terça-feira, 6 de outubro de 2015

A OUTRA MARGEM - PARTE II






Rayssa sentia-se um pouco só no começo, mas falava com a mãe todos os dias ao telefone, e ficava sabendo de seus projetos no Segundo Lar. Também trabalhava mais do que o normal, pois conseguira algumas traduções com seu editor para preencher o tempo e fazer algum dinheiro extra. Desde que se mudara, há vinte dias, ela e Luciano visitaram os sogros duas vezes, e eles os visitavam quase diariamente. Muitas vezes, eles apareciam durante a semana no meio do dia, sem avisar, enquanto Luciano estava na empresa e quando ela estava completamente absorvida no trabalho. Rayssa era obrigada a interromper seus afazeres a fim de fazer-lhes sala.  Ficavam durante trinta ou quarenta minutos, e se despediam, dizendo que tinham passado "só para ver como ela estava indo." Ela os levava até a porta, e ficava olhando enquanto eles se afastavam com seus moletons de caminhada. 

Depois, Rayssa levava alguns minutos para concentrar-se novamente. "Preciso ser paciente," pensava. 

Mais tarde, os sogros começaram também a aparecer durante os finais de semana, às vezes bem cedo de manhã, enquanto ela e Luciano ainda dormiam. Convidavam o jovem casal para o almoço, e se eles dissessem que já tinham outro compromisso, Joana mostrava-se ofendida, e Carlos baixava os olhos. Rayssa sabia que o sogro estava sendo sincero - gostava dele, e sabia que ele a admirava também - mas percebia a chantagem emocional de Joana. Eles acabavam concordando, mas diziam que tinham que almoçar e sair rapidamente. Acabavam ficando presos após o almoço, pois Joana cismava em mostrar velhos álbuns de fotografias ou então inventava uma receita de família "rapidinha" que queria que Rayssa aprendesse. Rayssa ficava presa na cozinha com a sogra.  Enquanto isso, Luciano fazia companhia ao pai na sala, assistindo a jogos de futebol. Voltavam para casa às cinco ou seis da tarde. 

Ela já não estava aguentando mais tanta pressão, mas não sabia como tocar no assunto com Luciano sem magoá-lo. Falava com a mãe ao telefone, desabafando sobre seus problemas. Esta pedia-lhe que esperasse um pouco mais, dando a Luciano uma chance de perceber o que estava acontecendo, e então, conversasse com ele sobre terem mais liberdade e privacidade. E foi o que Rayssa fez.

Após dois meses vivendo naquele rítimo terrível e sufocante, e notando que Luciano também já se sentia cansado, ela sentou-se perto dele na cama, à noite, enquanto ele assistia ao noticiário. 

-Lu... precisamos conversar.

Ele desligou a TV, virando-se para olhar para ela. Ela passou o braço ao redor do braço dele:

-Nem sei como começar... mas tenho que dizer: eu... me sinto sufocada. Sua mãe não respeita meus horários de trabalho, e invade nossa privacidade todo final de semana. Não conseguimos mais ter um dia só nosso, ou com amigos. Desde que chegamos, só visitei minha mãe quando estive lá porque precisei ir ao escritório, e mesmo assim, durante a semana, e por alguns minutos apenas. Nunca temos um final de semana livre para ela, ou para nós dois.

Luciano escutou-a com atenção:

- Eu sei, você tem toda razão, amor. Só te peço para ser um pouquinho mais paciente. Notou como papai se esqueceu do meu nome ontem, durante o jantar? Ele tentou disfarçar, mas eu percebi. 

Ela concordou com a cabeça, e seu olhar caiu sobre as flores do lençol. Como dizer a ele sem ofendê-lo? Pensou em seu próprio pai, e no quanto tinha sofrido com a morte dele, e no quanto Luciano estivera presente em todos os momentos. Não podia ser egoísta agora, que ele precisava tanto dela. 

-Querido, eu sei que você está precisando desse tempo com seu pai. Eu não me esqueço do quanto você me deu apoio durante a doença do meu pai, mas... eu... 

Ela levantou-se, e começou a andar pelo quarto, a mão no quadril, procurando uma forma de se expressar sem que magoasse o marido.

-Lu, minha mãe nunca invadiu o nosso espaço. Nem nas horas mais difíceis. Mas Joana tem vindo aqui praticamente todas as tardes, interrompe meu trabalho, nos acorda no domingo de manhã e monopoliza todos os nossos horários livres. Isto é realmente necessário? Não há uma maneira de administrarmos isso melhor?

Ele olhava para ela enquanto ela falava, entendendo o que ela queria expressar. 

-Rayssa, amor, por que você acha que eu pedi transferência para a sua cidade? Eu sei muito bem que mamãe é absorvente demais, e vivia se intrometendo na minha vida, e por isso eu me mudei. Sorte minha, pois conheci você. Mas agora a coisa mudou de figura. Ela se sente desamparada e sozinha com a doença de meu pai. Precisa de nós, temos que ser mais pacientes. Voltar a viver aqui está sendo um sacrifício para mim também.

-Eu sei, mas será que você não poderia conversar com ela?

Luciano abre os braços para a esposa, que se aninha entre eles. Promete que vai falar com a mãe a respeito, e estabelecer dias e horários para se verem. 

Enquanto isso, Joana está sentada na cadeira em frente a penteadeira de seu quarto. Nos cabelos presos em coque, colocou a presilha de madrepérola de Rayssa, e ficou admirando seu brilho discreto entre as mexas avermelhadas do seu cabelo. "Perfeito," Pensou. Ao mesmo tempo, sentia  pavor dentro de si mesma por ter pego aquele objeto. Sempre que o tocava, sentia que sua energia interagia com ela de forma forte e intensa. A raiva que sentia da nora aumentava, uma raiva injustificável, já que Luciano parecia muito feliz com ela, que concordara em mudar toda a sua vida e ficar longe da própria mãe a fim de satisfazer um pedido seu. Mas, apesar de saber que aquilo era verdade, Joana não conseguia gostar dela. Queria que ela e seu filho se separassem, para tê-lo novamente para si. Lembrou-se de quando ele era noivo de Cláudia: sabia que o filho não amara Cláudia tão profundamente quanto amava Rayssa. Cláudia era apenas estonteantemente bonita. Era apenas sexo - uma mãe sentia essas coisas - e ela não precisava preocupar-se, pois Cláudia, uma moça de caráter superficial e fútil, nunca seria páreo para ela. 

Surpreendeu-se quando Luciano e Cláudia ficaram noivos. Preferiria que Luciano tivesse se casado com Cláudia, pois assim seria mais fácil para ela fazê-lo perceber que a mulher não era digna dele. Já havia "lidado" com outras namoradas dele antes; eram sempre bonitas demais e com cérebro de menos, exceto por Rayssa. Além  de ser bonita, Rayssa era inteligente, profunda, espirituosa e excelente profissional. Quando olhava para ela, lembrava-se de si mesma, e do quanto havia largado sua carreira de advogada bem cedo, por exigência do marido, para dedicar-se somente ao lar. Aquilo fazia com que sentisse um ressentimento enorme contra a nora. Quando lia seus artigos na revista, e as cartas elogiosas dos leitores sobre Rayssa, queimava de inveja. Acompanhava o blog da nora religiosamente, e lia as centenas de comentários dos seus leitores,  mas dizia a ela que nunca lia, pois não tinha tempo. 

Joana estava tão absorvida em seus pensamentos, que nem percebeu quando Carlos entrou no quarto. Ele a olhou da porta, parecendo confuso. Joana ergueu-se da cadeira, indo até ele:

-Procurando alguma coisa, querido?

Carlos sorriu, e um tanto envergonhado, respondeu:

-Não consigo encontrar o banheiro...

Ao mesmo tempo, seus olhos dirigiram-se para a linda presilha de madrepérola no alto da cabeça da esposa, e ele estendeu a mão para tocá-la, exclamando:

-Oh! Então você a encontrou! Rayssa disse que foi um presente de sua falecida avó, mas que ela o tinha perdido na mudança. Vamos devolvê-lo a ela amanhã.

Joana afastou-se antes que Carlos conseguisse tocar na presilha, exclamando em tom autoritário:

-Do que você está falando, Carlos? Este objeto é meu! Você me deu de presente há alguns anos. Não se lembra?

Carlos pareceu pensar durante algum tempo, e voltou a insistir:

-Não, querida, ele pertence à nossa nora... como é mesmo o nome dela?...

Joana aproveitou a falha na memória do esposo para deixá-lo mais confuso:

-Viu só? Você nem se lembra, querido! Nossa nora chama-se Cláudia. Viu? Quando estiver com ela, lembre-se de chamá-la de Cláudia. E esta presilha me pertence. Agora vamos até o banheiro.

Dizendo aquilo, ela segurou-o pelo braço e conduziu-o até o banheiro, sentindo o peso da presilha sobre sua cabeça. Continuou repetindo baixinho no ouvido do marido: "O nome da moça é Cláudia. Cláudia... guarde bem. Cláudia..." Confuso, Carlos não disse mais nada.

Alguns dias depois, ao terminar seus exercícios na academia, Cláudia dirigia-se ao vestiário feminino enxugando o rosto com uma toalha, quando seu celular tocou. Olhou, e viu o número da ex-sogra. Intrigada, hesitou um pouco, mas sabendo da doença do ex-sogro, de quem muito gostava, achou melhor atender. Ouviu a voz entusiasmada de Joana do outro lado da linha:

-Olá Cláudia, há quanto tempo não nos vemos! Saudades de você.

Cláudia estranhou, mas respondeu:

-Tudo bem Joana? Como vai Carlos? Ouvi dizer que ele... bem... adoeceu.

-Oh, sim, é verdade. Sabe, ele anda cada vez mais esquecido e confuso. É terrível... ter que lidar com isso é simplesmente aterrador. Foi por isso que eu te liguei. Sabe, ele anda perguntando muito por você ultimamente, ele a confunde com a esposa do filho,  e achei que se ele visse você e Rayssa juntas (Rayssa, você sabe, é a...)

-Eu sei quem ela é, Joana.

-Então... se ele pudesse ver ambas juntas, talvez ajudasse a desfazer o nó que ele deu na cabeça. Sabe, ele fica chamando Rayssa de Cláudia o tempo todo, e está ficando um tanto... constrangedor para todos.

-Bem, ela deve saber que ele não está bem, e que isso faz parte do quadro dele.

-Eu concordo com você, querida. Mas ela parece não compreender... fica furiosa! Acaba mostrando que está zangada, sabe... e como Carlos não perdeu completamente o juízo ainda, ele fica muito triste.

Cláudia notou o tom de voz choroso da ex-sogra. 

-Bem, e o que você quer que eu faça?

-Se você pudesse der uma passadinha aqui no sábado à tarde... sabe, convidei Rayssa para um chá. Ela agora obrigou Luciano a estabelecer horários de visitas para nós, imagine só, mesmo sabendo da doença de Carlos. 

Cláudia sentiu-se desconfortável ao ouvir aquelas confissões de Joana, pois ela, Luciano e Carlos não mais faziam parte de sua vida. Muito menos a atual esposa de seu ex-noivo! Mesmo assim, não querendo parecer fria e antipática, confirmou sua presença.

-Obrigada, meu bem. Por favor, pode chegar às três da tarde?

-Claro, estarei lá.

Joana desligou o telefone com um sorriso macabro no rosto, e telefonou para Rayssa:

-Olá, querida nora. Espero não estar interrompendo nada.

Rayssa ignorou seu sarcasmo, e valeu-se dele, respondendo no mesmo tom:

-Olá, sogra querida. Como tem passado?

-Bem, obrigada. Eu estou ligando para convidar você para um chá na tarde de sábado. Sei que Luciano estará viajando a negócios neste final de semana, e achei que você se sentiria sozinha. Já que não nos vemos há três dias, achei que não faria mal em convidá-la.

Rayssa pensou antes de responder. O que ela não queria, era que Joana criasse intrigas com Luciano a respeito dela, então tentou ser cuidadosa:

-Bem, obrigada, Joana, mas eu estou trabalhando em um projeto para a revista e...

-Por favor, diga que sim! Prometo que você vai gostar. Vou fazer aquele bolo de cenoura que você ama. Diga sim, por favor. Preciso me desculpar com você, Rayssa. Eu sei que fui intrometida demais, mas não foi minha intenção.

Ao ouvir aquilo, Rayssa pensou que talvez fosse a chance de finalmente aproximar-se da sogra de maneira mais saudável, e concordou.

-Ok então, Joana. A que horas?

-Às quatro está bom para você?

-Tudo bem, até lá então.

Joana bateu palmas de satisfação após desligar o telefone. A tarde de sábado seria muito divertida.

(continua...)






3 comentários:

  1. Gostei, Ana, a história promete momentos para se conhecer a maldade de uma mãe e como a Rayssa irá se sair!
    Obrigada, abraços carinhosos
    Maria Teresa

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  2. Boa história, é verídica?

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    1. rsrsrs... não, Rachel. Se bem que a gente não sabe... de repente, pode ser a história de alguém que veio parar em minhas ondas curtas.

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