quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A Casa do Caminho de Pedras - Parte IV



 




A partir daquele dia em que Maria visitou-a, Aurora decidiu abrir-se um pouco mais, e ambas tornaram-se grandes amigas. Maria também vivia sozinha, em um pequeno apartamento em um sobrado na cidade. O prédio pertencera aos seus pais, e no térreo, que ela alugava,  funcionava uma padaria. Ela transformara um dos quartos em um estúdio onde confeccionava suas peças de artesanato, e assim ia vivendo. As duas novas amigas passaram a frequentar a casa uma da outra diariamente, e Aurora sentia-se grata pela presença constante de Maria, após tanto tempo de solidão. Ela sabia que poderia confiar nela. Afinal de contas, sua própria mãe o dissera de uma forma bastante direta!

Maria tinha um namorado, Pedro, que estava terminando a faculdade de direito, e que por isso morava em outra cidade. Ele vinha apenas nos finais de semana, e então as duas amigas ficavam separadas para que Maria e Pedro pudessem ficar juntos e a sós. E durante os finais de semana, Aurora cuidava de suas coisas, tentando driblar o sentimento de solidão. Contentava-se com apenas uma amiga, pois sabia que não podia deixar que seu nome ou suas atividades ficassem conhecidos demais, ou eles a encontrariam... quando fazia alguma leitura de cartas, era sob a condição de que o consulente mantivesse segredo absoluto de suas atividades, e como seus poucos clientes gostassem muito dela e não quisessem perder a graça de seus serviços, até aquele momento ela tinha conseguido manter sua atividade quase incógnita. Não cobrava pelas leituras; acreditava no que sua mãe lhe ensinara (mas jamais cumprira): "Dê de graça o que de graça recebeste." Mas mesmo assim, Aurora recebia muitos presentes, que estavam espalhados pela casa.

Sua amizade com Maria era baseada em muito respeito e confiança, e ela contava-lhe apenas o que queria contar. Por exemplo: contara-lhe que deixara alguém na cidade de onde viera, e as razões porque o amor deles era impossível. Contara sobre a morte da mãe, mas não sobre as suas circunstâncias, e deixara a amiga saber que não gostaria que soubessem que ela estava ali, mas não revelara os motivos. Nem mencionara sua verdadeira identidade ou seu verdadeiro nome. Maria aceitava o que a amiga lhe revelava sem mais indagações. Sabia que Aurora precisava de tempo para confiar totalmente nela, e que o fato de ter partilhado pelo menos parte de sua história com ela já era uma grande prova de confiança. Maria sabia sobre os dons paranormais de Aurora, mas prometera não falar sobre eles com ninguém. 

Em um certo domingo, Maria achou que já era hora de apresentar seu noivo Pedro à sua melhor amiga. De manhã cedo, enquanto Aurora tomava o café da manhã, ela chegou à casinha na floresta de mãos dadas com o noivo. Aurora ficou muito feliz em conhecê-lo, e logo convidou-os a entrar e partilhar de sua mesa, onde havia um delicioso bolo de nozes que ela acabara de assar, e um bule de café quente e forte. Colocou mais duas xícaras à mesa, e todos comeram felizes.

Pedro estava fascinado pelo sorriso de Aurora. Observava cada gesto seu, e pensava que apesar da moça ter uma beleza simples, que precisava ser descoberta aos poucos, seu charme e magnetismo pessoal eram muito grandes. A voz da moça parecia música aos seus ouvidos. E mais encantado ainda ele ficou quando ela, desaparecendo pelo corredor, voltou trazendo um violão e, para surpresa de ambos, começou a tocá-lo e cantar uma antiga canção popular. Nem mesmo Maria sabia daquele dom da amiga! O casal ficou ouvindo-a tocar, hipnotizados. 

Enquanto ela cantava, Pedro percorria com os olhos  os pés descalços de Aurora, as unhas pintadas de vermelho, a correntinha de ouro no tornozelo esquerdo, a saia de tecido leve caindo suavemente sobre o contorno de suas pernas. Deteve-se entre as protuberâncias arredondadas levemente apertadas contra o corpete branco rendado, os cabelos presos em um coque desfiado, a pele levemente rosada das maçãs de seu rosto. Apertava com força a mão de Maria, como se aquele gesto fosse impedi-lo de pensar nas coisas que estava pensando que gostaria de fazer com sua amiga.

A luz da manhã entrava pela janela, filtrando-se por entre as copas das árvores, e ia incidir sobre os olhos de Aurora, dando-lhes uma aparência mágica, como se fossem duas bolinhas de vidro brilhante e claro. Até mesmo Maria estava fascinada pela amiga.

Quando ela finalmente silenciou seu canto, colocando o violão encostado à parede da sala, os dois pareciam em transe, olhando-a em silêncio; finalmente, após ela pigarrear um tanto sem jeito, o casal começou a aplaudi-la, e Maria, com lágrimas nos olhos, disse:

-Eu nem sabia que você tocava violão e cantava! Nossa, foi maravilhoso! Você deveria estar em um palco! Não concorda comigo, Pedro?

Ele gaguejou, tentando recuperar sua naturalidade:

-É claro! Aurora, você toca e canta bem demais! E consegue passar tanta emoção ao que faz... foi... muito bom, lindo mesmo...

Beijando o rosto do seu noivo, Maria acrescentou, enquanto Aurora agradecia com um gesto de cabeça e um sorriso:

-Eu não te disse que ela era absolutamente especial? E este é apenas um de seus dons!

-Hum... nossa, eu gostaria de saber quais são os outros!

Naquele momento, fez-se um silêncio embaraçoso, e Maria percebeu que tinha falado demais; para consertar a situação, sugeriu:

-Por que não vamos todos nadar? Está uma manhã linda e ensolarada lá fora! 

Dizendo isso, enquanto Aurora ia vestir um maiô, o casal ficou sozinho esperando por ela, sentados nos degraus da varanda. A manhã clara, ensolarada  e perfumada pelo jasmineiro plantado por Aurora , que se entrelaçava entre os caibros da varanda, despejando suas folhas e flores pelo telhado, fazia com que a atmosfera  parecesse carregada de magia.  

Logo Aurora juntou-se a eles, e os três foram caminhando pela mata até uma linda cachoeira próxima. O ruído das águas caindo sobre as pedras era refrescante, e a água cristalina brilhava ao toque dos raios do sol. Sentaram-se um uma grande e lisa pedra, e começaram a despir suas roupas, ficando apenas com seus trajes de banho. Pedro reparou que Aurora tinha a pele branca e perfeita, sem manchas. Imediatamente, apaixonou-se pelas suas pernas fortes e e levemente musculosas. Para tentar concentrar-se em alguma outra coisa, perguntou à Aurora:

-Aurora, Maria me disse que você estudou biologia. Por que não procura algum trabalho em sua área? Bem, me desculpe por perguntar...

Ela soltou os cabelos, que caíram como se fossem uma outra cascata negra a competir em beleza com as águas que tinham à sua frente:

-Na verdade, fiz biologia por outros motivos. Acho que não faz mais sentido... eu gosto do que faço! Adoro trabalhar na feira e vender meus produtos. E saber sobre ervas, plantas, animais... em me ajudado bastante, sabe?  Eu amo a natureza, e leio tudo o que me cai nas mãos sobre ela. 

Ele pareceu ainda mais curioso:

- Mas você poderia trabalhar fazendo pesquisas em uma universidade, por exemplo...

Maria interrompeu-o:

-Hei, deixe a minha amiga em paz! Ela faz o que gosta, só isso. Vamos dar um mergulho?

E os três pularam na água, rindo e brincando. O toque gelado fez com que Aurora se sentisse realmente viva, como já não se sentia há algum tempo. Em volta deles, o cenário era idílico: pássaros, árvores, a mata verdejante, a luz do sol, pequenos insetos e borboletas. Aquele seria um dia que ficaria na memória daqueles jovens por toda a vida. 

Quando o sol já se despedia, eles já estavam de volta à casa de Aurora, e saboreavam uma deliciosa macarronada preparada por ela. O apetite dos três era como o de lobos, pois tinham passado o dia todo na cachoeira, nadando, conversando e alimentando-se apenas das amoras silvestres que Aurora colhera por ali. 

Quando se despediram, já ao cair da noite, Pedro perguntou à Aurora, já na porta de casa, se ela não tinha medo de ficar sozinha naquele lugar tão ermo, e ela respondeu:

-Não! Adoro este lugar, amo esta casa, e dou graças todos os dias por ter podido comprá-la. A natureza sempre é uma ótima companhia. Melhor do que algumas pessoas que conheci... 

Ele notou uma sombra passando pelo rosto dela, mas seguindo as instruções que Maria lhe dera, não perguntou mais nada. Mas quando já caminhava de mãos dadas com a noiva em direção ao carro, antes de entrar, ele ainda olhou para trás, e gravou a imagem dela de pé no meio da varanda semi-escurecida e salpicada de vaga-lumes. 

Depois que eles se foram, Aurora sentiu uma súbita brisa fria envolvê-la rapidamente, e as folhas do jasmineiro tremeram à sua passagem. Sabia muito bem que Pedro sentira-se atraído por ela, e tinha muito medo do que ele poderia pensar. Não queria ferir sua amiga. Não o faria. Talvez fosse melhor, ela pensou, evitar encontrá-lo daquele dia em diante, e ela faria todo o possível para que fosse assim. 








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