segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A casa do Caminho de Pedras - parte VI






Era manhã de sábado. Aurora despertava em sua casa, e as palavras que sua mãe dissera-lhe em seu sonho ainda ecoavam em seus ouvidos? “Ele virá ver você hoje! Cuidado...” Pulou da cama, e vestiu-se depressa com as mesmas roupas que usara no dia anterior, e que ainda estavam penduradas sobre as costas da cadeira. Começou a preparar o café da manhã, após acender o fogão de lenha. Estava servindo-se de uma fatia que sobrara do bolo de nozes, quando ouviu o ruído de um motor de carro e logo depois alguém bateu à sua porta. Já sabia quem era. Hesitou: deveria abrir?

Respirou fundo antes de tomar sua decisão, as palavras da mãe em sua cabeça: “Cuidado!” Mas lembrou-se de que sua própria mãe jamais fora cuidadosa; como poderia querer que ela fosse? “Sou uma mulher adulta,” pensou, enquanto caminhava até a porta.
Ao abri-la, lá estava Pedro. Trazia um pequeno embrulho consigo, que estendeu para ela ao cumprimentá-la com um beijo em cada face. Imediatamente, ela perguntou por sua amiga Maria, e ele respondeu:

-Deixei-a em casa, ainda está dormindo. Fui até a padaria comprar pão, e como achei estes brioches fresquinhos, pensei em trazê-los para você. O cheiro estava irresistível!

Aurora pensou que a padaria ficava a pelo menos quinze minutos de distância de carro, e achou que aquele não era o verdadeiro motivo de Pedro aparecer à sua porta às sete horas de uma manhã de sábado.  Agradeceu, mas sem convidá-lo para entrar:

-Muito obrigada, Pedro. Foi muita gentileza sua.

Ele sorriu, encolhendo os ombros, as mãos nos bolsos da calça. Parecia um menino travesso, ela pensou.

-Não vai me convidar para um café?

Ela o olhou nos olhos antes de responder:
-Olha, Pedro, eu realmente não acho adequado. Maria não está aqui, e logo terei que ir para a feira.

Ele riu, desconcertado:

-Eu sei! Posso dar-lhe uma carona!
-Muito grata, mas eu sempre vou de carroça. Você sabe, tenho um cavalo. Além disso, os produtos já estão todos arrumados na carroça, basta atrelar o cavalo. Daria muito trabalho para colocar tudo no carro.

Ele assentiu, concordando, e insistiu:

-Mas e o café? Posso entrar um pouco?

Ela olhou para ele, como se examinasse seus pensamentos. Achou que era seguro, e fez sinal para que ele entrasse.

-Tudo bem, mas não posso demorar... como eu já disse, preciso ir.
-Está com medo de mim, Aurora? Ora, pelo amor de Deus, não vou agarrar você... sou o noivo de sua amiga, lembra?

Ela sentiu o tom irônico na voz dele. Ignorou-o.

-Sente-se. Vou pegar uma xícara para você. Maria sabe que você está a aqui?
-Mas é claro! Deixei-lhe um bilhete junto com o pão, dizendo que vinha ver você. 

Ela achou que aquilo não fazia sentido, e que aquela situação estava se tornando cada vez mais estranha. Ao mesmo tempo, notou o quanto Pedro era bonito, e gostou do perfume que ele usava – reconheceu o mesmo perfume que João costumava usar, e seu coração apertou-se de saudades. Ele notou sua súbita tristeza:

-Algum problema?

Ela serviu o café, e dividiu com ele sua fatia de bolo. Não respondeu.

-Muito bem, Pedro. O que o trouxe até aqui? Você mal me conhece... tem que admitir que esta situação está um pouco estranha, já que só nos vimos uma única vez e você é o namorado de minha melhor – ou seja – de minha única amiga.
-Bem, Aurora, só nos vimos uma única vez, mas ficamos juntos o dia inteiro... e você tem razão, me desculpe. Eu não vim aqui para dar-lhe uma carona ou trazer-lhe brioches... nem pelo café, embora ele seja muito bom. E Maria não tem ideia de onde eu estou. Eu vou dizer a verdade.

Ela o encarou, resoluta. Sentia que havia uma energia forte emanando deles que os atraía um ao outro, mas que não era aquele o motivo da visita de Pedro.

-Como você sabe, eu estou no final de meu curso de Direito. Há um quadro de avisos na faculdade, onde as pessoas colocam ofertas de emprego, anúncios resultados de provas e outras coisas... você sabe.
-Sim!
-Pois é. Vi uma fotografia lá, entre todos aqueles papéis, que me chamou a atenção.

Ela ficou subitamente alarmada, e largou a xícara de café, derramando um pouco sobre o pires e a toalha de mesa, sentindo o rosto corar. Ficou olhando para ele, as mãos começando a suar. Ele concluiu:
-Há uma fotografia sua lá, e um número de telefone. Alguém está procurando por você.

Dizendo aquilo, ele tirou um papel dobrado do bolso, entregando-o a ela. Apreensiva e curiosa ao mesmo tempo, ela abriu-o devagar. Estava escrito, sob uma fotografia de seu rosto – o cabelo estava um pouco mais curto, mas a fisionomia era a dela, e era impossível tentar convencê-lo do contrário. Lembrou-se daquele dia, onde vestira aquelas roupas formais pela última vez. Fora no julgamento do assassino de sua mãe. A fotografia tinha sido tirada sem o seu conhecimento naquele mesmo dia:
“Você viu esta mulher? Ligue para...” e um número de telefone, que ela não conhecia. Olhou para ele, o coração dando saltos no peito:

-Havia mais algum cartaz?

Ele tranquilizou-a:

-Sim, mas não se preocupe. Retirei-os todos. Rasguei e joguei fora. Não ficou nenhum. 

Aurora começou a chorar, e Pedro aproximou sua cadeira da dela, passando um braço amigavelmente em volta de seus ombros. Ela recostou a cabeça no ombro dele, deixando-se levar pela sensação agradável de estar sendo confortada em uma hora tão difícil. Sentiu-se uma tola, ao achar que ele estava ali por outro motivo. Acalmou seu choro, enxugando as lágrimas. Foi quando ele gentilmente ergueu seu rosto em direção ao dele, e ela sentiu que o magnetismo entre eles era muito forte, ao olhá-lo dentro dos olhos daquela maneira, seus rostos e lábios tão próximos. Deixou-se ficar assim por alguns instantes, mas lembrou-se de Maria, e num esforço, separou-se dele. Notou que ele respirava mais rapidamente, e seus olhos estavam marejados e apaixonados. Ergueu-se da cadeira, indo postar-se o mais longe possível que podia dele na pequena cozinha. Pedro não a seguiu, mas tomou um grande gole de café não adoçado antes de falar novamente:

-Por que estão procurando você, Aurora? Você... fez alguma coisa errada? Você está fugindo de quem?

Ela hesitou. Poderia confiar nele? Achou que não tinha muitas opções agora...

-Você contou a Maria sobre mim?

Ele balançou a cabeça negativamente. 

-Achei que se você quisesse que ela soubesse, já teria contado você mesma.
Ela admirou a atitude dele:

-Muito obrigada, Pedro, e me desculpe porque... quando você chegou, eu pensei que estava aqui por outro motivo, imagine... mas eu prometo a você que não sou uma mulher perigosa, e nem fiz nada de errado. Estou fugindo sim, de pessoas que desejam me fazer mal. Pessoas que assassinaram minha mãe. 

Dizendo aquilo, ela começou a chorar muito, e Pedro correu até ela, abraçando-a. Ele sentia o perfume dos cabelos dela, e o seu corpo muito quente que tremia entre seus braços. Esperou que ela se acalmasse, e tentou novamente conter a forte atração que sentia por ela. Ela mesma sentia-se muito frágil, vulnerável, e ter braços fortes segurando-a naquele momento foi crucial para explicar a si mesma, mais tarde, o que aconteceu entre os dois naquela casa, naquela manhã. Foi como um fogo que lastrou de repente entre eles, e que eles não puderam conter. Em questão de minutos, saciaram sua sede um do outro. Enquanto tudo acontecia, nenhum dos dois pensou em nada, a não ser no que estavam vivendo naquele momento. 

Quando tudo terminou, eles endireitaram suas roupas, sem conseguirem olhar nos olhos um do outro. Ele caminhou até a porta e saiu sem olhar para trás. Ela deitou-se na cama, sentindo-se febril, e não foi à feira naquele dia.

No final da tarde, Maria bateu à porta de sua casa. Estava sozinha. Pedro não estava com ela. Ela foi atender. Ao vê-la, Maria alarmou-se:

-Aurora, você parece doente... por que não tem um telefone? Você precisa de um telefone num lugar desses. Estava tão preocupada, você não apareceu na feira hoje... andou chorando?

-Não, apenas acho que peguei uma gripe, e não me sinto muito bem...
Encaminhou-se novamente para a cama. Deitou-se, e Maria preparou-lhe um chá com biscoitos que achou na cozinha. Quando foi procurar pelas xícaras, reparou que na mesa da cozinha ainda estavam duas xícaras do café da manhã; sua amiga tivera um convidado! Quem seria?
-Aposto que não comeu nada hoje. Tome; beba isto.
-Obrigada, amiga.

Maria indagou, casualmente:

-Vejo que há duas xícaras sobe a mesa da cozinha. Alguém veio vê-la hoje de manhã?

Aurora sentiu o rosto corar novamente. Era a segunda vez naquele dia. Sentia-se péssima por ter dormido com o noivo de sua amiga! Detestava mentiras, mas pegou-se mentindo para ela, o que a fez sentir-se ainda pior:

-Não... uma das xícaras é do café de ontem. Ainda não lavei.
Maria achou estranha aquela resposta, pois sabia do cuidado e do exagero com a limpeza que sua amiga tinha. Não lavar as xícaras? Não era típico de Aurora! Concluiu que ela tivera uma visita e não queria dizer de quem se tratava, e que a tal visita causara-lhe aquele mau estado de saúde. Magoada, comentou:

-Hum... sei... você pode confiar em mim, Aurora. Pensei que já soubesse disso. 

Aurora preferiu fingir que não compreendera o comentário da amiga, e disse, mudando de assunto:
-Você tem razão, talvez seja melhor eu comprar um telefone celular. Farei isso na segunda feira. Você me ajuda a escolher?

Maria assentiu com a cabeça. Decidiu que seria melhor passar a noite com a amiga. Aurora tentou dissuadi-la:
-Não, imagine, eu já estou melhorando... e além disso, hoje é seu dia de ficar com Pedro. Ele vai embora na segunda de manhã.  A noite de sábado é de vocês. 

Vá embora, amiga, eu ficarei bem!

Maria pareceu triste, o que fez com que Aurora perguntasse:

-Algum problema, Maria?

-Não sei. Hoje de manhã Pedro saiu para comprar pão, e demorou bastante, quase duas horas. Disse que passou pelo rio e viu uns garotos pescando, e ficou conversando com eles. Nós sempre fazemos amor no sábado de manhã quando ele chega, mas hoje ele não tocou em mim. Está frio, distante... parece preocupado e pensativo.

-Bem, talvez ele esteja com algum problema...

Maria olhou-a de modo diferente de repente, e ficou em silêncio. Aurora sentiu-se gelar. Era como se Maria estivesse fazendo uma associação entre o comportamento de Pedro e as xícaras sobre a mesa da cozinha... mas ela varreu aqueles pensamentos para longe; como ela poderia desconfiar?
Maria realmente teve um lampejo sobre as xícaras, mas achou que estava imaginando coisas. Encolheu os ombros, sorrindo forçadamente:

-É... talvez ele tenha algum problema, afinal está no final do curso. Pode estar preocupado com o que vem agora...

-Como assim?

-Ele não sabe se aceitará uma oferta de emprego que recebeu de um professor, advogado, para trabalhar em um escritório de advocacia. Ou se fica por aqui e monta seu próprio espaço. Ou se continua, faz um mestrado e começa a dar aulas... enfim, os problemas que todos enfrentamos durante o final da faculdade. E sabe, eu mesma estou preocupada.
-Por que?
-Estamos noivos há um ano, e ele disse que nos casaríamos assim que ele conseguisse um emprego.
-Bem, e qual o problema?...
-É que... sabe, se ele decidir aceitar o tal emprego, teremos que ir embora daqui. E eu amo esta cidade.
-Mais do que você o ama?

Maria não entendeu o tom da pergunta:

-Como assim?
-Bem, se você o ama de verdade, irá com ele feliz da vida!
-Mas... por que eu tenho que deixar minha casa, cidade, trabalho e amigos para seguir com ele, ou com quem quer que seja? Por que essa escolha não pode ser dele; só porque ele é o homem, e eu, a mulher?

Aurora ficou um pouco pensativa. Respondeu da melhor maneira que pôde: 

-Bem, acho que esta é uma decisão para o casal tomar juntos. Mas no fim, vocês chegarão a um acordo que beneficie a ambos, tenho certeza. Não se preocupe tanto, Maria. A vida toma seus próprios rumos.
Maria ficou meditando naquela frase: “A vida toma seus próprios rumos.” De repente, sorriu, abraçando Aurora:


-Você tem razão, estou sendo tola. Nos vemos na segunda feira? Não quer mesmo que eu fique aqui com você esta noite?
-Não, querida. Vá, e aproveite a presença de seu noivo.
-Tudo bem. Passo aqui amanhã para pegar você, lá pelas nove, depois que Pedro for embora. Ele sempre sai bem cedo para não pegar trânsito e chegar a tempo para a primeira aula.

Depois que ela saiu, Aurora levantou-se e foi ligar o gerador de energia. Já começava a escurecer. 



(continua...)

Um comentário:

  1. Parece-me ingrato continuar a ler, deveras agradado, e não deixar umas palavras de sincero apreço. Estou a adorar, Ana! Parabéns!

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