sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO VII








O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO VII

Regiane apertava o pirulito que o pai lhe dera, e que estava no bolso do casaco, inconscientemente tentando escondê-lo das outras crianças. Metade dele estava para fora, e ela viu que as outras meninas a estavam olhando com insistência. Ela baixou a cabeça, tímida. Notou que todas eram mais altas que ela. Uma das meninas – uma mulata magrinha com tranças no cabelo – aproximou-se:

-Oi. Meu nome é Dóris. E o seu?
-Regiane.
-Por que você está chorando?
-Eu não quero ficar aqui.
-Por que você veio, então?
-Porque meu pai mandou.
-Onde está a sua mãe, Regiane?

-Ela foi embora, acho...

A outra menina suspirou:

-Eu não tenho mãe, nem pai. Minha avó foi para o céu, e meu avô  me colocou aqui, só que ele nunca veio me ver. Mas aqui é bom. Pelo menos, sempre tem comida.

Naquele momento, Irmã Dulce aproximou-se, e disse:

-Olá, meninas. Duas de vocês estão aqui pela primeira vez... sejam bem-vindas. Hoje não teremos aulas, deixaremos que vocês conheçam umas às outras enquanto brincam juntas no pátio. Gostaria de apresentar as novatas: Regiane e Célia. Digam olá para elas!

As outras disseram um olá em uníssono, de maneira fria e automática, e logo voltaram a ignorar as novatas e também Dóris . Irmã Dulce continuou:

-Podem ir até o pátio agora. Voltarei daqui a uma hora, e as levarei para o almoço, e depois mostrarei o dormitório. Lembrem-se: vocês só podem brincar do lado de cá do portão!

Ao ouvir aquilo, Célia, a outra novata, uma menina loira e gordinha, sussurrou baixinho junto a Dóris: 

-Por que não podemos ir ao outro lado?

-Porque lá é das meninas ricas, as que pagam. Elas tem balanços e escorregas, gangorras, teatrinho, e o chão do lado de lá brilha que nem espelho. E dizem que tomam banhos quentes de manhã, e podem repetir a sobremesa, se quiserem.

Regiane lembrou-se de sua primeira visita à escola, junto com o pai, e das paredes altas e assoalhos polidos. Ficou feliz por não ter sido colocada do outro lado, junto com os fantasmas das pessoas mortas das fotos. Perguntou, timidamente:

-Dóris... por que não podemos ficar com elas?

-Já disse, elas são ricas, e pobres e ricos não devem se misturar. Meu avô vivia dizendo isso. 

-Quantos anos você tem?

-Eu tenho doze, e você?

-Eu tenho... oito.

-Mas você é bem pequena, hein? E você, Célia? Quantos anos tem?

-Eu tenho nove. Eu estudava em outra escola, mas ela fechou.

-Você tem mãe?

-Não.

-E pai?

-Também não. As freiras me mandaram para cá. Acho que as outras meninas foram mandadas para outros lugares. 

As três meninas foram caminhando juntas, e sentaram-se sob uma mangueira. Logo, um grupo ruidoso de três outras meninas grandes apareceram, rindo alto. Dóris foi logo avisando:

-Não se metam com elas! São as irmãs Bia e Dora e a colega delas, Alice. Elas são muito más. Nem olhem muito para elas, porque se elas perceberem, vocês estão fritas. 

As três desviaram os olhares, mas Regiane, que era curiosa, olhou-as de soslaio no exato momento em que a maior delas também a olhava. Elas sustentaram os olhares por alguns segundos, e Regiane voltou a olhar para o chão. Sentiu um calafrio na espinha. Dóris apontou para o pirulito:

-O que você tem aí?

Regiane tentou esconder, mas era tarde.

-Um pirulito que meu pai me deu.

-Divide com a gente, Regiane!

-Mas ele é pequeno demais!

-Não é não! Irmã Dulce disse que a gente nunca deve ser egoísta. Dividimos tudo por aqui!

Dizendo aquilo, Dóris estendeu a mão, e Regiane deu-lhe o pirulito, vacilante. Dóris abriu-o, e com os dentes, partiu-o em três pedaços, dando o maior deles a Regiane. A menina fez cara feia, e 
devolveu-o para ela.

-Não quero! Está babado!

As outras duas riram, e se entreolharam. Célia respondeu:

-Mas você é muito cheia de não me toques, hein? Está bem, eu fico com a sua parte então.

Dóris disse:

-Você logo vai aprender como é que as coisas funcionam por aqui. A gente come o que tem, o que dão para nós, não importa nem se tenha caído no chão. Dividimos os doces que ganhamos nos dias de visita. A Irmã Malvina coloca todos eles dentro de um cesto, e cada uma morde um pedaço, ou então, ninguém come. Às vezes quando tem algum que ela gosta muito, ela pega e leva para ela. Você vai ter que aprender a perder o nojo.

Regiane perguntou:

-Mas por que eu tenho que dividir meus doces com todo mundo?

-Bem... porque a Irmã mandou. (e com voz mais doce):É que tem gente aqui, como eu, que não tem visita nunca, e se não fosse assim, nunca poderiam comer doces.

O tempo passou rapidamente, e logo Irmã Dulce voltou ao pátio a fim de conduzir as meninas ao refeitório. Regiane ficou surpresa diante da mesa muito comprida, onde havia pratos, colheres e canecas de latão enfileirados, e se perguntou onde estaria  a louça branca, como na casa das tias, quando a Madre Superiora – Irmã Malvina – fez um gesto para que todas se sentassem. As meninas fizeram silêncio, e Irmã Malvina sinalizou às assistentes, que começaram a servir a comida: feijão, arroz, legumes cozidos, um pequeno pedaço de carne sebosa e uma laranja para cada menina. Para beber, um pouco de leite. Regiane não estava acostumada a beber leite durante as refeições, e virando-se para Irmã Malvina, que estava de pé atrás dela, disse:

-Eu não quero o leite!

As outras meninas fizeram um silêncio sepulcral, parando de comer, e todos os olhares se dirigiram a Regiane. Irmã Malvina olhou a menina com seus olhos que eram frias rajadas de censura, e respondeu com voz cortante:

-Aqui todos comem o que estiver sobre a mesa. Beba seu leite agora. Todo ele.

Regiane engoliu em seco:

-Mas eu não quero!

Irmã Malvina berrou:

-Saia da mesa imediatamente!

Irmã Dulce aproximou-se, tentando consertar a situação:

-Irmã, trata-se de uma das novatas, ela ainda não conhece as regras...

-Então está na hora de começar a aprender! Saia da mesa, mocinha. Irmã, leve a menina para o dormitório. Agora!

-Mas Madre, ela nem sequer comeu ainda...

-Comerá na hora do lanche. Guarde o prato dela e o leite na cozinha, e ela o terá de volta em algumas horas.

Irmã Dulce nada podia fazer contra as ordens da madre superiora, e pegando Regiane pela mão, levou-a ao dormitório, que estava vazio. Mais uma vez, a menina surpreendeu-se com as camas cobertas por cobertores cinzentos, enfileiradas umas bem juntinho das outras, com espaço apenas para que as meninas caminhassem espremidas entre elas. Contou-as a dedo: havia vinte delas. Levou-a a uma cama sob uma grande janela, dizendo:

-Aqui é sua cama. Guarde bem o lugar, o número é 16. Suas coisas estão guardadas dentro do seu armário, que fica no corredor, e tem o mesmo número. Aqui está a sua chave. Não a perca! Você conhece os números, não conhece?

-Sim! E eu sei ler e escrever, porque as minhas tias me ensinaram.

-Então você deve ser uma menina bastante esperta, Regiane.

Dizendo aquilo, Irmã Dulce colocou a chave, que estava em uma correntinha prateada junto com uma medalha de Nossa Senhora, no pescoço de Regiane. A menina sentiu que naquele ambiente desconhecido, Irmã Dulce poderia ser uma aliada. Sentia-se tranquila na presença dela, e achava que podia perguntar o que quisesse, e ela responderia com gentileza. 

-Por que dormimos todas juntas?

-Porque não há espaço para que cada menina tenha seu próprio quarto.

Regiane olhou para o assoalho de madeira, fosco mas aparentando limpeza, e cheirando a desinfetante:

-Por que o chão daqui não brilha? Lá no outro prédio, o chão brilha como espelho!

-É que é mais prático assim, Regiane. Assoalhos brilhosos dão muito trabalho, e arranham com facilidade. Mas veja, é tudo muito limpo.

Ela concordou com a cabeça. Passou a mãozinha sobre o cobertor, e sentiu a aspereza da lã. 

-Isso espeta!

A freira riu:

-Não se preocupe, tem um lençol bem macio por baixo. Amanhã de manhã você terá que acordar assim que ouvir o sino tocar; daí, você tem que se vestir com o camisolão de banho.

Irmã Dulce mostrou a ela uma camisola feia e larga que ficava pendurada na cabeceira da cama. 

Regiane olhou-a, curiosa.

-A gente tem que vestir isso para tomar banho? Nunca vi ninguém tomar banho de roupa. Como é que a gente vai se ensaboar?

-Bem, você passa o sabão por baixo da roupa. E depois, enxagua.

-Por que eu não posso tomar banho sem essa camisolona?

Irmão Dulce tentou soar convincente, embora não acreditasse nas próprias palavras:

-Porque a nudez é um pecado mortal.

-E o que é um pecado mortal?

-É alguma coisa feia diante dos olhos de Deus. 

-Uma coisa errada?

-Isso mesmo.

A menina recordou-se das vezes em que Celeste a acusara, e à sua mãe, de serem pecadoras, enumerando os motivos que justificavam suas teorias. Ela era uma pecadora toda vez que os meninos – Romualdo e Rômulo – tentavam bater nela, e ela se defendia, jogando coisas sobre eles. Era uma pecadora quando se recusava a comer a comida que estava com gosto esquisito, pois sabia que se comesse, passaria muito mal. Era uma pecadora quando chorava enquanto Celeste tentava desembaraçar seus cabelos, puxando-os com força, antes dos dias de visita do pai. E sua mãe, segundo Celeste, era a maior de todos os pecadores, pois deitara-se com vários homens e tivera filhos ilegítimos. 

-Eu sou uma pecadora.

Aquela declaração feita por uma menina tão pequena, tocou o coração de Irmã Dulce. A tarde deitava seus raios de sol sobre as caminhas arrumadas, os raios brancos em feixes. Lembrou-se de sua própria infância, quando fora deixada naquela mesma escola aos dezesseis anos de idade, há muitos anos, com um filho na barriga. Sorriu:

-Querida, todos somos pecadores.


(continua...)







segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO VI






O ANJO NO PORÃO
CAPÍTULO VI

Régis só tinha um lugar para onde levar Regiane: de volta ao casarão. Chegando lá, a criança estava tão abalada que ainda não conseguia conter os soluços, e seu pequeno corpo tremia. Penalizadas, Fiorela e Rosa a acolheram, dando-lhe um banho quente, penteando seus cabelos embaraçados – que precisaram ser cortados à altura das orelhas, de tão cheia de piolhos que a menina estava – e deram-lhe comida decente. Mais tarde, enquanto Rosa cantava para ela dormir, esperando que o dia seguinte pudesse apagar da cabeça de Regiane aqueles acontecimentos tristes, Fiorela e Régis ficaram conversando na cozinha. Estavam sentados diante um do outro, ambos segurando canecas de café preto. A luz difusa de uma tarde nebulosa entrava pela enorme janela da cozinha. Acariciando a barriga crescida, Fiorela quebrou o silêncio:

-Régis, como você pode ver, vou ter meu bebê por esses dias, e não posso olhar Regiane. E Rosa vai começar a trabalhar em um escritório de contabilidade, não vai ter tempo de olhar por ela. 

Régis concordou com a cabeça.

-Não sei mais o que fazer. Preciso trabalhar para viver e para sustentá-la. Já tentei falar com Hanna, fazer com que ela aceitasse Regiane, mas parece que ela nutre uma espécie de ressentimento, como se a menina tivesse culpa de ser filha de Vicentina. 

Naquele momento, João entrou na cozinha, já ciente de tudo o que acontecera, pois encontrara com Rosa, que lhe contou tudo. 

- Caro Régis, eu posso tentar falar com Padre Paulo. Ele conhece muitas escolas, internatos onde você poderia deixar Regiane. Pelo menos, ela receberia uma boa educação. Há a possibilidade de ela ser aceita em uma destas escolas, pois estamos no começo do ano letivo.

Régis não gostava da ideia de separar a filha da família, internando-a em uma escola de freiras, mas acabou concordando com João que aquela era a melhor alternativa, pelo menos por enquanto. No dia seguinte, Padre Paulo conseguiu que a madre superiora do colégio Nossa Senhora da Ajuda, Irmã Malvina, o recebesse, e à filha. 

Ainda traumatizada pelos últimos meses, Regiane adentrou a escola silenciosa, pois era o período de final de férias e muitas das meninas - as que não eram órfãs - tinham ido para casa. A escola funcionava em um prédio enorme, de longos corredores e salões de pisos de tábua corrida que faziam com que seus passos ecoassem fantasmagoricamente. Regiane nunca vira um lugar tão limpo e bonito em toda a sua vida, mas também nunca vira um lugar tão grande, com paredes tão altas e brancas, enfeitadas com quadros que retratavam rostos sérios de pessoas que ela nunca conhecera e que pareciam estar todas mortas há muito tempo. Achou que teria medo de viver ali.
Apontou os quadros, e o pai explicou-lhe que eram padres e freiras que tinham passado por ali e sido importantes, e por isso, suas fotografias estavam penduradas naquelas paredes. Regiane apontou para um quadro de um homem seminu, que pendia do alto de uma cruz, e sentiu pena dele, pois ele parecia estar sentindo muita dor. O pai explicou que aquele era o Nosso Senhor, que morrera na cruz para salvar a todos. Ela não entendeu, mas concordou com a cabeça em silêncio. Agarrava-se à mão do pai, tentando ficar o mais junto dele possível. 

Ainda tiveram que esperar alguns minutos antes que Irmã Malvina os recebesse, e enquanto isso, o pai olhou pela janela e avistou um balanço no pátio de terra da escola. Achou que Regiane ficaria contente em balançar ali, e descendo as escadas de mármore imaculadamente branco, sentou-a no balanço e começou a empurrar a filha, que ria, seus risos entrecortados pelo ruído das engrenagens mal lubrificadas das correntes do balanço. Ficaram algum tempo entretidos naquele idílio, quando uma voz metálica, vinda da janela, chamou-os:

-Os balanços são apenas para as alunas particulares da escola! 

Régis estremeceu, retirando a filha do balanço. A mulher vestida de preto fez sinal para que se aproximassem, e eles voltaram a entrar na escola. Irmã Malvina tinha lábios finos e olhos azuis que não revelavam emoções. Era difícil dizer exatamente quantos anos ela poderia ter, mas as rugas em volta da boca revelavam que já passava dos cinquenta. Regiane tentou adivinhar a cor de seus cabelos, mas eles estavam totalmente escondidos debaixo do traje de freira. Irmã Malvina olhou-a, e Regiane estremeceu, aconchegando-se ainda mais às pernas do pai. Irmã Malvina dirigiu-se a Régis, cumprimentando-o de maneira fria:

-Em que posso ajudá-los?

Régis pigarreou:

-Meu nome é Régis Costa, e esta é minha filha Regiane Leme. Padre Paulo intercedeu em nosso favor por uma vaga no internato público.

Irmã Malvina respirou fundo, fazendo um sinal com a mão para que ele se calasse:

-Ah, sim, já sei da história. Esta é a menina ilegítima.

Régis não gostou da maneira como a freira referiu-se à sua menina, mas teve que engolir em seco e ser gentil, pois precisava da vaga. Regiane não entendeu o comentário maldoso da mulher, mas sabia que naquele momento, seu destino estava sendo selado, e sentia a ansiedade crescente tomando conta dela, fazendo seu coração bater mais forte e suas mãozinhas suarem de medo e insegurança. Será que seria maltratada novamente naquele lugar, como o homem pendurado na cruz? Em sua inocência, Regiane pensava que ele tinha sido posto naquela situação por Irmã Malvina. O pai acariciou a cabeça da filha, a fim de tranquiliza-la, e Irmã Malvina continuou:

-Em primeiro lugar, não aceitamos crianças ilegítimas nesta escola, filhos do pecado. Se quiser que ela seja aceita, precisará dar a ela seu sobrenome. Em segundo lugar, só aceitamos crianças a partir dos oito anos de idade.

Régis gelou, pois a filha mal acabara de completar seis anos; achou que só tinha uma alternativa: mentir. Mentir, e depois tentar solucionar o problema, pois conhecia alguém que trabalhava no cartório, e poderia ajuda-lo, quem sabe, acrescentando dois anos a mais de vida à filha.

-Minha filha tem oito anos, Irmã.

-Não parece. Ela é franzina. Mal alimentada, quem sabe. Por ter crescido jogada em casas alheias ou de má reputação. Os pais irresponsáveis fazem com que os filhos paguem pela sua insensatez. Estes anjos que deveriam nascer inocentes, sob a proteção divina, já nascem com as almas manchadas pela volúpia dos pais. Lugares como este, que eu administro com mãos de ferro, são uma tentativa de redimir estas almas e coloca-las no caminho de Deus. 

Régis respirou profundamente, e tentou sorrir:

-A senhora tem toda razão. Peço que considere o caso de minha filha com caridade, pois tenho certeza que a senhora é uma pessoa de Deus, justa, bondosa, e poderá ajudar-me a resgatar a alma de minha menina, esta pequena criança que de nada tem culpa. 

A irmã, gostando de ser elogiada, amaciou um pouco a voz, relaxando as feições:

-Traga-a na segunda-feira de manhã, com a certidão de nascimento e os artigos que estão nesta lista (ela tirou do bolso do hábito uma longa folha de papel, e Régis preocupou-se, pois não sabia se poderia comprar todos aqueles itens), mas mesmo assim, assentiu com a cabeça e agradeceu à irmã 
pela atenção e generosidade. 

Ele parou na calçada, e olhou a lista: Um uniforme de gala, dois uniformes para o dia a dia, dois pares de sapatos pretos, alguns pares de meias, sabonetes, roupas íntimas, livros, cadernos, lápis, borrachas, uma caixa de lápis de cor... a lista parecia interminável! Mas a sua maior preocupação seria convencer seu amigo a emitir uma certidão de nascimento dando à sua filha dois anos a mais. Alheia às preocupações do pai, Regiane parecia aliviada por deixar o ambiente opressor da escola para trás. Corria à frente do pai, parando às vezes para esperar por ele, enquanto cantarolava uma cantiga de roda que aprendera de Rosa.
Imediatamente, dirigiu-se ao cartório, e explicou a situação ao amigo, que olhava penalizado para a criança. Sabia de quem ela era filha, pois deitara-se com Vicentina algumas vezes no bordel, e achou que devia à menina aquela chance de ter uma vida digna. Imediatamente, emitiu a certidão de nascimento, e Regiane Leme passou a chamar-se Regiane Costa, e o pai explicou a ela que era seu aniversário e que ela agora contava com oito anos de idade. A menina contou nos dedos:

-Mas papai... olhe... um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. O que aconteceu com o sete? 

O pai sorriu da esperteza da menina:

-Bem, digamos que você é uma menina tão esperta, que não precisou passar pelo sete. o sete foi... pulado! Não se esqueça: se alguém perguntar a sua idade, diga que tem oito anos, está bem? Isso é muito importante! Lembre-se: oito anos! E seu nome agora é Regiane Costa. Como o papai.
Ela concordou com a cabeça, e o amigo de Régis sorriu, estendendo-lhe a nova certidão:

-Você tem uma bela menina. Cuide bem dela.

Régis agradeceu, pegando o envelope pardo com a certidão de nascimento da filha, e levando Regiane pela mão, sentiu que seus problemas começavam a serem solucionados. A tarde ensolarada convidava a um passeio pela Praça Ruy Barbosa, onde ele passou algum tempo com a filha, empurrando-a nos balanços e gangorras e comprando-lhe presentinhos baratos de vendedores ambulantes. Para ele, era como uma despedida. Sabia que teria que retornar à Niterói na segunda-feira, e que só poderia voltar a ver a filha dali a um mês. 

Conseguiu dinheiro emprestado com as irmãs a fim de comprar o material escolar e os uniformes. Rosa concordou em levar a menina às compras no dia seguinte. Todos pareciam aliviados com a solução, como se estivessem livres de um grande problema, e diziam a si mesmos e uns aos outros que finalmente a menina seria encaminhada a um futuro cristão. Naquela noite, Regiane foi mimada durante o jantar por todos na casa. Deixaram com que ela comesse doces antes do jantar, brincasse com os gatos da tia na cama – o que era proibido – e não a obrigaram a comer as verduras durante o jantar. A menina sentia-se feliz e amada pela primeira vez em anos. 

A segunda-feira chegou como um furacão: Fiorela começara a sentir as dores do parto, sendo levada por João ao hospital. Rosa arrumou as malas de Regiane depressa, e abraçando a menina, desejou-lhe boa sorte:

-Eu sei que prometi acompanhar você até a escola, mas não vai ser possível. A tia Fiorela vai ter o bebê hoje, querida, e quando você voltar, terá mais um priminho ou priminha! Não é bom?

Regiane fez cara de choro:

-Mas quando eu vou voltar? Papai disse que essa escola é diferente, que eu vou ter que morar lá!
Rosa acariciou o rosto da menina:

-Vai ser divertido, Regiane! Haverá outras crianças como você, e o lugar é bonito, grande... Tem até um jardim. E não se esqueça: estaremos todos pensando em você. Se sentir saudades, basta fechar os olhos e pensar em nós, e nós também estaremos pensando em você. Não se esqueça...

A menina deu um longo abraço na tia, e o pai a levou. Rosa ficou olhando eles se afastarem, com lágrimas nos olhos. Sentia-se culpada por não olhar a sobrinha, mas ao mesmo tempo, sabia que Regiane não era sua responsabilidade, e que tinha feito por ela tudo o que podia. Precisava começar em seu novo trabalho na semana seguinte, e não teria tempo de olhar a menina, e a irmã, com os dois pequenos, também não daria conta... Régis não podia leva-la com ele, pois Hanna não a aceitava. A escola interna era a melhor solução.

Prometeu a si mesma visitar a sobrinha frequentemente, mas o trabalho, as tarefas da casa, o novo bebê da irmã, e também a tristeza que ela carregava dentro de si acabavam enchendo todo o seu tempo livre. À janela via Alfredo passando na rua, de braços dados com sua esposa grávida (a casa deles era próxima a dela), e às vezes ele erguia os olhos disfarçadamente por um breve instante, a fim de olhar para ela. Naqueles momentos, Rosa sentia que seu coração derretia-se como chumbo quente, e ela não conseguia deixar de sentir ressentimento por Vicentina, pois mal ou bem, fora ela a culpada de sua desgraça. E Regiane era uma cópia em miniatura da mãe. Tinha os mesmos olhos tristes, os lábios finos, cabelos castanho-alourados. Até a voz prometia tornar-se igual à da mãe. Estar com Regiane era como recordar-se do que acontecera várias vezes ao dia. Amava a sobrinha, mas não poderia ficar perto dela a vida inteira: temia aprender a odiá-la.

Já Fiorela sentia por Regiane um afeto pequeno e limitado, apenas por ser filha de seu irmão e sua parenta de sangue. Não tinha muita paciência com a menina, mal dirigia a palavra a ela e tentava ficar longe da menina a maior parte do tempo possível. Tratava-a com uma bondade fria, impessoal. Não gostava muito que Regiane e sua pequena filha Lea brincassem juntas. Também não se sentia tranquila quando Regiane ficava à janela da casa, olhando o movimento das ruas, pois era naqueles momentos que ela desaparecia de repente e eles a encontravam horas depois nos lugares mais improváveis: sob uma ponte, sentada em bancos de praça, em mesas de restaurantes ou conversando com estranhos nas ruas. Naquelas horas, Fiorela sentia-se muito preocupada, e principalmente, culpada: e se eles nunca mais a encontrassem? E se a menina fosse levada por alguma pessoa perversa? Afinal, era parte da família! Por isso, quando Régis chegou em casa dizendo que conseguira a vaga na escola interna, Fiorela sentiu-se aliviada.

João sentia muita pena da menina, e dava a ela tudo o que comprava para sua própria filha: se presenteasse Lea com um vestido, levava para Regiane um parecido; bonecas ou balas, o que comprasse para a filha, comprava também para Regiane. Quando Regiane foi morar na escola interna, 
Lea tinha apenas dois anos de idade, mas parecia sentir falta da prima. Andava pela casa em seus passos ainda imprecisos, chamando por ela: “Giane! Giane!”

Ainda era bem de manhã quando Régis chegou à escola para deixar a filha; não passava das oito. Estava tão nervoso, que apesar do frio matinal, ele suava sob o chapéu. A menina também parecia calada e ansiosa. Ao chegarem lá, tudo estava muito diferente: ao invés do silêncio da primeira vez, pai e filha encontraram muito movimento: as crianças andavam pelo pátio, sendo encaminhadas aos seus dormitórios pelas freiras. Algumas despediam-se de pais ou mães, ou quem sabe, adultos que eram responsáveis por elas. Algumas meninas menores choravam, enquanto outras rendiam-se ao seu destino. Régis percebeu que havia um grupo de meninas que eram encaminhadas para as alas mais bonitas da escola – eram as alunas particulares. Chegavam em carros, às vezes, com motoristas. Eram bem vestidas e traziam laços nos cabelos. Até mesmo os uniformes eram diferentes, mais elegantes. As crianças órfãs ou cujos pais não pagavam mensalidades seguiam por um portão lateral, onde um prédio antigo, cuja tinta descascava aqui e ali, as esperava, nos fundos da escola. O pátio não era tão bonito, e não havia balanços ou jardins, apenas um chão de terra batida. Régis sentiu-se apreensivo, mas não tinha escolha: Regiane teria que ficar ali.

Começou a despedir-se da menina, ficando ajoelhado a fim de colocar-se à altura dela: 

-Filhinha, papai virá visita-la assim que possível. Você vai ser muito feliz aqui, prometo.

-Mas..  eu não conheço ninguém, pai... estou com medo... por favor, não me deixe aqui sozinha!

Régis secou uma lágrima que escorria do canto do olho:
-Você não estará sozinha! Olhe para todas estas outras crianças: como você, elas também vão morar aqui, e vocês vão poder brincar juntas. Você vai estudar, tornar-se alguém importante, e eu prometo, virei vê-la assim que puder. Seja forte, não chore, Regiane... olhe... comprei isso para você.
Ele tirou do bolso um pirulito todo colorido, redondo e grande, entregando-o à Regiane. Ela o pegou, insegura, ainda chorando:

-Obrigada, papai... mas eu não quero ficar aqui... cadê a mamãe? Por que ela não quer ficar comigo?

Régis baixou os olhos, segurando as mãos da filha:

-A mamãe está sempre com você, Regiane, já conversamos sobre isso... só que ela a olha lá do céu, e apesar de ver tudo o que você faz, não pode conversar com você...

-A Dona Celeste disse que ela foi para o inferno, porque era uma pecadora. O que é uma pecadora?

O pai não respondeu, mas disse:

-Esqueça tudo o que aquela mulher lhe disse. Ela é uma mentirosa, e papai cometeu um grande erro deixando ela tomar conta de você. Sua mãe era uma mulher boa, e muito bonita e jovem... você deve orgulhar-se dela. 

Regiane concordou com a cabeça, enxugando os olhos. Régis sentiu que alguém se aproximava deles, e ergueu-se. Uma mulher jovem, usando hábito, apresentou-se:

-Olá. Sou a irmã Dulce, responsável pelas recém-chegadas. (dirigindo-se a Regiane) Você deve ser a pequena Regiane. Acertei?

Régis cumprimentou-a, com um aceno respeitoso de cabeça, retirando o chapéu. Ela era uma mulher jovem e bonita, de feições suaves, e bem diferente da irmã Mal-humorada – a Madre Superiora – que os recepcionara quando ali estiveram pela primeira vez. O sorriso dela deixou-o mais tranquilo. Irmã Dulce pegou Regiane das mãos do pai, dizendo:

-Já despediu-se de seu pai, Regiane? 

A menina começou a chorar. Irmã Dulce fez-lhe uma carícia tímida, tentando consolá-la:

-Não se preocupe, você vai ficar bem, querida. Aqui as crianças tem tudo o que necessitam e você vai ter uma cama só sua, em um quarto grande com outras meninas... vai ter aulas, aprender sobre muitas coisas... quantos anos você tem?

Mais que depressa, Regiane respondeu:

-Seis! (E olhando para o rosto alarmado do pai:) quero dizer... oito! O sete passou direto, não é papai?

Régis tentou sorrir, e desconversar:

-Ela tem oito anos... recém-completados. É pequena, miúda como a mãe... mas ela tem oito anos.
Irmã Dulce trocou com ele um olhar cúmplice, e um sorriso que o tranquilizou:

-Com certeza, ela tem oito anos. 

Olhando para Regiane, a freira respirou fundo:

-Bem... vamos? 

Regiane aceitou a mão gentil que lhe era estendida, e foi andando com Irmã Dulce, mas sempre olhando para trás, para o pai que apertava o chapéu nas mãos, vendo a filha desaparecer portão adentro, entre as outras crianças.

(CONTINUA...)


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO V








O ANJO NO PORTÃO 
CAPÌTULO V




-Régis, você vai ter que levar a menina embora. Fizemos de tudo que foi possível, mas ela vive fugindo de casa! Imagine, nós a encontramos após duas horas de procura, sentada à mesa de um restaurante tomando um prato de sopa! O garçom nos olhou como se fôssemos um casal de irresponsáveis e disse que já estava para chamar a polícia. Estou grávida novamente, não posso tomar conta dela... Rosa mal pode tomar conta de si mesma, só vive trancada...

-Mas Fiorela, onde poderei deixa-la? Não posso leva-la para casa de Madame... e ainda tem Hanna, ela não entenderia!

-Isto é problema seu. Você sabe o quanto gostamos de Regiane, mas ela é responsabilidade sua, meu irmão. Não nossa! Tenho um bebê pequeno, e estou grávida de meu próximo filho... não posso ficar me preocupando com ela! Vai mal na escola, foge de casa e fica andando pela rua. É perigoso! É responsabilidade demais! Ela já tem seis anos, e é madura demais para a idade... tenho medo do que possa acontecer a ela em uma de suas fugas. Regiane é uma menina muito rebelde. Você é o pai dela, e terá que assumir a responsabilidade.

-Acredito que este problema se deva ao fato de Regiane ter perdido a mãe tão cedo...

-Pode ser... mas eu acredito que faça parte da personalidade dela. Mas seja qual for o motivo, precisa ser controlado. E eu não tenho tempo, paciência ou até mesmo condições físicas. 

Uma semana após esta conversa,. Régis levou a filha para tomar um sorvete. Enquanto a menina saboreava sua taça de sorvete de morango com calda de chocolate, ele a observava e via nela traços cada vez mais fortes da falecida mãe. Após a morte da mãe de sua filha, Régis mudara; tornara-se mais responsável, maduro e religioso. Esqueceu os velhos companheiros de farra, as longas caçadas regadas à uísque, os bordéis e as muitas mulheres. Vivia para Hanna e os filhos. Gostaria que Regiane conhecesse o irmão, mas Hanna não admitia que a filha de uma prostituta pudesse corromper a alma pura de seu filho. Não desejava aquela sombra em suas vidas. 
Régis esperou que a menina terminasse seu sorvete, e após limpar o cantinho de sua boca com um guardanapo de papel, anunciou, tentando fazer parecer à filha que estava dando a ela a melhor das notícias:

-Regiane, preciso contar-lhe uma novidade: você vai se mudar para outra casa!

Regiane olhou para o pai, e ele notou a tensão nos olhos dela. A criança estava alarmada.

-Mas... eu gosto de morar no casarão com a tia Rosa, a tia Fiorela, o tio João e a priminha!

-Mas filha, você vai para um lugar bem melhor! Sabe a moça que tomou conta da mamãe? Ela agora tem uma porção de crianças aos cuidados dela, e vai cuidar de você também. Você vai ter amiguinhos da sua idade para brincar com você.

Regiane, que era de poucos amigos, ensaiou uma pirraça:

-Mas eu não quero! Prefiro morar no casarão. Lá eu tenho um quarto só meu, e posso brincar com os gatos da Tia Rosa!

Régis suspirou:

-Não, você não entendeu: lá também tem gatos, e um cachorro. Você não queria ter um cachorro?
Ela concordou com a cabeça.

-Então, filha! E a escola é bem mais perto de sua nova casa, não será necessário acordar tão cedo.
E dali a dois dias, Régis levava a menina pela mão, e uma maleta com seus vestidos e demais roupinhas. Regiane olhou para trás, e acenou para suas tias, que estavam à porta de casa e lhe acenaram de volta. Na sua inocência, estava quase feliz.

Chegaram a uma casa branca e simples, de quintal de terra, onde dois meninos maiores que ela brincavam, mas pararam de brincar assim que os viram. Um deles correu para dentro de casa e chamou Celeste, que veio atende-los limpando as mãos em um avental. Imediatamente, Regiane lembrou-se dela na casa da mãe, naquele dia em que Tia Rosa a levara até lá, e no quanto Tia Rosa gritou com ela, chamando-a de nomes cujo significado ela ignorava. Não gostou dela logo de primeira, e teve a impressão – apesar do sorriso de Celeste – que também não era apreciada. Agarrou-se à perna do pai quando Celeste aproximou-se, pegando a mala de Regiane. Ele fez as apresentações:

-Regiane, esta é Celeste, ela vai tomar conta de você. Aqueles são os netos dela, Romualdo e Rômulo. 

Celeste passou a mão pesada sobre a cabeça da menina, desmanchando o seu laço azul:
-Não se preocupe, Régis. Vamos nos dar muito bem. Não é, Regiane?

A menina, arrumando os cabelos que a outra lhe despenteara, não respondeu. Olhando em volta, não viu sinal dos cães e gatos dos quais o pai lhe falara, e nem das muitas crianças que iriam brincar com ela - e ela tinha certeza de que Rômulo e Romualdo não pareciam nada amigáveis. Olhou para o pai:

-Não quero ficar aqui.

Ele insistiu:

-Por favor, filha, não crie problemas. Celeste é boa, será como uma mãe para você. Virei vê-la sempre que puder, e nada lhe faltará. Tia Rosa prometeu que a levará para os finais de semana sempre que possível. Seja uma boa menina.

Dizendo aquilo, ele colocou-se de joelhos para ficar da altura dela, e abraçou-a forte. Ela não queria larga-lo, e choramingou:

-Eu não quero ficar aqui, papai... eu não gosto dela (apontou para Celeste, que devolveu-lhe um olhar gelado). Essa casa é feia.

-Não diga isso, filha! É falta de educação.

Ela começou a chorar, e Régis, de coração partido, achou que seria melhor despedir-se de vez, como Celeste aconselhara:

-Vá agora, Régis, ou a menina não vai parar de chorar nunca. É questão de costume, você vai ver. Fique tranquilo, vou cuidar tão bem dela quanto cuidei da mãe.

Ele gelou ao ouvir aquelas palavras, mas não tinha outra alternativa senão deixa-la com Celeste. Já na calçada, ainda podia ouvir os gritos e soluços da filha. Apertou o passo, virando a esquina.
Celeste pegou Regiane pela mão, levando-a com ela para dentro da casa, seguidas pelos dois garotos, Romualdo e Rômulo, que iam zombando das lágrimas dela. Abriu lima porta que dava para um cômodo escuro e feio, com paredes mofadas e uma pequena janela que dava para o telhado de um galinheiro, e foi logo dizendo:

-Bem, se quiser ser feliz nesta casa, siga as regras. E elas são: faça tudo o que eu mandar sem ranhetar!

Dizendo aquilo, abriu a mala da menina e começou a vasculhar as roupinhas, separando os melhores vestidos em uma pilha sobre a cama, e dizendo:

-Estes estão bons demais para ficar aqui em casa. Vou mandá-los às minhas netinhas de presente. Para correr no quintal, você não precisa de vestidos rendados e cheios de laçarotes. Basta usar estes, mais simples.

Regiane ia protestar, mas Celeste calou-a com um grito que a fez estremecer:

-NEM UMA PALAVRA! Você precisa entender quem é que manda aqui. (Os meninos davam gargalhadas, enquanto lágrimas quentes desciam do rosto de Regiane). A menina abraçou sua única boneca, como se a estivesse protegendo das garras de Celeste. Após separar as roupas, Celeste saiu, batendo a porta do quarto que trancou por fora, dizendo:

-Eu a chamarei na hora do jantar. Enquanto isso, nem um pio!

Ainda era de manhã, e Regiane ficou sentada naquela cama que cheirava a colchão de crina mofado, abraçada à sua boneca, com medo até de respirar muito alto. As sombras da noite começaram a entrar pela janela, e ela sentiu frio. Também tinha fome e sede. Escutava Celeste chamando os meninos para o almoço, e mais tarde, para o lanche, o barulho das xícaras, talheres e copos aumentando seu apetite. Mas ninguém a convidava para comer. Somente às seis horas da tarde teve permissão para sair do quarto e sentar-se à mesa com eles. Celeste deu-lhe um pedaço de pão e serviu-lhe uma concha de sopa, que ela devorou. Depois, tomou um copo de leite que já começava a azedar, e que causou-lhe uma disenteria que a fez sujar os lençóis, pois a porta estava trancada por fora e ela não tinha acesso ao banheiro. Na manhã seguinte, Celeste bateu nela por conta do acidente noturno, fazendo com que ela ficasse nua no quintal a manhã toda, enquanto suas roupas secavam. Os meninos riam dela, e atiravam-lhe pequenas pedrinhas de barro que a deixavam ainda mais suja. Ainda sentia cólicas, e escondeu-se em um matagal por trás da casa para aliviar seu intestino. Não tinha com o que limpar-se. Sentia-se suja, com frio, com fome e ao mesmo tempo, enjoada. Vomitou duas vezes, e ficou muito pálida. 

Celeste agarrou-a pelos cabelos, dando-lhe um banho de bacia na cozinha. Depois, deu-lhe roupas velhas de menino para ela vestir, e serviu-lhe um copo de água com a mesma sopa do dia anterior. Quando Regiane foi para o seu quarto, logo procurou por sua boneca, que deixara sobre a cama, mas não a encontrou. Pensou em perguntar a Celeste se a tinha visto, mas ficou com medo, e saiu para o quintal a procura dela. Encontrou-a – ou melhor, encontrou seus restos carbonizados – ardendo em uma fogueira. Não conseguiu conter seu grito de horror e ódio, enquanto os meninos riam dela às gargalhadas. Avançou sobre Rômulo, o menor deles, derrubando-o no chão e socando-o como podia, até que sentiu as mãos do menino maior puxando-a de cima do irmão, cujo nariz sangrava, e deitando-a no chão, ele subiu sobre ela, enchendo seu rosto de tapas. Regiane gritava e chutava, mas ninguém vinha acudi-la. De repente, ela olhou para o lado e viu as chinelas de Celeste, que se aproximava, levantando poeira do chão de terra.

Os meninos correram quando a viram, deixando Regiane caída no chão, o rosto vermelho pelos tapas e as roupas e cabelos sujos de terra. Ela não teve tempo de se levantar, e Celeste mais uma vez agarrou-a pelos cabelos, levou-a para a cozinha, deu-lhe um banho de água fria, e a fez vestir as mesmas roupas, que sacudira à janela, mas estavam sujas de terra. Seus gestos eram brutos, e machucavam a menina, que não se atrevia a reclamar. Estava tão apavorada, que parara de chorar.
À noite, no escuro do quarto, ela respirou fundo e sentiu o cheiro do galinheiro entrando pela janela. Sombras dançavam nas paredes. Ela sentia-se muito sozinha, e chorou por si mesma. 
Celeste advertiu-a sobre não contar nada a Régis ou a ninguém sobre o que se passava na casa, ou ela a afogaria no tanque dos patos. Apavorada, a menina ficava em silêncio. Quando o pai a visitava, Celeste banhava-a, desembaraçava seus os cabelos, e vestia nela um dos vestidos bonitos. O pai achava estranha a atitude calada da filha, mas se perguntava se ela estava sendo bem tratada, Regiane deparava com os olhos de Celeste fixos nela, e engolindo em seco, concordava com a cabeça. 
Seu martírio durou cerca de dois meses e meio, até que Régis percebeu que a menina esfregava repetidamente um local sobre as costelas. Ergueu seu vestido, e deparou com uma mancha azulada, que cobria parte da lateral de seu corpo. Apavorado, foi ter com Celeste, que explicou que a menina caíra do balanço. Perguntou à filha se aquilo era verdade, e ela concordou com a cabeça. Mas Régis fingiu despedir-se da filha e de Celeste e foi ter com uma vizinha, que contou a ele que Regiane era frequentemente surrada, que Celeste não a levava à escola todos os dias e que os dois meninos praticavam com ela todo tipo de tortura, inclusive eles a amarravam em uma árvore e a fustigavam com um bastão, dizendo que ela era uma índia, e portanto, de raça inferior a dos homens brancos.
Enfurecido, Régis voltou à casa de Celeste. Silenciosamente, aproximou-se da janela e escutou o seguinte monólogo:

-Você está aqui porque eu a recebi, sou uma mulher caridosa, pois ninguém mais quis você porque sua mãe era uma puta. Você sabe o que é isso? Significa uma mulher da vida, perdida, vagabunda que se deita com muitos homens em uma só noite e faz muitas coisas feias com eles. Nem mesmo suas tias querem ficar com você. Acha mesmo que elas se importam? Nem vieram visita-la! Seu pai a abandonou, e o que acontece com você não é da conta de ninguém. Você é uma enjeitada! Merece apanhar, isso sim!

Régis entrou na casa dando um chute na porta. Pegou amenina no colo para leva-la embora, mas antes de sair, quebrou todos os móveis da casa. Celeste gritava, chamando-o de louco e dizendo que ia chamar a polícia. 

Enquanto isso, os dois meninos correram, escondendo-se no matagal. Quando ele acabou de quebrar tudo o que queria, parou diante de Celeste, que imediatamente parou de vociferar contra ele, aquietando-se de medo. Os dois se encararam por um longo tempo, no qual Celeste sentiu-se apavorada pelo que poderia acontecer em seguida. Então, Régis deu meia volta e saiu da casa, levando a filha, que chorava. 


(CONTINUA...)





terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO IV








O ANJO NO PORÃO
CAPÍTULO IV



Deitada em sua humilde cama, Vicentina pensava na vida que tivera, e não na que ainda lhe restava – ela instintivamente sabia que não tinha muito tempo, e desejava deixar de viver, e quando pensava no futuro que não teria, sentia alívio. Sua amargura teria fim, e assim como suas preocupações com o destino dos filhos (principalmente, com o destino de Regiane), já que ela não  via esperanças de uma vida melhor. Nenhum homem se casaria com ela, e se continuasse vivendo, estaria condenada a levar aquela vida difícil como prostituta, a ser apontada nas ruas pelas mulheres dos muitos homens que a usavam, enquanto estas trocavam de calçada quando ela passasse, e também a ver seus filhos crescerem longe dela. Para Regiane, o passado da mãe poderia condená-la ao mesmo destino, pois as pessoas eram cruéis e preconceituosas. 

O fato de haver sido expulsa de casa pelo pai, com quem nunca tivera muita afinidade, não a magoava; porém, saber que o irmão, mesmo ciente de sua doença, não a procurara, fez com que o restinho de esperança que ainda tinha em pedir-lhe que cuidasse de Regiane quando esta faltasse, morresse. Por isso mesmo, enquanto ainda lhe restavam as forças necessárias, deixara a menina aos cuidados das cunhadas – que também ignoravam sua existência e nunca a visitavam, apesar de mandarem dinheiro para as provisões básicas. Mas Vicentina não sabia que, movida por pura piedade e um sentimento de solidariedade (pois sabia o que significava a dor de um coração partido), Rosa mandara avisar ao irmão sobre a doença dela. 

E transido de dor e de culpa por ter condenado a jovem a viver aquela vida de horrores ao abandoná-la duas vezes, Régis imediatamente pediu licença do trabalho e foi ficar ao lado dela. Mandou chamar um dos melhores médicos de Petrópolis para vê-la; fizeram todos os exames, pagos por ele, que passava as noites e os dias ao lado de seu leito, ministrando os medicamentos assiduamente – mesmo após o doutor ter-lhe dito que era tarde demais, pois a doença tomara conta dos ossos e órgãos internos, e já se apresentava sobre a pele em formas de pústulas e manchas. Sem contar que Vicentina costumava cuspir os comprimidos quando Régis dava-lhe as costas.

Ao ver Régis novamente, tão preocupado e solícito, fazendo-lhe mil promessas de uma vida nova e feliz assim que ela se curasse, Vicentina compreendeu que estava mesmo morrendo, pois sabia que se não fosse esse o caso, Régis não desejaria tanto que ela acreditasse nele mais uma vez. Apesar de ainda sentir por ele, estranhamente, o mesmo amor de antes, e de ser capaz de perdoá-lo por tudo o que a fizera  passar, Vicentina sabia que não podia acreditar nele; não o via como um homem ruim, mas como um homem fraco e covarde, incapaz de agir de outra forma.

Todas as tardes após o almoço – algumas colheradas de canja de galinha que ela vomitava logo em seguida – Régis atendia o pedido que Vicentina lhe fazia de abrir as grandes janelas do quarto, que davam para a copa de uma magnólia onde inúmeros pássaros cantavam, voejando de galho em galho. Ele se sentava ao lado dela na cama, ajeitando os travesseiros para que ela se acomodasse melhor, e ambos ficavam desfrutando da companhia um do outro (Régis descobrira que a amava de verdade, afinal) e faziam planos para o futuro de Regiane. Ela estudaria em boas escolas, e se casaria com um homem de bem. Vicentina fazia Régis prometer todos os dias que cuidaria da filha e que jamais a abandonaria. Ela pedia-lhe que reafirmasse a sua promessa de registrá-la como sua filha legítima e dar-lhe um nome respeitável. Às vezes, ele perguntava a ela sobre os outros dois filhos que Vicentina tivera, Antônio e Pedro. Ela dizia que não se preocupasse com eles, pois os meninos estavam bem e frequentemente tinha notícias deles. Viviam em uma fazenda no interior de São Paulo, eram amados e cuidados e estavam bem longe do destino cruel que o passado da mãe poderia impor-lhes, caso vivessem em Petrópolis. Régis perguntava-lhe quem eram os pais dos meninos, e ela garantia que não sabia. Eram filhos da própria vida, que nasceram através dela e do sêmen de seus pais, que ela ignorava quem fossem. Assegurava-lhe que os meninos estavam bem, cresciam fortes e saudáveis, livres de estigmas. Da mesma forma, ela perguntava a ele sobre o seu filho em São Paulo, e sobre a mãe do menino. Ele apenas dizia que o nome dela era Hanna, e que era descendente de alemães refugiada no Brasil. Falava sobre uma noite solitária em que dormiram juntos e a gravidez aconteceu, e que atualmente mãe e filho viviam com os pais dela. Dizia que não a via mais.

Na verdade, Hanna conseguira, através dele, um emprego na mesma casa onde Régis trabalhava em Niterói, e viviam maritalmente em um dos muitos quartos da mansão sob a permissão de Madame, que mimava a criança como se fosse seu próprio filho. Enquanto os pais trabalhavam na mansão, a criança ia com ela a passeios de carro, durante os quais Madame o mimava, comprando-lhe brinquedos, sorvetes  e roupinhas. À noite, entregava Paulinho - o filho de Hanna e Régis - aos pais. 

Hanna era uma mulher belíssima: loira, de olhos muito azuis, alta e esbelta, com postura refinada e altiva. Mostrava logo que vinha de boa família, e Madame gostava de tê-la por perto no comando dos outros empregados, principalmente quando dava seus jantares formais. Através dela, Régis aprendera a portar-se com mais altivez, camuflando seus trejeitos de cafajeste mulherengo (antes, tinha mania de flertar com as convidadas de Madame, que por causa de seus olhos azuis e belo rosto, às vezes correspondiam aos seus flertes), aprendendo a servir uma mesa como se deve. Através de Hanna, Régis refinou seus modos e passou a ser mais discreto. Logo, Hanna foi promovida à governança da mansão e passou a ocupar, junto com Régis e Paulinho, um quarto fora da ala dos empregados. Madame tinha muito apreço pelo casal e principalmente, pelo lindo menininho ilegítimo gerado por eles, fruto daquele amor clandestino.

Muitas vezes, enquanto Vicentina dormia, Régis olhava para as paredes desbotadas e para o tapete gasto do quarto; demorava-se sobre os lençóis remendados que cobriam Vicentina, abria o armário onde ela pendurava seus dois únicos vestidos e o casaco. Ia até a cozinha, onde ela mantinha as poucas louças lavadas sobre um escorredor na pia pequena e quebrada. Depois, voltava ao quarto e olhava o pobre rosto magro, tenso e manchado pelas marcas das feridas, e para o peito que subia e descia arduamente na dificuldade de cada respiração; lembrava-se da beleza e da juventude fresca que o atraíra na primeira vez que pusera os olhos nela, a bela e inocente menina que ele corrompera. Chegava à janela do pequeno quarto no sobrado e olhava as ruas, os transeuntes que iam e vinham, as damas despreocupadas em seus chapéus enfeitados e terninhos, algumas delas sendo conduzidas pelo braço de seus maridos, outras levando pelas mãos os filhos pequenos. Pensava que tinha sido aquela vida que ele roubara de Vicentina. Pensava também que aquela mulher que ali jazia não tinha mais que vinte e cinco anos de idade, e já deixava a vida.

Chorava lágrimas amargas, por ela e por sua própria alma condenada, e pensava no que poderia fazer para redimir-se. 
Passou a frequentar um centro espírita no centro da cidade, próximo ao local do apartamento de Vicentina. Ali aprendeu sobre a Doutrina Espírita, a vida após a morte, o amor, a caridade e o perdão – palavras que antes não faziam parte de sua vida desregrada. Enquanto ela dormia durante as horas de ausência que se tornavam cada vez mais longas, ele frequentava as reuniões e tentava entender melhor a vida, procurando por algo que fizesse com que as coisas tivessem mais sentido. Queria recomeçar sua vida e seguir por caminhos mais corretos. Parou de alimentar-se de carne. Diminuiu a quantidade de vinho que tomava todas as noites desde que se lembrava de si. Deixou de procurar as mulheres da vida e limitou-se a relacionar-se sexualmente apenas com Hanna. 

Olhava-se no espelho e via os primeiros sinais de calvície começando a avançar por sua testa, e as primeiras rugas que a natureza desenhava ao redor de seus olhos. Estava com trinta e dois anos. Era um belo homem, disso tinha a mais absoluta certeza. Porém, ao olhar-se no espelho, não podia deixar de lembrar-se do um romance que lera, escrito por um tal Oscar Wilde: O Retrato de Dorian Gray. Na história do livro, um belo jovem praticava suas maldades mas permanecia sempre jovem e belo, enquanto uma pintura de seu rosto feita por um amigo tornava-se cada vez mais terrível. Sua beleza exterior não poderia esconder a feiura de sua alma por muito mais tempo, e então, assegurava-se de que precisava mudar de vida. 

Passou a ver na filha uma boa razão para isso, um incentivo. Visitava a menina frequentemente, e quando ela colocava os bracinhos em volta de seu pescoço, a vida fazia sentido. As irmãs, Rosa e Fiorela, observavam a cena e se entreolhavam, ainda duvidosas das promessas de mudança do irmão. João, o marido de Fiorela, gostava sinceramente do cunhado, e os dois passavam muito tempo conversando, suas vozes ecoando pelas paredes altíssimas do grande salão do casarão. 
Régis comprou um terço de contas negras, de onde pendia um grande crucifixo, e sempre que sabia de alguma doença, passava a rezar pelo enfermo enquanto fazia o sinal da cruz com o crucifixo sobre a pessoa. Passou muitas tardes debruçado sobre o corpo de Vicentina, sinceramente acreditando que poderia curá-la com a força de seu pensamento. Passou a colecionar muitos livros sobre ocultismo, que devorava nas noites em que a respiração pesada de Vicentina o impedia de cair no sono. 
Voltou a trabalhar na mansão em Niterói, mas deixou Vicentina aos cuidados de uma senhora viúva, chamada Celeste, que tinha sido enfermeira. Visitava Vicentina e a filha, que já estava com seis anos de idade, religiosamente nos finais de semana, mas algumas vezes, Vicentina não o reconhecia. Piorava cada vez  mais rapidamente, pois Celeste era uma enfermeira um tanto relapsa: não tinha paciência de ministrar-lhe as refeições às colheradas como Régis fazia, e quando a doente recusava-se a comer, não insistia. Às vezes esquecia-se de dar-lhe os medicamentos nas horas certas, entretida que estava em um dos livros que Régis deixara na casa, e também limitara os banhos a apenas uma vez por semana, o que fez com que as feridas do corpo da paciente infeccionassem. Vicentina encaminhava-se cada vez mais rapidamente ao seu destino final.

Rosa e Fiorela discutiam se não seria humano deixar que a mãe visse a filha mais uma vez antes de partir na longa viagem. João concordou que seria a coisa certa a se fazer. Assim, numa tarde de domingo, Rosa vestiu e penteou a menina, prendendo um laço de fita azul em seus cabelos, e dizendo-lhe:

-Hoje vou levar você para rever a mamãe. 

Regiane, ao ouvir aquele nome, sentiu que uma imagem já quase esquecida do passado voltava de repente à sua mente, com todas as suas cores e dimensões. Ouviu a voz da bela e jovem mulher que lhe falava sempre com doçura. Vieram-lhe lembranças de uma outra casa bem grande, onde à noite, na escuridão de um quarto, em sua cama ao lado de uma mulher negra e enorme, ela escutava as gargalhadas histéricas de mulheres entrecortando a música alta. Lembrou-se do dia em que a mulher a levara embora, deixando-a naquela casa e dizendo: “Você agora vai morar com suas titias.” Lembrou-se também do terror que sentia, quando acordava no meio da noite e não reconhecia o lugar onde estava, e das vezes em que começava a chamar inutilmente por aquele nome que agora lhe era tão distante: “Mãe.”  Agora, disseram-lhe que ela ia rever a mãe. Não sabia se deveria ficar alegre ou triste. Não sabia mais quem era a sua mãe. Acostumara-se a viver longe dela, e nem se incomodava mais. 

Rosa foi caminhando com ela pelas calçadas quadriculadas de Petrópolis. Ao passarem pela Padaria Alemã, Regiane puxou-a pelo braço, e pediu: “Quero um sonho!”  Alguma coisa mais forte a levara a fazer aquilo. A tia pagou-lhe o doce, e enquanto ela comia, vieram-lhe imagens esfumaçadas dela mesma em um carrinho de bebê, e do casal diante dela: seu pai e uma linda jovem (seria sua mãe?) que comiam aquele mesmo doce, enquanto ela esperava por eles no carrinho, a luz do sol matinal brincando de fazer sombras com as folhas das árvores, que se mexiam sobre seu cobertor e que ela tentava pegar. 

Rosa pegou um lenço branco dentro da bolsa, umedecendo-o em água de colônia e limpando as mãos meladas da menina, continuando a caminhada até o apartamento de Vicentina. Chegando lá, precisou bater três vezes antes que Celeste viesse para abrir-lhes a porta, esbaforida como se tivesse sido pega de surpresa. Assim que entraram, Rosa torceu o nariz ao cheiro acre de urina e lençóis sujos. Constatou que Vicentina não estava sendo bem cuidada. Pediu que Regiane esperasse na varanda do sobrado, e entrando na casa, ralhou com Celeste, que desculpou-se: 

-A senhora não avisou que viria...

Rosa respondeu-lhe, furiosa:

-Você é paga para que cuide dela durante o tempo todo, e não apenas quando alguém vem visita-la! Sua incompetente! 

Arregaçou as mangas e escancarou as janelas, enquanto ajudava Celeste a varrer o apartamento e dava ordens para que ela banhasse Vicentina, trocasse suas roupas e lençóis. Foi até a cozinha e deparou com a pia cheia de louças sujas e baratas andando sobre elas, e tratou de ir lavando as louças, espantando as baratas e arrumando tudo como podia. Recolheu as roupas sujas e juntou-as em um balde com água e sabão, deixando-as de molho e dando ordens para que Celeste as enxaguasse e pusesse para secar dali a duas horas. Preparou uma sopa de legumes e levou o prato até Vicentina, que mal abria os olhos, mas que teve um lampejo de lucidez e a reconheceu. Rosa já quase se esquecera da menina esperando por ela na varanda, quando Vicentina perguntou pela filha. Rosa correu até a varanda, onde encontrou a menina entretida com o movimento da rua. Estava daquele jeito há mais de uma hora, e Rosa achou que poderia deixa-la esperando mais alguns minutos, enquanto Vicentina terminava sua sopa. 

 Enquanto Rosa servia a sopa às colheradas, Celeste trabalhava com afinco a fim de limpar o apartamento, usando o desinfetante que Régis trouxera na última visita. Finalmente, Vicentina afastou a colher com a mão, virando o rosto, e Rosa entendeu que ela não queria mais comer. Comera apenas umas cinco colheradas. Vicentina passou por Celeste, dirigindo-lhe seu olhar mais furioso, e deixou o prato sobre a pia, indo buscar a menina. 

Regiane deixou-se ser levada pela mão, até que a tia colocou-a diante do leito da mãe, dizendo:

-Regiane, esta é a mamãe. Diga olá para ela. 

Regiane olhou para aquele rosto macilento e feio, os cabelos ralos que deixavam ver o couro cabeludo, a pele coberta de feridas, e teve que tentar conter sua repulsa, por pura educação. Mesmo assim, após a primeira impressão, conseguiu ver na mulher os traços da sua mãe, da sua antiga mãe, e pode dizer-lhe um “Olá”. Vicentina olhou a filha, cujo olhar debruçava-se sobre ela com indiferença, e sentiu vergonha por sua aparência. Pediu que Rosa a levasse embora, e nunca mais a trouxesse.

Regiane só saberia da mãe novamente cinco dias depois, quando ouviu partes de uma conversa entre os adultos da casa comentando sobre sua morte:

-A pobre descansou...

-Foi melhor assim... a menina...

-Não, acho melhor não... ela ainda é muito pequena...

- O funeral foi de caixão fechado...

-Nem o pai compareceu...

-Régis está muito abalado...


(continua...)

domingo, 31 de janeiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - Capítulo III








O ANJO NO PORÃO

CAPÍTULO III



Uma exultante Vicentina recebeu a notícia sobre o convite para jantar. Escolheu um de seus melhores vestidos, e quando perguntou a Régis qual dos vestidos ela deveria usar na filha, ele logo disse:

-Não, a menina não vai. Sabe, para evitar escândalos. Ainda não estamos casados, e a família é muito tradicional.

Vicentina ficou desapontada no início, mas depois, concordou com ele. Só o fato de que iria a um jantar de família, onde pessoas dignas e direitas estariam presentes, e que ela estaria entre eles, já era o suficiente para deixa-la feliz. Já sentia um amor profundo pelas cunhadas, como se fossem suas irmãs – embora o único contato que tiveram tivesse sido frio e impessoal, nos fundos da casa. Tinha certeza de que, quando elas a conhecessem melhor, ficariam orgulhosas e a chamariam de irmã. Afinal, fariam parte da mesma família!

Desde que fora expulsa pelo pai, por quem não sentiam mesmo muito afeto (era frio e distante), aquela era a primeira vez que  a vida lhe abria portas imensas, e cheias de promessas de felicidade, novas oportunidades de um futuro brilhante para ela e para Regiane, ao lado do único homem que já amara.

Finalmente, viram-se diante dos portões da casa imponente, situada na Avenida Koeller. Foram recebidos por um solene mordomo, que os conduziu até o salão principal. Rosa parecia tão feliz, que Vicentina ignorou o fato de que mal a cumprimentara, e preferiu fingir para si mesma que não percebera a antipatia que as duas irmãs lhe devotavam. Também fechou os olhos ao suor que escorria da testa de Régis, que ele enxugava a todo momento – um sinal de nervosismo que ela conhecia muito bem - , atribuindo tudo ao amor devotado que ele sentia em relação às irmãs: só queria que tudo desse certo!

Vicentina tentava comportar-se de forma austera, sentando-se ereta na ponta do sofá, copiando os gestos das cunhadas. Quando a matriarca chegou à porta do salão, todos se levantaram, e foram feitas as apresentações. Régis sentia-se orgulhoso, pois frequentava ambientes muito finos (mesmo que fosse como copeiro) o suficiente para saber que suas meninas estavam se saindo muito bem e causando ótima impressão.

Foi quando pai e filho adentraram a sala que Régis percebeu uma palidez mortal tomar conta do rosto de Vicentina. Seus olhos encheram-se de lágrimas, e ela engoliu em seco, apoiando-se em seu braço a fim de manter-se de pé. O mesmo se deu em relação ao seu futuro cunhado. O rapaz ficou muito vermelho, empalidecendo em seguida, e passando a gaguejar quase compulsivamente. Todos pensaram que se tratava de nervosismo puro e simples, devido à ocasião que os unia, mas Régis sabia que havia algo mais acontecendo. O jantar foi uma ocasião estranha, na qual todos, exceto por Régis, Vicentina e Alfredo – o noivo -, falavam pelos cotovelos, planejando os detalhes da festa de casamento e da viagem de lua-de-mel à Paris. Régis percebeu que Vicentina e Alfredo mal tinham tocado na comida, e aquilo o deixava cada vez mais apreensivo, pois já intuía o que poderia estar acontecendo: Alfredo só poderia ser um frequentador do prostíbulo, e reconhecera Vicentina!
Depois do jantar, Vicentina deitou-se virada para a parede, evitando maiores intimidades, e deixando Régis com medo de fazer a pergunta que não queria calar. E ele preferiu não fazê-la. Mas seus maiores medos se confirmaram na manhã seguinte, quando, ao chegar na casa das irmãs, deparou com Rosa aos prantos, segurando nas mãos uma carta meio-amassada, entregue bem cedo por mensageiro, as letras borradas pelas lágrimas. Fiorela tentava consolá-la, mas  deu um passo adiante ao ver chegar o irmão, gritando:

-Veja só o que você fez com a nossa irmã! Tudo por culpa daquela... daquela...

-Mas o que está havendo, Fiorela? Por que está chorando, Rosa?

E ele tomou das mãos de Rosa a carta, lendo-a em silêncio, e sentindo seu rosto queimar. Na carta muito formal, Alfredo desmanchava o noivado, dizendo que infelizmente, ao saber das origens da noiva do irmão de Rosa, o pai o proibira de unir-se àquela família. Dizia lamentar profundamente o ocorrido, mas ele mesmo, querendo seguir uma carreira honesta de doutor, não poderia ter o seu nome ligado a pessoas não distintas. terminava a carta friamente, com apenas uma palavra: "Saudações.”

Régis embolou a carta, jogando-a com raiva no chão. Andava de um lado a outro, proferindo obscenidades a respeito de Alfredo, até que Fiorela mandou que se calasse, pois estava piorando a situação de Rosa. Só então ele lembrou-se da irmã, ajoelhando-se ao lado dela, e segurando-lhe as mãos, disse:

-Querida irmã, com sua beleza, certamente logo encontrará um cavalheiro distinto que a queira. Vou me embora; levarei comigo o motivo de sua vergonha, e você e Fiorela nunca mais ouvirão falar de nós. Gente como eles tratará de manter segredo pelo que aconteceu, pois não hão de desejar o nome da família envolvido em escândalos, e tudo será esquecido.
Mas quando Rosa ergueu os olhos para ele, Régis tomou um grande susto: não viu mais a alma da irmã. Alguma coisa tinha se perdido dentro dela para sempre.

Rosa subiu para o seu quarto, de onde não saiu durante vários dias. Vestiu-se de negro, e jogou fora todas as suas roupas coloridas e leves, substituindo-as pelas roupas da velha tia falecida que tinham sido socadas em um baú no sótão, e todas eram escuras, velhas, pesadas e feias. Prendeu os longos cabelos  sedosos em um coque na nuca, e durante toda a sua vida, seria aquele o seu penteado, e aquela a sua indumentária. Jamais voltou a enamorar-se de ninguém. Nenhum rapaz desejara desposar aquela criatura taciturna, que mais parecia um abutre disfarçado.

Ela apareceria mais tarde, em fotos de família como uma criatura de olhar triste e enviesado, calçando sapatos largos e quadrados, uma jovem vestida de idosa por dentro e por fora.
Os dias que se seguiram foram difíceis para Fiorela, pois não sabia lidar com a depressão da irmã. Ao mesmo tempo, o irmão desapareceu novamente, deixando para trás a filha e a mãe de sua filha. Vicentina, grávida do seu terceiro filho, desesperou-se; Diana disse lamentar muito, mas não poderia ficar com ela e mais uma criança; as coisas estavam difíceis naqueles tempos de guerra. Além de tudo, aquele não era um lugar bom para se criar crianças, e como Vicentina fosse uma mulher extremamente fértil, provavelmente acabaria por engravidar outra vez. Diana já não queria mais problemas, pois já fizera por ela mais do que a própria família tinha feito. Porém, em um último gesto de bondade, deixou que Vicentina ficasse por lá com sua filha até que o seu terceiro bebê nascesse; escreveu à irmã na fazenda, e esta aceitou alegremente o filho que, segundo Diana, alguém abandonara em sua porta em uma noite de inverno. Assim, Antônio ganhou um irmão, mas só descobriria o parentesco entre eles muitos anos mais tarde.

Vicentina deixou a casa levando consigo alguns vestidos – presentes de Régis – e vendendo às meninas os demais, pois precisava de dinheiro para manter-se e à filha. Vendera também, muito à contragosto, sua única joia, uma pulseira de esmeraldas e ouro que ganhara de uma tia rica em seu décimo quinto aniversário. Conseguira contatar o irmão em segredo e convencê-lo a levar-lhe a pulseira, o que ele fez a contragosto. Com aquele dinheiro, conseguiu alugar um quartinho no Hotel Royal.
Mas o dinheiro foi acabando, e ela viu-se com o aluguel do quartinho vencido e a filha às margens de passar fome; voltou à vida. Recebia cavalheiros em seu quarto discretamente, após as dez da noite, enquanto a filha dormia alheia à tudo, em um bercinho ao lado da cama.

Fiorela casou-se, e com a permissão do marido, convidou Rosa a morar com eles em sua nova e espaçosa casa. Cedeu à Rosa a edícula, onde ela viveu solitária a maior parte do tempo, passando a ficar muitas horas lendo e tricotando em sua cadeira de balanço. Mal sabia ela que aquela seria a sua casa até idade avançada, e que viveria e morreria ali. Tornar-se-ia a tia mais querida dos sobrinhos, a Tia Rosa, que dava-lhes sempre muitos presentes e que sempre tinha uma maçã bem vermelha para ofertar a quem chegasse. Aos poucos, o amor pelos sobrinhos e a lida da casa tomar-lhe-iam o lugar da amargura, e ela voltaria a ser a criatura doce e ágil que sempre fora. Porém, Alfredo ocuparia sempre um lugar secreto em seu coração, um lugar escondido de todos, ao qual ela retornava sempre todas as noites antes de adormecer. Nunca saberia ela que também ocupava um lugar semelhante no coração dele, que jamais a esqueceria – mesmo já casado e pai de vários filhos. Passariam um pelo outro na rua e não se cumprimentariam, mas seus olhares lhes trairiam sempre, e as batidas aceleradas de seus corações sempre os fariam lembrar daquele habitante secreto.

Rosa nunca mais mencionou o nome de Alfredo. Quando os sobrinhos às vezes lhe perguntavam por que nunca se casara, ela suspirava e desconversava, ou então respondia: “Porque eu não quis. Preferi tomar conta de vocês.” Mas tudo isso deu-se bem mais tarde nesta história.

Antes disso, selou-se o destino de Vicentina.

Sozinha, com pouco dinheiro, má alimentada e levando uma vida promíscua na gélida cidade de Petrópolis, ela acabou adoecendo; contraiu sífilis. Não teve dinheiro para o tratamento, mas a causa da doença ter se espalhado e agravado rapidamente, não foi esta; poderia ter recorrido à ajuda de Diana, que certamente, não se recusaria a ajuda-la mais uma vez. Ela mesma tinha dito que, caso ela precisasse, que a procurasse – mas Vicentina não o fez; poderia também  ter se encaminhado a um hospital público. Mas no fundo, Vicentina não queria curar-se; queria morrer. Não via mais motivos para continuar viva. Olhava para o rosto da filha, e pensava que junto dela, a menina jamais poderia ter um bom futuro. Assim, um dia bateu à porta da casa de Fiorela, levando a menina nos braços. Sua aparência doente penalizou Fiorela e Rosa, que receberam Regiane em sua casa e cuidaram dela. Também tentaram providenciar cuidados médicos para a mãe – “já ouviu falar da penicilina?” Porém, esta recusou-se a tratar-se.

Regiane, aos quatro anos de idade, passou a viver no casarão junto com as tias e a prima recém-nascida, a qual Fiorela deu o nome de Lea. Sentia muita falta da mãe, e chorou muito no início, mas logo acostumou-se a nova vida, pois percebeu que seria aquela a vida que lhe estava sendo oferecida dali por diante. 

(continua...)






quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO II







O ANJO NO PORÃO


CAPÍTULO II



Regiane crescia a olhos vistos. Era mantida nos fundos da casa, e quando a mãe estava trabalhando, a cozinheira tomava conta dela. No começo, Vicentina não conseguia entregar-se aos clientes, até que passou a beber. Quando bebia, era como se assumisse uma outra personalidade, saindo de dentro de si mesma e esperando do lado de fora, enquanto uma outra alma assumia seu corpo. Tornou-se uma das preferidas daquele lugar, e tinha vários clientes em uma só noite. Certa vez, suas regras não vieram por dois meses, e ela viu-se em frente à Diana contando-lhe sobre sua desgraça. Esta mandou que o doutor viesse imediatamente, e ele apenas confirmou suas suspeitas: Vicentina estava grávida novamente!

Diana ficou furiosa. Tantas e tantas vezes tinha ensinado a ela como evitar filhos, e mesmo assim, ela aparecia com mais uma gravidez! Chorando, Vicentina argumentava, dizendo que estava sempre tão embriagada, que nem se dava conta do que acontecia com ela. Diana decretou:

-Você vai tirar essa criança!

Vicentina mostrou-se apavorada; há apenas uma semana, uma das meninas morrera ao fazer um aborto. Não queria morrer, por mais desgraçada que sua vida fosse, pois aprendera a amar sua filha, e não podia imaginar deixá-la sozinha no mundo. Diana, que era durona mas tinha bom coração, ficou em silêncio por algum tempo, e finalmente, falou:

-Então você mandará a criança para minha irmã, em São Paulo. Ela será criada em uma fazenda, comerá do bom e do melhor. Terá uma vida bem melhor que a sua. Você poderá visitar seu filho uma vez por ano, durante as férias. Minha irmã não pode ter filhos, e vai ficar feliz. Mas não diga a ela que tipo de negócio temos por aqui! Ela nem desconfia, pensa que estou trabalhando em casa de família.

E assim foi feito. Vicentina sentiu-se muito triste ao separar-se do filho recém-nascido, mas conformou-se quando Diana ofereceu-se para pagar sua viagem até a fazenda em São Paulo a fim de conhecer seus novos pais, e foi onde ambas deixaram o bebê – um menino que ela batizou como Antônio, pois desconfiava que este era o nome do pai biológico. Dora, irmã de Diana, que ignorava as atividades da irmã em Petrópolis, e recebeu-as com gosto e gentileza, derramando-se em mimos sobre Antônio. O marido também logo apaixonou-se pelo menino. Trabalhavam na fazenda, onde ocupavam uma pequena casa e levavam uma vida simples, mas nada lhes faltava. 

Vicentina despediu-se entre muitas lágrimas. Concordou em mentir sobre sua verdadeira identidade, e assumiu diante do casal a personagem que Diana criou para ela: uma jovem viúva de guerra passando por dificuldades financeiras. Ela achou que seria melhor para o bebê. Durante a viagem, acabou por consolar-se com as palavras de Diana, que disse:

-Pense bem, você fez o melhor por ele. Minha irmã e o marido ficaram muito felizes e o tratarão muito bem, assumindo-o como filho, e ele terá uma boa vida. Que outra vida melhor você poderia oferecer a ele? Se eu fosse você, faria o mesmo a respeito da pequena: daria para adoção!

Aquela última frase indignou Vicentina:

-Jamais! Minha filha há de ficar comigo, e acredito que Deus proverá para que ela cresça feliz e saudável. Não pretendo levar essa vida que levo para sempre, Diana. Um dia, eu terei um lar, e darei um lar digno à minha filha!

Diana suspirou, assumindo uma expressão de incredulidade, e nada mais disse a respeito. Dias depois, Vicentina voltou ao trabalho no bordel.

Certa manhã, por volta das dez horas, quando todas dormiam a fim de recuperar-se da longa noite, as mulheres foram despertadas por fortes batidas na porta da frente. Algumas vestiram seus robes, ajeitando os cabelos com as mãos e prendendo-os em coques no alto da cabeça, seguindo Diana em direção às escadarias de madeira, de onde podiam ver quem as estaria incomodando àquela hora, enquanto outras, como Vicentina, viraram para o lado, continuando a dormir. Diana abriu a porta e deparou com um rapazola pálido que segurava um chapéu, nervosamente. Foi logo explicando:

-Estamos fechados, senhor. Volte mais tarde, após as nove horas.

Já ia fechando a porta, quando ele a empurrou devagar, e perguntou:

-Por favor, senhorita... Vicentina Leme vive nesta casa?

Diana abriu a porta, olhando-o dos pés à cabeça, perguntando:

-Depende... quem é o senhor?

-Por favor... meu nome é Régis Costa. Estou à procura de Vicentina Leme. Ela mora aqui?

Diana logo lembrou-se do nome do cavalheiro que engravidara uma de suas meninas, e que era o pai de Regiane. Sem tentar ser gentil, mandou que ele entrasse e se sentasse, enquanto o fuzilava com o olhar:

-Ela mora aqui, sim. Ela e sua filha, Regiane! Não sei se Vicentina deseja vê-lo novamente. Mas vou perguntar.

E sumiu escadaria Acima. Régis olhou para o topo das escadas e deu com as muitas “meninas” que o observavam, e fez uma leve mesura, erguendo a aba do chapéu e sorrindo-lhes. Elas soltaram gritinhos de satisfação. Uma delas desceu e foi até a cozinha preparar-lhe um café, enquanto as outras, sentadas nos degraus, aguardavam o desfecho da história. 

Súbito, todos escutaram um grito agudo vindo do quarto ocupado por Vicentina, e logo depois, ela desceu as escadas ainda de camisola, esquecendo-se de vestir seu robe, correndo em direção a Régis. Quis abraçá-lo, quis beijá-lo; mas parou diante dele, com lágrimas nos olhos. Ele também parecia muito emocionado, e logo abriu os braços e estreitou-a entre eles. Para Vicentina, foi como se de repente o mundo voltasse a girar da maneira certa novamente, após um longo período de enjoos e tonturas. Para Régis, que já quase arrependera-se de ter voltado (percebeu que Vicentina obviamente tornara-se uma das prostitutas da casa; se ele estava ali, era por pura culpa, e por insistência das irmãs, que achavam que ele deveria assumir a filha, que não deveria pagar pelos erros dos pais) aquele abraço era muito difícil. 

Vicentina nem queria saber por onde ele andara. Não importava que ele a tivesse abandonado, pois afinal de contas, estava de volta. 

Ela afastou-se dele e segurou-lhes as mãos, dizendo:

-Eu sabia, dentro do meu coração, que você voltaria e nos levaria para casa com você!

Régis tentou não magoá-la mais uma vez, e novamente, não disse a ela a verdade: que não a queria de volta, apenas viera pela filha pequena. Ao invés disso, ele improvisou uma história mais suave:

-Sim, querida, mas você há de compreender que eu não tenho onde cair morto... 

Viu a decepção estampada nos olhos dela:

-Certamente, pretendo dar a você e à pequena um lar, mas você precisa ter paciência. Estou ainda trabalhando de copeiro em outra cidade, mas estou economizando, e acredito que em breve...

Vicentina nem esperou que ele terminasse de falar, disposta a crer no que quer que ele pudesse dizer a ela que lhe oferecesse um pouco de esperança. Abraçou-o com força, beijando-o apaixonadamente. As mulheres bateram palmas. Somente Diana parecia impassível, olhando a cena com ares críticos.

Régis olhou no rosto da mãe de sua filha:

-Onde ela está?

Vicentina sorriu:

-Dorme. Mas vamos, quero que você a conheça logo!

Conduziu-o pela cozinha até o quarto da cozinheira, onde a menina dormia em um berço, ao lado da cama da senhora que tomava conta dela, e que dormia profundamente. Régis olhou pela primeira vez o rosto da filha, e sentiu que uma imensa camada de gelo acabava de quebrar-se ao meio em seu peito. Tocou-lhe as bochechas rosadas de leve, e com ternura, sussurrando:

-Qual a idade dela?

-Vai fazer três anos.

-Ela é... linda, absolutamente linda! 

Vicentina pegou-o pela mão, levando-o para fora do quarto. Na mesa da cozinha, aguardavam-nos duas xícaras de café e um prato de biscoitos. As moças tinham sido mandadas de volta aos seus quartos por Diana, e eles estavam a sós. Tomaram o café. Régis parecia faminto, e devorou todos os biscoitos do prato. Confessou que acabara de chegar de viagem, e que não comera no trem porque estava muito nervoso. Vicentina achou melhor contar logo a ele:

-Régis... quando você me deixou, eu... meu pai expulsou-me de casa, e me vi em maus lençóis. Diana acolheu-me, e em troca, eu... bem... você precisa saber que... 

Ele interrompeu-a:

-Não importa. Não diga mais nada. 

Aquelas palavras fizeram com que uma luz brilhasse, deixando o coração de Vicentina aquecido. Régis continuou:

-Como já disse, não tenho condições de tirá-la dessa vida agora; mas farei de você a minha exclusiva. Pagarei para que apenas eu visite seu quarto, você será somente minha. Cuidaremos de nossa filha, e...

Vicentina sentiu as lágrimas quentes de indignação começando a jorrar de seus olhos:

-Está me propondo que eu seja a sua... a sua... prostituta particular?

Ergueu-se da mesa tão depressa, que derrubou a cadeira atrás de si. Régis ergueu-se também, e recolocando a cadeira no lugar, pensou rápido, e disse:

-Não, você não me entendeu, querida... é temporário! Não tenho como acomodá-las em outro lugar, e a proprietária da casa não vai aceitar que você fique aqui de graça, então vou pagar por isso, e serei seu único homem! É como se estivéssemos alugando um quarto na casa, é apenas isso!

Vicentina levou a mão ao peito, aliviada, deixando um sorriso desenhar-se em seu rosto. Régis percebeu que ela acreditaria em qualquer coisa que ele dissesse, e teve pena dela por um momento. A culpa novamente arranhou seu coração. Aproximou-se dela, tentando ser mais terno:

-Estou cansado... vamos subir para o seu... para o nosso quarto, querida? 

E assim foi feito. Passaram dias e dias na cama. Régis recebera por seu período de férias no trabalho conforme combinado com seus patrões, e pagava Diana semanalmente pela exclusividade com Vicentina. De manhãzinha, enquanto as outras dormiam, eles vestiam Regiane com as roupinhas que o pai lhe comprara, e iam passear nos jardins do museu, ou então, empurravam a menina em seu carrinho pelas calçadas da avenida Quinze de Novembro, parando para comer sonhos na Padaria Alemã. Vicentina nunca se sentira tão feliz!

E Régis nunca se sentira tão pressionado!

Amava a menina de todo coração, mas não sentia o mesmo em relação à mãe. Dormiam juntos, e quando isso acontecia, era muito bom, mas quando pensava nas centenas de outros homens que já haviam passado por aquela mesma cama, sentia um certo asco, o que não acontecia ao olhar Vicentina como se ela fosse apenas uma prostituta comum. Sabia, em seu coração, que não conseguiria casar-se com ela. Não poderia fazer dela a sua esposa. Tentava pensar no que poderia dizer-lhe quando a hora de voltar a Niterói e reassumir seu trabalho chegasse. Pretendia levar a menina e colocá-la aos cuidados de suas irmãs, ou quem sabe, pagar alguém para tomar conta dela em Niterói, mas não queria a mãe por perto. O que faria?

Tentava aparentar que amava Vicentina, enchendo-a de mimos e cuidados. Comprava-lhe vestidos finos, do tipo que as senhoras distintas usavam, e andava com ela pelas ruas de braços dados, mas sempre que percebia uma pessoa conhecida olhando para eles, sentia vergonha. 

Enquanto isso, Rosa, sua irmã, estava comprometida com o filho de um rico médico local, de família muito tradicional. Estavam noivos, e a data do casamento seria marcada em um jantar formal dali a alguns dias. A família do noivo queria a presença da família da noiva, e aquilo estava deixando Régis apreensivo. Poderia ir sozinho, mas se Vicentina ficasse sabendo, seria profundamente magoada. Pensou em pedir conselho às irmãs. Rosa achou que ele deveria assumir de vez a família, casando-se com Vicentina e dando-lhe uma vida digna, deixando o passado para trás; Fiorela , indignada, foi totalmente contra a ideia, fazendo uma lista dos motivos pelos quais o irmão deveria ficar longe de Vicentina:

-Pense bem, irmão; ela é uma prostituta! Dizem até que teve outro filho... ela não lhe contou nada?! Viu, é uma mentirosa! O que? Você também tem um outro filho, em Niterói? Filho da empregada da casa, que está sendo criado por madame??? Ora! Mas que complicação! E você também não disse nada a ela... bem, mas dizem que o vício fica na mulher da vida... ela nunca conseguirá ser fiel a um homem só, precisará de muitos outros homens para satisfazer-se!

Rosa, perdendo a paciência com a fala incoerente da irmã, gritou:

-Cale-se, Fiorela! Nunca ouvi tantas bobagens juntas! (virando-se para o irmão) E você teve mais um filho em Niterói? Na verdade quantos são? Apenas dois. E você diz isso assim, com essa calma toda? Você arruinou sua vida, Régis! Espero que não arruíne a nossa. 

Finalmente, após um longo silêncio, durante o qual os três irmãos fitaram os desenhos do tapete, Rosa decidiu:

-Leve Vicentina ao jantar. Ela é uma mulher educada, afinal. Só espero que o tempo no prostíbulo não tenha mudado isso. Depois, vocês se casarão e mudarão o destino de minha sobrinha, dando a ela um lar cristão. Quanto ao seu filho bastardo em Niterói... bem, outros estão tomando conta dele. Pelo menos, não está crescendo em um prostíbulo. Ou está? Não? Graças ao bom Deus!



(CONTINUA...)


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A RUA DOS AUSENTES - PARTE 11

 Capítulo 11 UM A UM  Ela abriu os olhos e reconheceu o caminho diante dela, por onde já tinha passado, e que a conduziria de volta à mesma ...