João sentia ainda muitas saudades de Rúbia, a quem não via há dois anos. Lembrou-se de seu aniversário, e sentado à mesa luxuosa de seu escritório, recordou-se de como o tinham comemorado pela última vez:
Era noite de sexta feira. A lua estava brilhante, e o campo de golfe, quase claro como o dia. Após escutarem música e conversarem sobre alguns problemas que João tinha em seu relacionamento com o pai - Rúbia sempre era boa ouvinte e conselheira - ele pediu-lhe que esperasse e foi até o carro, de cuja mala tirou um bolo de aniversário e uma garrafa de refrigerantes. Nunca se esqueceu da alegria e da surpresa estampadas no rosto dela. Comeram bolo e antaram o tradicional Parabéns a Você, o que arrancou algumas lágrimas de sua amiga, e ao final, fizeram uma guerra com o que restara do bolo.
Veio-lhe a sensação que ele teve ao vê-la coberta pelo glacé rosado: lamber cada centímetro da sua pele. Mas naquela época, ele soube conter-se, pois não queria estragar a amizade com ela.
João olhou para fora, e viu lá embaixo o asfalto brilhante pela chuva que caía, tornando tudo cinzento e triste. Carros e buzinas, pessoas apressadas, horas marcadas (tinha cinco minutos antes da próxima reunião). Naquilo é que transformara-se a sua vida. Sabia que, na sala ao lado, seu pai estava feliz e satisfeito, pois teria quem levasse os negócios da família adiante. Mas João sentia-se vazio e triste. Sua vida não tinha sabor desde que Rúbia se fora. Conhecera várias mulheres depois dela, mas todas elas vazias debaixo da capa de beleza e sofisticação. Mulheres que seu pai dizia serem perfeitas para ele - aliás, qualquer uma que fosse sorridente, loira, bela, magra, "de boa família" e superficial, cumpriria o papel ideal para ser sua esposa aos olhos do pai. Aos trinta e dois anos, João ainda não encontrara a mulher de sua vida. Ou melhor, encontrara-na, mas por medo e preconceito, deixara-a ir embora.
Sua mãe notava-lhe a tristeza, e sabia que João lamentava a perda de Rúbia. Mas ela mesma, apesar de ver a infelicidade do filho, sabia que jamais seria possível colocar Rúbia no contexto de suas vidas - ainda mais depois de tudo o que acontecera, e que quase arruinara a carreira do filho. Se não fosse pela firma de advocacia da família, a influente família Medeiros - cujo filho João colocara na cadeia - faria com que João não encontrasse trabalho em lugar algum daquela cidade ou daquele estado.
Ali, a chuva caía em gotas cinzas e frias. Mas há muitos quilômetros de distância, na casa do caminho de pedras, o sol brilhava sobre tudo. Com certa melancolia, Aurora comia uma fatia de bolo preparado por ela mesma, junto a uma pequena vela acesa, quando alguém bateu palmas lá fora. Ela olhou pela cortina fechada, entre as aberturas dos bordados, e viu-a lá novamente, de pé, esticando o pescoço para a casa: Maria. Achou melhor fingir que não tinha ninguém por lá. Não queria amizades. maria fazia de tudo para ser sua amiga. Mas amigos, cedo ou trade, começam a fazer perguntas, e Aurora não gostava de perguntas.
Gostava de Maria - ela tinha uma barraca junto à sua na feira, e vendia também os seus produtos: brinquedos educativos feitos por seu pai. Era simpática e faladeira (eis o problema...). Já se convidara algumas vezes para tomar um chá na casa do caminho de pedra, mas Aurora fazia-se de desentendida.
Por trás da cortina, Aurora viu quando Maria aproximou-se e começou a bater, chamando-a pelo nome. Aborrecida, decidiu que ficaria quietinha dentro de casa, mas ao virar-se para sair da janela, esbarrou em um vaso de vidro com flores que pertencera à sua mãe, e este caiu com um estrondo, espatifando-se no chão. "Droga!", murmurou. Ficou triste por quebrar um dos poucos objetos que eram lembrança de sua mãe. Lá fora, Maria escutou, e repetiu: "Aurora! Você está aí?"
Aborrecida e muito contrariada, Aurora armou-se de um sorriso amarelado e foi atender Maria na varanda.
-Olá, Maria, como vai?
-Olá! Finalmente! Está tudo bem?
-Sim, eu... estava dormindo um pouco depois do almoço, e derrubei um vaso sem querer...
-Oh, sinto muito. Quer que eu volte outra hora?
Aurora pensou que desejaria que ela não voltasse nunca mais, mas respondeu:
-Não, tudo bem... o que você deseja?
Maria sorriu, estendendo-lhe um pacote:
-Nada de importante... estava trabalhando, quando, movida por um impulso, resolvi comprar-lhe um presente. Não sei bem porque... espero que goste!
Maria insistiu para que ela pegasse o pacote, e caindo em si, Aurora sentou-se na cadeira de balanço com o pacote sobre o colo, começando a abri-lo. Enquanto fazia aquilo, ouviu claramente a voz de sua mãe, a dizer-lhe: "Pode confiar nela, filha. Você precisa de uma amiga. Ela é boa pessoa." Tentou não demonstrar sua emoção, mas as lágrimas caíram quando, ao abrir o pacote, Aurora deparou com um vaso de flores exatamente igual ao que acabara de quebrar!
Surpresa pelas lágrimas de Aurora, Maria começou a tentar adivinhar-lhes os motivos. Ficou bastante sem graça. Não sabia como agir. Prontamente, Aurora enxugou as lágrimas com as costas da mão, e sorriu-lhe, agradecendo pelo presente.
-Desculpe... obrigada, Maria!
-Não gostou?...
-Eu adorei! É que há muito tempo não ganho um presente. É isso.
Maria sorriu-lhe:
-Que bom! Não vai me convidar para entrar?... Sabe, eu sempre quis ver esta casa por dentro!
-Por que? Não há nada aqui que...
-As pessoas dizem que é assombrada, e por isso a família Soares não conseguia vendê-la, até que você chegou. Esteve à venda por muitos anos!
Aurora sorriu:
-Ora, talvez por isso a tenham vendido tão barato. E isso explica o péssimo estado de conservação. Mas vamos entrar. Não repare, não pude reformar muita coisa ainda...
As duas entraram na casa, e Maria logo olhou a fatia de bolo com a vela acesa ao lado.
-E seu aniversário?
Aurora, censurando-se por esquecer-se de apagar a vela e esconder o bolo antes que entrassem, tentou consertar a situação:
-Não!
-Mas... o bolo e a vela.. são para quem?
De repente, um pensamento veio-lhe a cabeça; um pensamento que a fez rir de alegria, e sentir-se mais tranquila. Mentiu:
-São para minha mãe. Seria o aniversário dela.
Apontando para o chão, ela mostrou o vaso quebrado, que era igual ao que Maria trouxera:
-Veja; acabei de quebrar este vaso, que foi um presente dela, e que é igualzinho ao que você me trouxe!
Maria abaixou-se junto aos cacos, pegando alguns deles.
-Mas isto é incrível, Aurora! Sabe, não pode ser apenas coincidência, afinal, eu senti vontade de comprar este vaso e dá-lo a você, assim, de repente... sua mãe pode estar lhe mandando uma mensagem.
Aurora sorriu:
-É, eu sei. Éramos muito unidas. E eu já entendi a mensagem. Vamos tomar um café?
-Prefiro um de seus chás mágicos.
Aurora estancou, a caminho da cozinha:
-Chás mágicos? Por que disse isso?
Maria ficou vermelha, e muito sem graça.
-Não sei... simplesmente me veio à cabeça. Coisas engraçadas me acontecem quando estamos juntas. Como quando a vi pela primeira vez, há quase dois anos... uma voz, sei la´, um pensamento talvez, alguém ou alguma coisa me dizia que eu deveria tentar ser sua amiga. Mas você não é lá muito receptiva.
-E, eu sei. Me desculpe.
Aurora começou a caminhar novamente para a cozinha, mas Maria segurou-a pelo braço:
-Aurora, gosto de você. Não estou aqui para fazer-lhe perguntas ou vasculhar sua vida. Estou aqui porque sei que você precisa de mim, precisa de uma amiga. Sei que vive aqui sozinha, e que não vê muita gente, a não ser as pessoas que vem consultá-la nas cartas... ou seus clientes na feira. Saiba que estou aqui sem qualquer interesse pessoal.
Aurora murmurou:
-Obrigada, Maria, eu sei.
As duas caminharam até a cozinha, e Maria sentou-se à mesa enquanto Aurora preparava o chá e colocava as xícaras, colheres e pires sobre a mesa.
-Amei sua casa, Aurora! É linda, e tudo tão carinhosamente enfeitado! Você tem mesmo mãos de fada!
-Herdei este dom de minha mãe (Pensou que herdara também muitos outros dons, mas ficou em silêncio sobre eles).
-Mas me diga: como começou essa coisa de ler cartas fazer previsões?
Aurora ficou algum tempo em silêncio antes de responder, e Maria achou-se atrevida demais por ter perguntado. Desculpou-se:
-Sinto muito, mas você sabe que não acontece muita coisa em Vinhedo, e você tem sido o assunto da cidade desde que chegou.
Aquela declaração assustou Aurora. Tudo o que ela não queria, é ser notícia ou chamar a atenção. Mentiu novamente:
-Ora... ler o futuro, ou ler as cartas, é usar muita psicologia, e dizer o que as pessoas querem ouvir baseada naquilo que elas mesmas me contam espontaneamente.
-Então você é uma farsante?
-E quem não é?
Ambas deram uma risada amigável, que quebrou o gelo entre elas.
-Bem, agora acho que não mais terei clientes, não é, Maria?
-Fique tranquila, não contarei a ninguém... em troca de uma fatia desse bolo maravilhoso que você estava comendo!
E as duas passaram a tarde conversando sobre receitas de bolo, pessoas da cidade e amenidades. Maria fazia de tudo para não mais fazer perguntas indiscretas, pois notou que a sua nova amiga não gostava de ser questionada. Deixou que ela revelasse sobre si mesma apenas o que desejava revelar - e não era muita coisa - e apenas ouviu, sem fazer perguntas. Aurora mostrou-lhe alguns novos trabalhos que tinha começado, e o restante da casa. Após quase duas horas que passaram como o vento, Maria despediu-se, pois não queria chegar muito tarde em casa. Ficaram de se encontrar novamente na feira, no dia seguinte - sábado.
(continua...)
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