quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

MALDADES - PARTE VI



A manhã seguinte era um sábado. Acordei tarde, com um pouco de dor-de-cabeça. Mamãe levantou-se cedo e foi para a loja, pois havia muitos turistas na cidade . Marcio também acordou cedo para trabalhar. Achei que poderia dormir mais um pouco e decidir mais tarde o que iria fazer com minha vida, mas o telefone tocou. Era Clara.

- Ana, é Clara. Preciso falar urgente com você.                           

Tentei me fazer de idiota. Eu precisava de tempo para um contra-ataque, e sabia que se ela fosse me contar tudo, eu não teria como armar uma estratégia.

- Agora? Eu estou com dor-de-cabeça...

-Tem que ser agora. Você pode me encontrar na Estrada das Araras?

 -O que?Por que lá? Você sabe que horas são?

-Sei, são nove e meia da manhã; quero que seja lá porque não quero correr o risco de que alguém nos interrompa.

- Venha aqui em casa, eu estou sozinha.

- Não; Sean pode chegar de repente. Por favor, pode me encontrar lá? É pertinho daí; eu vou de bicicleta. Se você for caminhando, chegará em menos de vinte minutos, nem precisa ir de carro.

Concordei, minha cabeça à mil. Talvez fosse melhor “saber” de tudo através dela. Isso poderia contar pontos a meu favor com Sean, pensei. Talvez ele passasse a odiá-la por isso. Quando me peguei pensando daquela maneira, não me reconheci. Eu, a boazinha, a que sempre tentava fazer as coisas de modo a não magoar ninguém?  Pensando em tirar vantagem de uma situação, friamente? Bem, ela tinha começado aquilo, não eu. Estava apenas me defendendo. E se para não perder o amor de minha vida eu tivesse que ser dissimulada, roubar no jogo, eu estava disposta a fazê-lo. Seria tão manipuladora quanto ela. Afinal, ela estava tentando roubar a minha vida!

Tomei uma xícara de café, depois resolvi comer um biscoito. Precisaria de forças. Sempre ficava tonta quando não tomava café da manhã, e não queria que ela tivesse que me segurar. Lavei o rosto, prendi o cabelo. Olhei-me no espelho: estava com olheiras escuras, e resolvi por os óculos de sol. Finalmente, engoli uma aspirina.

Segui o conselho dela e fui caminhando. O dia estava lindo, radiante, a cidade alegre e movimentada. Passei pela loja e vi minha mãe atendendo seus clientes, feliz da vida com o movimento da loja. Também vi Nina e seus artesanatos.

Olhei na Pet Shop e vi Sean trabalhando. Marcio provavelmente estava lá atrás, na clínica, atendendo seus pacientes peludos. Olhei bem para ele, e uma força muito grande de repente tomou conta de mim. Disse para mim mesma: “Ana, você não vai perder este homem. Em breve, vocês estarão casados e felizes, morando no sítio. E você poderá estar aqui com ele, na loja, num sábado pela manhã. Depois, poderão almoçar juntos e ter o resto do sábado para fazer amor. Talvez tenham filhos, talvez plantem uma árvore. Você não vai perder este homem.”

Caminhei, resoluta. Cheguei antes de Clara, que estava atrasada, como sempre. Sentei-me sob uma árvore, pois o sol estava um pouco forte.

De onde eu estava, podia avistar a curva da estrada logo abaixo, de onde, a qualquer momento, ela surgiria em sua bicicleta.  A estrada estava quase deserta. Apenas alguns carros passavam de vez em quando.

Eu estava feliz, apesar de tudo.

Minha visão da estrada era bem ampla. Eu podia ver os carros que vinham em ambas as mãos, antes que eles próprios enxergassem uns aos outros, pois a curva era em declive e  bem fechada.  Clara teria que empurrar sua bicicleta por alguns metros até chegar onde eu estava.

Lá vinha ela, em sua bicicleta. Ainda estava um pouco longe. Algo me dizia que não me preocupasse, pois aquela batalha já estava ganha. Por isso, eu estava tão tranquila.

 Ela estava se aproximando da parte da estrada onde teria que empurra a bicicleta.Mas ela não via o que eu estava vendo. Como num sonho, vi a hora em que a caminhonete  se aproximava, na direção contrária. Olhei para Clara em sua bicicleta, no exato momento em que ela descia  dela. Pareceu-me que a perna da calça ou uma pulseira que ela usava no tornozelo tinha ficado presa na corrente da bicicleta, e ela, naturalmente, curvou-se para soltar a perna. Durou apenas um segundo: ela perdeu o equilíbrio, e para não cair, largou a bicicleta e foi parar do outro lado da rua, na contra-mão. Recuperou o equilíbrio e olhou para cima, me avistando. Pôs as mãos na cintura, como a analisar a situação. Levantei-me.

Ela estava ali, parada na contra-mão, enquanto a caminhonete  se aproximava. Eu poderia tê-la alertado. Se eu tivesse gritado, ela teria tido tempo hábil de voltar para o outro lado da estrada, onde sua bicicleta estava caída. Eu poderia ter gritado. Nem precisaria ter gritado muito alto, pois a distância não era tão grande. Eu até conseguia ver as listras azuis na camiseta dela. Pude perceber que ela tinha pintado as unhas de vermelho berrante– e me lembrei de que, na noite anterior, ela usava esmalte rosa.

Foi tudo rápido demais.

A caminhonete estava correndo um pouco – César , filho do Sr. Gomes, estava ao volante, e ele sempre corria. Pude até mesmo ouvir a música alta que tocava no rádio da caminhonete.

Ele fez a curva, diminuindo a velocidade, mas pronto a soltar o pé do freio assim que chegasse na reta da descida, onde , a apenas alguns metros, Clara me olhava, com ar desafiador, de mãos na cintura. Acho que, tarde demais, ela ouviu o barulho do motor da caminhonete. Acho também que, por um segundo, ela percebeu o que eu tinha feito. Ela sabia que eu poderia tê-la avisado, tanto que sua boca se abriu um segundo antes do choque, como se ela estivesse pronta para dizer alguma coisa. As mãos nem saíram da cintura.

César nem teve como frear; derrubou-a longe e passou por cima dela, deixando um rastro de sangue na estrada. Somente freou alguns metros depois. A descida íngreme contribuiu para o desfecho daquela  trágica estória.

Fiquei parada ali, olhando a cena. César desceu da caminhonete e se aproximou correndo do corpo esmagado de Clara. Ouvi um grito terrível. Ele pondo as mãos na cabeça. Outro grito: “Meu Deus!”

Depois, um pássaro cantou na árvore, logo acima de minha cabeça.

César não tinha me visto. Sem saber bem porque, escondi-me atrás da árvore para que ele não me visse. Com o coração aos pulos, a dor de cabeça ainda mais forte e o estômago embrulhado, vomitei em cima da grama.

Ouvi que outras pessoas se aproximavam, parando seus carros. Gritos. Minutos depois, o barulho da sirene da ambulância. E eu, o tempo todo atrás da árvore, tentando me dar conta do que eu tinha feito – ou do que eu não tinha feito. Afinal, eu fora a culpada ou não? Se eu tivesse gritado, mesmo que não desse tempo de Clara sair da estrada, isso teria mudado alguma coisa?

Será que ela tinha morrido? Ou teria problemas para o resto da vida? E se ela vivesse, teria percebido o que acontecera e contaria aos outros? Eu seria presa? Ou as pessoas me apontariam na rua, com ódio? Sean ficaria tão chocado que iria embora para sempre? E o que seria de minha mãe? E quanto à Nina? Meu Deus!

Em alguns poucos minutos, o peso daquilo tudo caíra sobre meus ombros. Sem olhar para trás, e tomando cuidado para não ser vista, afastei-me do local.

Voltei para casa evitando passar pelo centro da cidade. Abri a porta, voltei para o quarto e me despi. Joguei-me na cama. Minha cabeça doía e dava mil voltas. Meu corpo todo tremia, apesar do calor da manhã. Calafrios percorriam minha espinha, e eu me sentia nauseada. Via o sangue no chão. Ouvia o barulho terrível do caminhão, quando passou em cima de Clara e despedaçou seu corpo. Ouvia os gritos de César.

Tapei os ouvidos com força, mas não adiantou. Se fechasse os olhos, via Clara de mãos na cintura, a expressão perplexa do rosto ao ver o caminhão indo em sua direção, e o último olhar ainda mais perplexo que ela me dirigiu.

Minutos depois, minha mãe adentrou a casa, desesperada. Ao me ver deitada na cama, apertando a cabeça e chorando, ela estancou na porta do quarto:

-Já soube?

Nem sei bem porquê, respondi :

-Estou passando mal. Acho que bebi demais. Mas... soube do quê?

- Ana, você precisa ser forte.

Ela me ajudou a sentar na cama. Minha cabeça rodava ainda mais. Tentei olhar para ela, através das lágrimas.

-Ana, Clara sofreu um acidente  ainda há pouco.

Continuei olhando para ela, sem nada dizer.

-Ela... bem, ela está morta.

Nunca pensei que eu fosse capaz de fingir com tanta habilidade. Levei a mão à boca, simulando choque. Chorei ainda mais, e mamãe abraçou-me.

Depois, ela mesma pegou o telefone sobre minha mesinha de cabeceira e ligou para Sean, dando-lhe a notícia. Minutos depois, ele estava ao meu lado. Parecia muito transtornado. Ele tremia todo, e ao mesmo tempo, tentava me consolar, pedindo para que eu ficasse calma. Mas o mais importante era o calor do corpo dele contra o meu; a voz dele sussurrando em meu ouvido. A pressão de sua mão sobre a minha.

Eu não sofri. Não pela morte de Clara. Apenas senti uma imensa pena durante o velório, quando Nina jogou uma flor sobre o caixão, dando um soluço. Mas não fui capaz de aproximar-me dela e dar-lhe um abraço.  Seria como traí-la novamente – porque era isso que eu estava fazendo-traindo a todos. Eu chorava muito, mas não era por causa de Clara; era por Nina, Johnny, mamãe. E também pelo pobre César, que provavelmente, levaria um bom tempo para se recuperar do choque.

Os dias que se seguiram ao velório de Clara foram difíceis para todos. Mamãe passava o tempo todo com Nina, e eu ficava na loja.

Fevereiro chegou e passou. O verão terminava. Aos poucos, a vida foi voltando ao normal. Isto é, na medida do possível. Apesar de estar totalmente transtornada, Nina foi capaz de seguir em frente, pois era uma mulher muito forte. Finalmente, acabou aceitando a proposta de Johnny: vendeu a casa e foi morar com ele.

Sean achou melhor adiar nosso casamento por alguns meses, afinal de contas, estávamos todos muito chocados e não convinha fazer comemorações em meio ao sofrimento de nossos melhores amigos.

Após aquele dia fatídico, quase não fizemos mais amor, e as poucas vezes em que ficamos juntos foram secas, vazias e distantes. Como se o sumo da paixão que nos unia tivesse secado. Pelo menos quanto à ele. Eu me agarrava ao corpo dele em desespero, tentando dar-lhe prazer, desfrutando do corpo dele que apenas se submetia às minhas carícias, sem paixão, automaticamente. Quando tudo acabava, eu me deitava no peito dele, obrigando-o a passar seu braço à minha volta, evitando olhá-lo nos olhos para não ver a distância estampada neles.

Eu percebia que ele perdera peso e que passava muitas horas pensativo, olhando para o nada, quando estávamos juntos. Eu sabia que ele estava pensando nela, e me revoltava, mas ao mesmo tempo, não podia dizer nada. Quando eu tocava no assunto do nosso casamento, ele sorria tristemente, concordava com o que eu dizia, mas sem acrescentar nenhum comentário.

Nunca mais ele falara sobre trazer seus pais para nos apresentar a eles. Dizia que seus pais estavam em Los Angeles e que não poderiam vir ao Brasil tão cedo.

Março chegou... a situação não mudava. Mamãe achava que eu deveria me preparar para o pior. Foi durante uma de nossas conversas que ela me contou uma coisa que guardara consigo durante muito tempo; eu lhe dizia que Sean andava muito distante ultimamente, desde a morte de Clara.

- Ana, eu não sei se você deve ter muitas esperanças quanto a Sean. 

-Como assim? O que você quer dizer?

- Bem... eu detesto ter que lhe contar isso, mas acho que está na hora.

Ela respirou fundo, e eu sentia minhas mãos ficando geladas de expectativa. Meu estômago dava voltas. Ela continuou:

- Você se lembra da festa de aniversário de Johnny, não? Um dia antes do acidente que matou Clara.

-Claro. Por que?

- Eu fui ao banheiro retocar a maquiagem. Quando saí, ouvi sussurros femininos vindos do banheiro dos homens, e achei estranho. Coloquei a cabeça para dentro, mas não vi ninguém perto da pia. Mas ouvi os tais sussurros novamente dentro de um dos toaletes. Depois ouvi o nome de Sean sendo dito por uma voz de mulher. Bem, eu entrei para ouvir melhor. Ouvi gemidos. Eram Clara e Sean. Ela estava... quero dizer, ela e Sean estavam...

- Não precisa dizer mais nada. Eu sei exatamente o que eles estavam fazendo.

-Você sabia?

-Eu desconfiava. Mas tive certeza naquela noite.

- Eu ia te contar, mas então aconteceu aquilo tudo. Achei que não havia mais necessidade, afinal, ela estava morta, não ficaria mais entre vocês. Me desculpe, filha.

- Tudo bem, mãe. Você não está me contando nada de novo.

Senti uma grande vontade de desabafar com ela, contar toda a verdade. Queria aliviar o peso que eu sentia em meu coração. Mas achei melhor que aquele segredo ficasse guardado comigo. Suspirei fundo.

Resolvi sair para dar uma caminhada. Eu me sentia sufocada. Precisava de espaço.

Minha cabeça estava à mil, sabia que Sean ia me deixar, só não sabia como me dizer isso, e que talvez, na cabeça dele, fosse melhor deixar que eu me “recuperasse” da morte de Clara.

Achei melhor acabar eu mesma com aquilo tudo. Eu não ia ficar esperando que ele me deixasse. Seria eu a dizer-lhe adeus. Deixaria que Clara vencesse mais uma vez, pois nem mesmo morta, ela deixou de estar entre nós um só segundo.


Continua...

Um comentário:

  1. Oi, Ana! Simplesmente genial! A gente vai lendo, a ansiedade vai tomando conta e a curiosidade aumenta. Incrível! Tua capacidade para escrever contos é incrível! Grande abraço.

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