segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

MALDADES - PARTE IV




Em Janeiro, peguei uma forte gripe depois de ficarmos um dia inteiro fazendo piquenique  na beira do rio, no sítio de Sean. Acho que fiquei ao sol tempo demais, tomando bebidas geladas, e depois, passei grande parte do tempo dentro d´água . No dia seguinte sentia-me terrível. Tive febre e precisei ficar alguns dias de cama. Clara esteve sempre presente, checando minha temperatura, trazendo chá com biscoitos e batendo papo. Ela ia ver-me todas as manhãs, mas ia embora antes do almoço, pois dizia que eu precisava descansar.

Sean vinha sempre ver-me no final do dia, trazendo frutas e pequenos presentes, me enchendo de mimos. Mas no final da semana, ele me telefonou, dizendo que não poderia ir me ver. Seus pais tinham chegado de Denver, e ele teria que fazer uma viagem de dois ou três dias para vê-los. Aproveitaria para convidá-los para conhecer-me e à minha família.

Fiquei desapontada, pois era a primeira vez, desde que nos conhecêramos, que ficaríamos separados.

Em seguida, Clara telefonou-me, dizendo que também precisaria ir até a capital a fim de resolver uns problemas a respeito de seu passaporte – problemas que ela realmente não me explicou direito do que se tratava, mas eu estava me sentindo tão sonolenta e enjoada por causa dos remédios que nem dei muita atenção. Perguntou-me se eu me importaria se ela fosse de carona com Sean, já que seu carro estava com problemas. Eu disse que não, e ela agradeceu alegremente.

Afinal, que mal havia? Eu confiava em Sean e em Clara. Ela era minha melhor amiga.

Mas fiquei muito surpresa quando Nina apareceu para me visitar no dia seguinte, dirigindo o carro de Clara. Perguntei:

-Resolveu o problema?

-Que problema?

- Do carro! Clara me disse que o carro dela estava com problemas.

- Problemas? Não, está ótimo! Afinal, é um carro praticamente novo!

Naquele momento, a ficha caiu. Ela tinha dito aquilo porque queria ficar sozinha com Sean! Só havia esta explicação!

Passei um final de semana terrível. Tive pesadelos, onde Clara subia uma escadaria e virava as costas para mim quando eu a chamava. No alto da escadaria, Sean esperava por ela. Ele me telefonou no sábado à tarde. Perguntei por Clara, e ele disse que não sabia dela. Tinha apenas dado uma carona, mas que eles logo tinham seguido caminhos separados.

Mas de repente eu ouvi uma musiquinha ao fundo. Estava tocando muito longe e muito baixinho, mas consegui ouvir. Eu fiquei tentando me lembrar de onde eu tinha ouvido aquela musiquinha antes, mas não falei nada com Sean. Quando ele desligou, eu me lembrei: aquela música era o toque do celular de Clara!

Chamei minha mãe e contei a ela sobre minhas desconfianças.

- Mãe, eu acho que... não sei, na verdade posso estar errada, espero que eu esteja, mas acho que a Clara está dando em cima de Sean.

-Ora, Ana, que bobagem! Ela é sua melhor amiga e ele é louco por você!

Contei a ela da noite no Johnny’s; também contei-lhe sobre o carro, e sobre a musiquinha. Minha mãe começou a protestar, mas sem tanta firmeza. Finalmente, ela disse:

-Bem, abra os olhos. Mas não saia acusando ninguém, pois corre o risco de ser injusta.

Aquele final de semana parecia interminável. Eu tinha febre, e meu corpo todo estava dolorido. Minha mente também não tinha paz. Sentia-me horrível em todos os aspectos. Quando ia ao banheiro e me olhava no espelho, via uma figura com olheiras profundas, macilenta, descabelada e muito pálida. No final da noite de domingo, comecei a tossir.

Piorei muito durante a noite, e Márcio achou melhor levar-me até o hospital. Constataram que eu estava com pneumonia, e que seria melhor eu ficar internada por alguns dias.

Sob protestos, acabei acatando a decisão do médico. Minha vida estava suspensa por tempo indeterminado. Ao mesmo tempo, Sean não tinha telefonado no domingo, e nem Clara. Tentei chamá-los pelo celular, mas ambas as ligações caíram na secretária eletrônica da primeira vez que liguei, e depois, recebia uma mensagem de “desligado ou fora de área.”

Finalmente, Sean apareceu no hospital, na segunda feira pela manhã. Parecia um tanto arredio, apesar da tentativa de demonstrar despreocupação e naturalidade. Quanto à Clara, ligou-me, dizendo que ia ficar mais um dia na capital e desejando-me melhoras. Mas a voz dela estava quase metálica ao telefone, realmente formal.

Acordei com Sean olhando para mim, sentado na poltrona do quarto. Mamãe e Márcio tinham ido para casa descansar.

-Bom, dia, Ana. Como se sente?

-Péssima.

Eu queria encontrar uma forma de falar com ele, explicar-lhe meus medos e minhas inseguranças, mas ao mesmo tempo, tinha que ser cuidadosa. E se tudo não passasse de fantasias de minha cabeça? Talvez alguém com um telefone cujo toque fosse igual ao de Clara estivesse por perto quando nos falamos, talvez ele estivesse dizendo a verdade. Ou o carro estivesse fazendo algum barulho estranho que Nina não tivesse percebido. Minha cabeça dava voltas.

Ele se aproximou da cama e segurou minha mão.

- E seus pais? Não ia trazê-los para nos conhecerem?

-Sim, mas quando soube, hoje pela manhã, que você estava no hospital, achei que talvez não fosse uma ocasião propícia. Mas assim que você melhorar. Prometo.

-Sean... por que você não retornou minhas ligações? Deixei mensagem na secretária e você nem me ligou de volta!

Ele passou a mão pelo cabelo. Parecia cansado.

-É que fiquei sem bateria. Nem consegui ouvir sua mensagem até o final.

-E não tinha nenhum telefone fixo por perto?

- Já era madrugada quando você me ligou, dizendo que estava no hospital. Não achei adequado perturbar vocês tão tarde. Ana, qual o problema, eu estou aqui, não estou?

-Não sei. Está?

Ele suspirou fundo, olhando para o chão e debruçando-se sobre a beirada da cama. Depois, olhou-me nos olhos.

- Eu não sei o que deu em você. Nunca discutimos, Ana. Algum problema?

-O que você acha? Olhe bem para mim.

Naquele momento, comecei a chorar. Tentei conter as lágrimas de tristeza e humilhação, mas quanto mais tentava me conter, mais forte eu chorava.

-Você está mal por causa da doença, mas logo estará boa. Cuide-se bem. Eu volto amanhã para te ver, Ok?

Fez uma carícia meio-sem jeito em meu rosto, beijou-me na testa e se foi.

Minha recuperação foi lenta. Precisei ficar no hospital por uma semana, e depois, de repouso em casa por mais cinco dias. Ele ia me ver religiosamente todos os dias, mas sempre ficava pouco tempo – menos do que eu esperava – e Clara só foi me ver no hospital uma única vez. Todos achamos estranho, mas não fizemos maiores comentários. Nina contou-nos que Clara andava um tanto calada ultimamente.

Em casa, ela passou uma manhã inteira comigo, ou melhor, apenas fisicamente, pois agarrou uma revista de moda e ficou lendo a manhã toda. De vez em quando, comentava comigo algum assunto da revista. Olhava o relógio a toda hora. Às vezes, caminhava até a janela e ficava olhando para fora, parecendo ansiosa.

Eu queria que ela fosse embora. Mas aproveitei o tempo em que estava comigo para estudar seu rosto, seus gestos e seus olhares. Realmente, aquela mulher não era muito parecida com a Clara que eu conheci desde criança. A começar pelas roupas; parecia saída de um figurino de moda. O cabelo cortado curto, alourado (diferente do cabelo castanho-claro natural que sempre usara) com mechas espetadas e fixadas com gel ou alguma outra substância que o deixava artificialmente “fashion”, os saltos altos, a bolsa de couro de marca, caríssima... tudo destoava da pessoa despojada que eu conhecera.

Lembrei-me de um dia, quando ouvíamos música, e ela me disse que um dia viajaria pelo mundo – e que seu pai financiaria tudo, que ela “jogaria na cara dele” ter sido abandonada, caso ele se recusasse; então, ela voltaria ‘uma outra pessoa’, uma mulher de verdade. Tínhamos – eu,doze e ela, treze anos quando tivemos esta conversa, e na época, achei graça. No fundo, eu pensei que ela estivesse brincando. De vez em quando, ela brincava assim, fingindo ser uma mulher sofisticada, exagerando nos trejeitos, o que arrancava gargalhadas de todos. Mas levávamos na brincadeira, nunca pensando que ela realmente fosse se tornar assim. Clara mudara muito.

Talvez ela tivesse adquirido características peculiares por ter morado tanto tempo fora do Brasil, ou talvez estas características sempre estivessem presentes, só que latentes, e nunca percebêramos por estarmos o tempo todo perto demais dela. Como se para enxergar realmente uma paisagem, precisássemos tomar uma certa distância. E eu não gostava do que via. Aquela mulher parecia dissimulada, de uma maneira que não sei explicar como, mas eu percebia. Quando ela me olhava, os olhos dela pareciam rasos, sem profundidade de sentimentos. Mesmo seu piedoso sorriso, quando ajeitava as cobertas em volta de mim, parecia deslocado. O tom de voz, extremamente doce, de repente, frio e metálico. Algo estava fora do lugar. Ela evitava me encarar.

Finalmente, às onze em ponto, ela se levantou da cadeira quase num pulo, e disse alegremente:

- Preciso ir. Volto assim que puder. Cuide-se!

Caminhou até a porta e fechou-a atrás de si, sem nem mesmo olhar para trás. Fiquei ali, deitada, olhando para o teto.


Continua...

Um comentário:

  1. Não deixa de ser bom ter SOL para desfrutar...em Portugal tem sido só chuva...estamos no Inverno. Espero que já esteja restabelecida.

    Cumprimentos
    ...................
    http://pensamentosedevaneiosdoaguialivre.blogspot.pt/

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