas mães, e vão embora, dizendo que se eu precisar de alguma coisa, é só chamar. Mas elas nunca se lembram de deixar um telefone ou um endereço. Todas são sempre muito bonitas, e vi que algumas tinham alianças de compromisso na mão esquerda. Meu pai gostava de viver perigosamente, pelo jeito.
Às vezes, ele viajava por alguns dias, geralmente, um final de semana, e eu ficava com o Tio Heitor e Tia Atena, ou seja, eles vinham ficar comigo. Mas meu pai sempre voltava na segunda-feira. Sempre sozinho, e às vezes, calado e cabisbaixo. Uma vez perguntei por que ele não se casava de novo, e ele me disse: “Quem teve uma mulher como a sua mãe, jamais encontrará outra à altura.” Pensei que aquilo soou como uma maldição.
Me deito para dormir entre os lençóis e cobertores macios e aconchegantes da minha cama. Meu último pensamento é para o quarto impessoal e frio onde meu pai dorme.
(continua...)




quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Um Relâmpago


Ele passou diante dos seus olhos antes distraídos, e despertou-a da sua indiferença.

Marta estava quase adormecida dentro do metrô naquela tarde calorenta, indo para casa após um exaustivo dia de trabalho. Os olhos estavam presos a alguma coisa que não estava ali,, e quem passava, poderia imaginar que ela estava pensativa. Porém, há muito tempo ela não pensava mais; não se atrevia.

Cumpria a sua rotina de acordar às quatro e trinta da manhã, se aprontar para o trabalho (antes preparava o lanche das crianças e deixava café para o marido, aquele estranho que morava com ela), pegar um ônibus até a estação e depois o metrô, e depois outro ônibus até chegar, finalmente, ao escritório no outro lado da cidade, onde trabalhava como secretária há quase dez anos.

Nos finais de semana, adiantava a faxina, cozinhava e congelava para a semana toda e dava uma olhada nos deveres de casa das crianças. Marta nem se perguntava para onde tinha ido a tal felicidade, pois temia a resposta.

E lá estava ele, aquele estranho perfeito, sentado no metrô diante dela, que mais parecia ter saído de uma revista de modelos - daquelas, que ficavam na recepção do escritório onde ela trabalhava. Ela sentiu o rosto corar quando, por acaso, os olhos dele pousaram nela e ele deu um meio sorriso de educação e reconhecimento. Ela nem sorriu de volta; imaginou-se no lugar dele, olhando para ela, e vendo aquela mulher cansada, de rabo de cavalo, agarrada a uma bolsa de couro velha, usando roupas surradas e fora de moda. Passou a mão pelo rosto, e sentiu a pele precocemente envelhecida, imaginando os círculos escuros em volta dos olhos que ela nem tentava mais disfarçar.

Mas ela não conseguia tirar os olhos dele, e de repente, uma fome enorme tomou conta dela: fome dele. Ela queria tê-lo, nem que fosse só uma vez. Nem que fosse a última coisa que ela faria na vida.

Na sua mente, ela viu a si mesma se levantando e indo na direção dele, erguendo a barra da saia e mostrando a perna ainda bonita que a saia escondia, enquanto mordia o lábio inferior. Ele ficaria surpreso, mas logo perceberia que estava diante da mulher da sua vida, e de mãos dadas, eles sairiam do trem e se perderiam pela vida, deixando tudo para trás.

O sonho foi tão forte e perfeito, que quando Marta voltou a si, viu que o estranho já não estava mais parado diante dela. Ela olhou em volta, mas ele já não estava mais por perto, e nem depois que ela saiu pelos vagões a procurar por ele, teve sucesso em encontrá-lo. Ele simplesmente desaparecera - mas ficaria ainda durante muito tempo em sua lembrança.

Mas pelo menos, seus dias já não eram tão vazios e sem sentido, pois ela agora tinha a esperança de um dia reencontrá-lo. Passou a cuidar-se melhor e redescobriu sua beleza. O marido então voltou a notá-la e a admirá-la, e os dois se reaproximaram. O chefe percebeu sua mudança, eficiência e boa vontade, e deu-lhe uma promoção e um aumento de salário.

Marta tornou-se mais confiante, e quando finalmente o estranho reapareceu no trem, meses depois, ela o olhou e não sentiu nada. Percebeu que não mais precisava dele. Mas antes de sair, ela o olhou, sorriu e murmurou um "obrigada" que ele jamais entendeu.



quarta-feira, 10 de novembro de 2021

AS ESTRELAS QUE CONTEI - CAPÍTULO 14 - FINAL

 


Havia na fazenda uma casa menor para hóspedes, que geralmente ficava fechada, e nós nos mudamos para lá. Uma semana depois do incêndio, Afonso reuniu construtores para começarem a reconstruir a casa principal conforme a planta original, o que seria um árduo trabalho que levou quase três anos para ser concluído. Mas mais tarde, todos achamos que a casa nova tinha também ares muito mais leves; os móveis e paredes eram de cores mais claras, as cortinas eram mais leves, enfim, não tinha o ar pesado e difícil de respirar da casa antiga, que tinha sido cenário de acontecimentos funestos. 

Após o velório de Tamara, que foi acompanhado por grande parte dos moradores da pequena cidade, contei aos outros tudo o que eu sabia sobre o que tinha acontecido naquela casa, há muitos anos; disse-lhes tudo o que Clara, Elvira, Teo e as crianças me contaram. Minha mãe não gostou de ouvir minha história, me dizendo que aquele não era o momento para invencionices, e que eu deveria respeitar a dor de Afonso; porém, ele me apoiou, dizendo à minha mãe que eu não poderia ter inventado todos aqueles acontecimentos; ele pegou um velho álbum de fotos de família que tinha sido salvo do incêndio, e apontando as pessoas, eu as fui identificando e contando particularidades sobre elas que ninguém poderia saber, como por exemplo, uma pinta que Clara tinha do lado esquerdo do pescoço e que não aparecia em nenhuma daquelas fotos.

Falei também sobre uma deformação que Elvira, a avó dele, tinha no dedo mindinho esquerdo, provocado por artrite. Mas minha mãe só conseguiu se convencer de que eu realmente dizia a verdade quando a polícia encontrou as ossadas das pessoas mortas. Elas foram todas devidamente sepultadas no cemitério da família, que ficava na própria fazenda, e uma missa foi dita por elas. Felizmente, o baú com as provas do crime, que tinha sido encontrado debaixo da cama de Rosália, tinha sido entregue à polícia antes do incêndio.

Mas Rosália escapou. Ninguém mais sabia onde ela estava escondida, para onde ela tinha ido. A polícia estava à procura dela, e havia fotos dela espalhadas por toda cidade. Ela nem sequer participou do velório da mãe, pois aproveitou a confusão para fugir.

Aquelas férias ficariam para sempre na minha memória, e na memória de todos nós. Voltamos para a cidade e então Afonso e mamãe puderam finalmente fazer sua viagem de núpcias. 

Mal chegamos em casa, tratei de colocar toda aquela história no papel, com todos os detalhes. Minha alma de escritora ainda se agitava. Sara e eu terminamos as férias em casa, cuidadas por Geraldo e Elga e na companhia de minha amiga Fernanda, que foi passar uns dias conosco. 

A história poderia ter terminado ali, mas uma noite eu acordei me sentindo muito aflita e oprimida, e quando me levantei para ir até a cozinha, encontrei minha irmã no meio do corredor, visivelmente abalada. Perguntei:

-O que você está fazendo de pé a essa hora?

Ela coçou a cabeça, e esfregando os olhos, respondeu:

-Pelo mesmo motivo que você, eu acho. Tive um sonho ruim.

Eu não me lembrava de ter tido um sonho. Peguei minha irmã pela mão e fomos nos sentar na cozinha, onde preparei um chá para nós duas. Todos na casa estavam dormindo, e nós estávamos sozinhas na cozinha. Escutávamos o tique-taque pesado do relógio que ficava na parede do corredor.

-Me conte sobre esse sonho, Sara.

- Eu... eu sonhei com ela. Com Rosália. Chiara, eu tenho medo dela.

Abracei minha irmã:

-Calma, ela jamais se atreveria a vir aqui. A casa tem muros altos. Ela não conseguiria entrar. E se for pega, vai ser presa. 

Ela insistiu:

-No meu sonho, ela estava aqui dentro. Ela tinha uma arma. Não me lembro bem do que aconteceu. Eu estou com muito medo...

Senti um arrepio na coluna, mas me mantive aparentemente calma:

-Tome, beba este chá. Vai se sentir melhor. Olhe, Geraldo, Elga e Carlos estão dormindo logo aqui, ao lado da cozinha, em seus quartos. Fernanda está lá em cima, e eu estou aqui com você. A casa está toda trancada. Nada vai acontecer. Estamos seguras aqui. Mamãe e Afonso estarão de volta em uma semana. E na semana que vem, as aulas recomeçam. Assim que tudo voltar ao normal, nós nos esqueceremos do que se passou.

Levei-a para o meu quarto, e dormimos juntas. 

Porém, duas horas depois acordei com o ruído de alguma coisa de vidro se quebrando. Meu coração deu um salto. Olhei para o lado, e Sara dormia tranquilamente. Fiquei sentada na cama, escutando, e minutos depois, pensei ter ouvido passos leves na escada de madeira, que tinha um degrau que estalava sempre que a usávamos. Achei melhor ver o que era, e criando coragem, saí da cama e abri uma greta da porta do quarto. Olhei o corredor silencioso e escuro. Um arrepio de desconforto percorreu minha espinha, e o suor começou a brotar nas minhas costas. Tirei a chave da porta, e trancando-a, fui até o quarto onde Fernanda estava. Ela dormia. Tirei a chave dela, trancando-a no quarto também para sua própria segurança. Apertando as chaves na mão, cheguei ao meio do corredor, esticando o pescoço para ver as escadas. Então eu a avistei: Rosália não me viu, pois olhava para o chão. Ela subia as escadas devagar, e carregava um revólver. 

Dei o grito mais alto de toda a minha vida:

- Geraldo! Carlos! Socorro! Ela tem uma arma! Ela está armada!

Corri de volta para o quarto, e entrando, tranquei novamente a porta. Fernanda tinha acordado e tentava sair: 

- Chiara, o que está havendo? Estou trancada aqui! – ela gritou; 

Fui até a sacada, chamando-a, e disse-lhe que ficasse no quarto e não saísse por nada. Àquela altura, Sara tinha acordado, e nós duas nos trancamos na sacada. Fernanda, da sacada do seu quarto, nos olhava, o rosto apavorado. Expliquei a ela que a casa tinha sido invadida por Rosália. Vi as luzes do andar inferior se acenderem, iluminando parte do jardim. Geraldo e Carlos estavam no jardim, e eu gritei novamente, avisando-os de que Rosália estava armada. Eles nos mandaram ficar calmas e permanecermos nos quartos, pois a polícia já estava a caminho.

Naquele instante, ouvimos um tiro. Nós três gritamos ao mesmo tempo. Alguém bateu à porta, e eu dei um pulo. Reconheci a voz de Elga:

-Meninas, não saiam por nada! Acabou! Fiquem tranquilas, mas não saiam!

Escutamos as vozes de Carlos, Elga e Geraldo conversando alto. Soavam muito aflitos. Elga disse, a voz chorosa:

-Eu não tive como evitar! Oh, meu Deus! Tive que atirar nela!

A sirene da polícia parou diante do nosso portão, e Carlos foi abrir. Vimos os policiais entrando. Muitas coisas aconteceram no andar inferior da casa, mas achei melhor, por causa de Sara, não descer para verificar. Fernanda foi ficar conosco, e nós três permanecemos sentadas no tapete, aguardando notícias. 

Uma ambulância chegou, e corremos até a janela. Vimos quando o corpo de Rosália, cujo rosto estava coberto por um lençol, deixou a casa, carregado em uma maca. As casas vizinhas estavam todas acesas, e algumas pessoas estavam paradas nas calçadas com roupas de dormir.

Finalmente, aquele capítulo terrível da história de Afonso tinha sido devidamente encerrado. Um dia, após o jantar, eu estava sentada em minha cama quando ele bateu à porta. Disse que queria conversar.

Sentou-se em minha cama, me olhando profundamente:

- Chiara, você já deve saber que eu tenho por você e por Sara um amor paternal. Para mim, vocês duas são minhas filhas. Mas quero que saiba que eu sou muito grato a você, pois me ajudou a resolver um grande problema que eu carregava comigo. Me ajudou a desvendar a morte de minha esposa, que eu pensei ter fugido e me abandonado.

Ele riu discretamente, baixando os olhos por alguns instantes.

-Jamais pensei que um dia, uma criança me ajudaria a seguir em frente. Nunca acreditei que eu pudesse ser feliz novamente, casar-me com sua mãe e ganhar duas filhas de presente. 

Eu fiquei calada, pois não sabia o que dizer. Ele continuou:

- Sei do seu sonho em tornar-se escritora. E eu quero ajudar você a realizá-lo!

Sentei-me na cama, as pernas cruzadas, o coração descompassado:

- Mas... eu... eu... meu Deus, eu...

Uma grande insegurança tomou conta de mim, e passei a andar pelo quarto de um lado para o outro. De repente, duvidei da minha capacidade de escrever. 

-Eu não sei se posso, pai. 

Eu o chamara de pai tão espontaneamente, que nem percebi. Ele corou de satisfação. 

- É claro que pode. Sua mãe me falou sobre os concursos literários que venceu na escola, e do quanto as outras crianças adoram escutar suas histórias. Ela também me disse que você tem uma missão que deve ser realizada através dos seus escritos. Então, quanto mais cedo começarmos, melhor! 

Comecei a pular de alegria, e abracei-o pelo pescoço, dando-lhe um sonoro beijo no rosto:

-Obrigada, pai! Obrigada!

E então, eu escrevi.

Contei as histórias de toda a minha família – daqueles que eu conheci e daqueles que eu não cheguei a conhecer aqui. Criei histórias que falavam sobre os seres da natureza que eu costumava ver quando criança, e embora elas tenham sido classificadas como histórias infantis, ninguém soube o quanto aqueles personagens são verdadeiros. Fiz o que eles me pediram: tentei conscientizar as pessoas sobre a importância do respeito às coisas da natureza, do quanto são necessárias coisas como árvores, rios, animais, água, ar. Sei que as coisas que eu tentei ensinar ficaram nas mentes de pelo menos, algumas pessoas. Sinto não ter podido atingir a todos. 

Também consegui, através das minhas histórias, levar um pouco de esperança a todos aqueles que perderam entes queridos, dizendo a eles que a vida continua em outro lugar, independente da ilusão que cultivamos de um adeus para sempre. 

Hoje, sou uma mulher velha. Há muito tempo minha mãe e meu padrasto se foram essa vida. Da minha família, só restaram minha irmã Sara e meus primos, que eu nunca mais encontrei. Sara teve muitos filhos: cinco no total. Ela hoje vive em uma cidade distante da minha, e quase não podemos mais nos encontrar. Mas o amor que temos uma pela outra e nossas histórias e segredos nos mantém sempre unidas, além do tempo e do espaço. 

Eu nunca me casei, nem tive filhos. Dediquei minha vida à missão que os seres da natureza me confiaram. Enquanto termino de escrever essa história, eles estão em volta de mim, me inspirando e amparando. Sei que logo deixarei esta vida. Minha missão aqui está no final. Mas sei que existem uma nova vida e uma nova missão esperando por mim. Espero poder cumpri-la. 



FIM






A RUA DOS AUSENTES - PARTE 11

 Capítulo 11 UM A UM  Ela abriu os olhos e reconheceu o caminho diante dela, por onde já tinha passado, e que a conduziria de volta à mesma ...