segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O Casa do Caminho de Pedras - Parte I




Caminhemos por esta floresta, até chegarmos a uma clareira ampla, onde há uma casinha de madeira um pouco caidinha, mas muito bem cuidada. Na varanda, pendem do teto alguns feixes de ervas que lá foram colocadas para secar. Ao lado da porta, um tacho cheio de frutas: amoras, bananas, limões, goiabas, morangos silvestres, tangerinas, abacates, figos e outras frutas que são facilmente encontradas nas árvores que abundam por ali sem que ninguém as tenha plantado. Com elas, ela faz geleias e compotas que de tão deliciosas, são disputadas na cidadezinha de Vinhedo, onde tudo é vendido. Quando não há frutas disponíveis nas árvores, as pessoas trazem as suas próprias frutas para que ela prepare as compotas e doces.

Olhemos para a lateral direita da casa, e veremos uma pequena horta onde estão plantadas algumas verduras e tomates. Parte é vendida em uma barraca na feira, aos sábados, e o que sobra, é consumido pela própria moradora. 

Nos fundos, há um galinheiro. Os ovos vem dali. As galinhas, patos e marrecos podem ficar tranquilos, pois não virarão jantar - pelo menos, enquanto morarem por ali. Porque os filhotes também são vendidos na feira. Há também um pequeno curral, bem rústico, construído pelas mãos da proprietária daquela casa, onde descansa, mastigando seu capinzinho, a Betânia. Dali vem o leite que é usado para produzir manteiga e queijo. Não é muito, mas serve para o próprio consumo. Quando sobra alguma coisa, também é vendido na feira. Perto dela, o Zezé - um cavalo já velho - espera o momento em que seus serviços serão necessários  para transportar os poucos produtos até a feira.

A eletricidade provinha de um gerador que às vezes dava defeito, e era consertado de graça por seu Manoel mecânico, em troca de alguns produtos. Ela tomava seus banhos no meio da cozinha, em uma tina de água quente que era aquecida no forno à lenha. Não havia chuveiro ou banheira no pequeno banheiro. 

O piso da casa era todo de madeira, que era mantida sempre limpa e encerada. Em alguns pontos estratégicos, havia tapetes de malha trançada, muito coloridos, feitos pelas mãos dela. As pequenas janelas envidraçadas, que abriam para dentro da casa, tinham sido pintadas em pátina branca e azul bem clarinho, por ela mesma. Confeccionara cortinas brancas e curtas, de algodão, em cujas barras ela bordara, em linhas pálidas, pequenas rosas em vermelho , lilás e amarelo, entremeadas de folhas em verde bem pálido. As paredes eram amarelas, muito clarinhas, e havia desenhos de flores coloridas em volta dos portais - que é claro, ela mesma pintara. 

Na parede do corredor, um único quadro com o retrato de sua falecida mãe.

Na sala principal da casa de 4X4, havia uma mesa de madeira antiga, meio-quebradinha e gasta, que ela tinha patinado em branco, e duas cadeiras que ela achara no lixo e reformara, forrando os assentos com tecidos de florzinhas miúdas e patinando-as de branco. Em um dos cantos, um sofá de dois lugares em veludo vermelho, um pouco desbotado, que ganhara de uma de suas clientes. Era antigo, e dava um ar de nobreza decadente ao ambiente. Em frente ao sofá, uma estante antiga (também presente de um de seus clientes) que continha alguns livros já gastos de tão lidos.  Do lado de fora das janelas, sobre os largos peitoris, ela tinha colocado vasinhos de barro pintados de várias cores, onde plantara temperos e flores miúdas.

Na cozinha, imperava o fogão à lenha, uma pequena mesa tosca de madeira, escurecida aqui e ali pelo calor das panelas e a calda derramada das compotas, dois banquinhos redondos que pintara de vermelho-vivo e um armário que continha suas poucas louças - a maioria, doações de suas clientes. Sobre o fogão, seu enorme bule de ágata, também achado em uma lixeira, e cuidadosamente limpo e desamassado por ela. Refizera o cabo com um pedaço de madeira que esculpiu à canivete. Ela era muito habilidosa. Em um canto perto da pia, algumas caixas de madeira empilhadas onde ela colocava vidros de maionese ou café, reciclados por ela, que ela pintaria à mão e que conteriam suas compotas.

Também vendia na feira toalhinhas bordadas, paninhos de croché e tricô e alguns quadrinhos pequeninos, com motivos de paisagens, tão bem pintados, que também eram disputadíssimos pelos seus clientes. E assim ela vivia, e ganhava a vida.

No único quarto, havia uma cama de casal (doada por uma cliente ao ver que ela dormia em um velho colchão, no chão) para a qual ela confeccionara uma linda colcha de fuxicos coloridos. Ao lado da cama, sobre uma mesinha pintada de cor-de-rosa pálido, um pequeno luxo: um candelabro de prata para uma vela grossa, que comprara na cidade. Custara-lhe muito dinheiro, mas desde que pusera os olhos nele, pensou no quanto seria bom possuí-lo. Poderia ler à noite, economizando o combustível do gerador. É claro que ela poderia acender sua vela em um prato velho, mas possuir o candelabro tornara-se um sonho de consumo que ela conseguiu realizar economizando por seis semanas. 

Vestia-se com as roupas que ela mesma costurava, ou com roupas que suas clientes lhe traziam e que ela reformava, retingia, recortava e personalizava. Ninguém poderia dizer que se vestia mal, mesmo que não seguisse a moda. Seus vestidos eram simples, mas belíssimos, sempre de cores claras, imaculadamente limpos e bordados por suas mãos de fada. Gostava muito de usar botas, não apenas pela conveniência (havia muita lama e terra por ali) mas também porque elas mantinham seus pés e pernas aquecidos, já que não tinha muitas calças compridas por não gostar delas.

Vivia em paz naquele lugar aonde chegara há apenas dois anos, vinda de uma outra cidade que ficava bem longe dali, e onde deixara a vida de sua mãe e uma história de muita tristeza e incompreensão.

Aquela paz conquistada não tinha sido de graça. Aquele pequeno mundo que ela criara viera de um outro mundo bem mais conturbado, do qual ela precisara fugir para sempre. Chegar até aquele remanso tinha custado muito caro... usara todas as suas economias para comprar aquele pedacinho de terra com a casinha de madeira, no meio do nada. Para conseguir meio de transporte até a cidade, era preciso caminhar entre a floresta por quase meia hora, e ela dava graças por não precisar fazê-lo todos os dias. Quando o tempo estava seco, era fácil; mas se chovia, a lama chegava aos tornozelos. Por isso, ela começou a catar pedras lisas e formar um caminho até a estrada, aonde estava o ponto de ônibus. Precisaria de muitas! Algumas pessoas, ao encontrar alguma pedra que achariam que poderia servir, levavam-na até o caminho e a colocavam lá. Assim, aos poucos, a estradinha até a porta de sua casa ia sendo feita. E sua casa ficou sendo conhecida como A Casa do caminho de Pedras.

Mas quem era a moça que vivia ali? Vamos olhar um pouco para ela, agora que compreendemos seu estilo de vida:

Não era muito alta, e um pouco magrela, devido ao grande gasto calórico que seu trabalho e estilo de vida a submetiam. Tinha cabelos muito negros e lisos, que quando soltos, alcançavam sua cintura, mas por conveniência, mantinha-os quase sempre presos em um coque na nuca. Suas mãos eram lindas: dedos finos e longos, terminando em unhas ovais rosadas, com meias-luas muito brancas, apesar de trabalhar na terra constantemente. Para mantê-las assim, sempre limpas e macias, sempre usava luvas para mexer na terra, e após o trabalho,  limpava-as todas as noites com sumo de limão e uma escova macia. Seu rosto não era realmente bonito - o nariz era um pouco afilado demais, e as sobrancelhas um pouco grossas e muito escuras que ela nunca tirava, davam-lhe um ar meio-desproporcional ao rosto fino e levemente bronzeado. Tinha um ar meio-selvagem/contido, devido ao contraste entre os olhos verde-escuros e o comportado coque, que emprestava-lhe uma aparência respeitável. Os lábios eram finos e delicados, e os dentes eram brancos mas um pouco tortos . 

Seu nome? Poderia ser qualquer nome. Mas ela escolhera para viver naquela cidade, Vinhedo, um que achava que combinaria com as vinhas que ela vira de dentro do ônibus de manhã cedinho, aquele ônibus que tomara à noite, por acaso, em seu momento de desespero na estação da outra cidade onde vivera; ela vislumbrara vinhas que se perdiam de vista na imensidão daquelas terras: Imediatamente, achou que ninguém a reconheceria por ali, ou suporia procurá-la naquele lugar pequeno e inusitado, há milhares de quilômetros de distância de onde ela vinha. Escolhera por nome Aurora. Porque os céus rosados com voos de pássaros encimavam as plantações e o movimento lento dos primeiros trabalhadores. Porque a névoa da manhã ainda se dissipava ao calor dos primeiros raios do sol. Seria Aurora, deixando para trás a negra vida de Rúbia. Deixaria para trás a noite de sangue e ruína, os gritos acusadores, as lágrimas e as dores causadas pela mentira, a calúnia e a incompreensão daquelas pessoas. Deixaria para trás a vida que tivera com sua mãe - por quem ainda chorava e de quem sentia muita falta, mas que deveria ficar no passado, junto com as outras pessoas e acontecimentos. Isto, se ela quisesse realmente seguir em frente e reconstruir a sua vida.

Assim, pediu ao motorista que a deixasse ali, no meio daquela estrada. Ele ainda perguntou se ela tinha certeza; afinal, não havia nada por ali. Não havia casas, apenas as vinhas em ambos os lados da estrada, e os raios de sol que chegavam, dissipando a neblina. Ela assentiu com a cabeça. Inventou uma história sobre uma tia que morava ali perto e que a estava aguardando. E depois, ficou olhando o ônibus partir, carregando sua única valise, até que ele sumiu lá na frente, na primeira curva daquela estrada tão reta. 

Apertou o casaco contra o corpo para proteger-se do frio. Suspirando fundo, começou a caminhar lentamente, sem saber para onde ir. Carregava em sua pequena valise algumas poucas mudas de roupas e um saco de pano com o dinheiro que João, seu único amigo e advogado, conseguira pela venda da casa, do carro e de seus demais bens. Sentiu-se triste ao lembrar-se de que nunca mais o veria, ele, o único que permanecera ao seu lado depois de tudo o que acontecera. Acolhera-a em sua casa, dando-lhe carinho e abrigo, sem nada pedir em troca. Ignorou as calúnias que circulavam sobre ela e sua mãe. Ajudou-a com a venda do que restara da sua casa, seu carro e um terreno. Insistiu para que ela reconsiderasse sua decisão, e ficasse com ele. Disse que concordaria em mudar-se com ela para qualquer outro lugar, pois ele a amava apaixonadamente (ainda se lembra da surpresa agradável que aquela confissão fora de hora lhe causara. A quentura no coração, de saber-se amada, afinal, por uma única pessoa no mundo todo.  Descobriu que o amava também, e que exatamente por isso, não poderia deixar que sacrificasse sua vida por ela. João era um advogado com uma carreira de sucesso pela frente, que trabalhava em uma grande firma e resolvia casos dificílimos.

 Conheciam-se desde a faculdade, onde ela estudara Ecologia, especializando-se em Botânica. Eram tão diferentes... ele, filho de pais ricos e bem sucedidos, prático, seguro de si; ela, filha de mãe solteira, pai de origem desconhecida, mística e emotiva. mas alguma coisa aproximara os dois, desde o primeiro momento em que começaram a conversar na cantina da faculdade. Uma grande amizade nasceu. 

João a amara desde o primeiro momento, mas sabia que sua família não a aprovaria. Não tinha coragem suficiente para ir contra as normas impostas pelos pais. No fundo, ele mesmo era preconceituoso, e sabia que Rúbia não se encaixaria entre seus amigos. Não havia lugar para ela em sua vida; seria como plantar uma roseira selvagem dentro da sala escura de um apartamento. Assim, amou-a em segredo, embora os dois se encontrassem quase todas as noites de sexta-feira para ir ao cinema, conversar ou simplesmente deitar-se na relva do campo de golfe e olhar as estrelas. E naquelas conversas, ele se apaixonava cada vez mais. E ela também, mas não admitia nem para si mesma; achava-se pouco demais para ele. Evitava aparecer ao seu lado em público, pois sabia que suas roupas simples o envergonhariam diante de seus amigos sofisticados, que nem sequer sabiam de sua amizade.

Uma noite, a paixão aflorou naquele campo de golfe. Talvez tivesse sido pela influência daquela lua cheia azul e  enorme. Quando viram, estavam nos braços um do outro, e ela entregou a João a sua virgindade. E ele a amou calma e cuidadosamente, sabendo que aquilo nunca mais deveria acontecer. E ela deixou-se ser amada, registrando na memória cada momento, sabendo que a vida estava lhe dando um presente que ela deveria devolver dentro em breve. O silêncio que reinou quando eles se separaram (nunca mais tocaram no assunto) registrou e selou a impossibilidade daquele romance. Passaram a se encontrar menos. 

Mas quando tudo aconteceu, ele voltou e ficou ao lado dela. E descobriu que não poderia deixá-la ir embora, sem se importar em contrariar a vontade dos seus pais e atraindo para si a revolta das outras pessoas. Ele defendeu seu caso e colocou na cadeia os assassinos de sua mãe - gente importante e influente. 

Todas aquelas memórias voltaram para ela - agora, chamada Aurora - enquanto ela caminhava devagar, e o sol fazia-se alto no céu. A última memória que teve de João foi do beijo de despedida. Não deixou que a levasse à estação, pois não queria que ele soubesse para onde ela iria. Jogou fora os seus documentos e o celular. 

Rúbia morrera.





Um comentário:

  1. UAU... parte I recheada de um mistério velado, como lhe é peculiar.
    Leitura agradável com linguagem muito bem elaborada, com descrição do ambiente com ricos detalhes; que me fez entrar de cabeça nesse lugarzinho tão mágico, e colorido e acolhedor. Moça prendada essa...

    Personagem central se apresenta com forte e mística personalidade, sugerindo uma sensualidade em pitadas bem suaves, mesclando com sua alma selvagem.

    A história prende a atenção e em nada peca no tédio , como alguns textos que leio pela net afora.
    Você é mestra minha amiga e vamos pra segunda parte!
    bacios

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