domingo, 31 de janeiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - Capítulo III








O ANJO NO PORÃO

CAPÍTULO III



Uma exultante Vicentina recebeu a notícia sobre o convite para jantar. Escolheu um de seus melhores vestidos, e quando perguntou a Régis qual dos vestidos ela deveria usar na filha, ele logo disse:

-Não, a menina não vai. Sabe, para evitar escândalos. Ainda não estamos casados, e a família é muito tradicional.

Vicentina ficou desapontada no início, mas depois, concordou com ele. Só o fato de que iria a um jantar de família, onde pessoas dignas e direitas estariam presentes, e que ela estaria entre eles, já era o suficiente para deixa-la feliz. Já sentia um amor profundo pelas cunhadas, como se fossem suas irmãs – embora o único contato que tiveram tivesse sido frio e impessoal, nos fundos da casa. Tinha certeza de que, quando elas a conhecessem melhor, ficariam orgulhosas e a chamariam de irmã. Afinal, fariam parte da mesma família!

Desde que fora expulsa pelo pai, por quem não sentiam mesmo muito afeto (era frio e distante), aquela era a primeira vez que  a vida lhe abria portas imensas, e cheias de promessas de felicidade, novas oportunidades de um futuro brilhante para ela e para Regiane, ao lado do único homem que já amara.

Finalmente, viram-se diante dos portões da casa imponente, situada na Avenida Koeller. Foram recebidos por um solene mordomo, que os conduziu até o salão principal. Rosa parecia tão feliz, que Vicentina ignorou o fato de que mal a cumprimentara, e preferiu fingir para si mesma que não percebera a antipatia que as duas irmãs lhe devotavam. Também fechou os olhos ao suor que escorria da testa de Régis, que ele enxugava a todo momento – um sinal de nervosismo que ela conhecia muito bem - , atribuindo tudo ao amor devotado que ele sentia em relação às irmãs: só queria que tudo desse certo!

Vicentina tentava comportar-se de forma austera, sentando-se ereta na ponta do sofá, copiando os gestos das cunhadas. Quando a matriarca chegou à porta do salão, todos se levantaram, e foram feitas as apresentações. Régis sentia-se orgulhoso, pois frequentava ambientes muito finos (mesmo que fosse como copeiro) o suficiente para saber que suas meninas estavam se saindo muito bem e causando ótima impressão.

Foi quando pai e filho adentraram a sala que Régis percebeu uma palidez mortal tomar conta do rosto de Vicentina. Seus olhos encheram-se de lágrimas, e ela engoliu em seco, apoiando-se em seu braço a fim de manter-se de pé. O mesmo se deu em relação ao seu futuro cunhado. O rapaz ficou muito vermelho, empalidecendo em seguida, e passando a gaguejar quase compulsivamente. Todos pensaram que se tratava de nervosismo puro e simples, devido à ocasião que os unia, mas Régis sabia que havia algo mais acontecendo. O jantar foi uma ocasião estranha, na qual todos, exceto por Régis, Vicentina e Alfredo – o noivo -, falavam pelos cotovelos, planejando os detalhes da festa de casamento e da viagem de lua-de-mel à Paris. Régis percebeu que Vicentina e Alfredo mal tinham tocado na comida, e aquilo o deixava cada vez mais apreensivo, pois já intuía o que poderia estar acontecendo: Alfredo só poderia ser um frequentador do prostíbulo, e reconhecera Vicentina!
Depois do jantar, Vicentina deitou-se virada para a parede, evitando maiores intimidades, e deixando Régis com medo de fazer a pergunta que não queria calar. E ele preferiu não fazê-la. Mas seus maiores medos se confirmaram na manhã seguinte, quando, ao chegar na casa das irmãs, deparou com Rosa aos prantos, segurando nas mãos uma carta meio-amassada, entregue bem cedo por mensageiro, as letras borradas pelas lágrimas. Fiorela tentava consolá-la, mas  deu um passo adiante ao ver chegar o irmão, gritando:

-Veja só o que você fez com a nossa irmã! Tudo por culpa daquela... daquela...

-Mas o que está havendo, Fiorela? Por que está chorando, Rosa?

E ele tomou das mãos de Rosa a carta, lendo-a em silêncio, e sentindo seu rosto queimar. Na carta muito formal, Alfredo desmanchava o noivado, dizendo que infelizmente, ao saber das origens da noiva do irmão de Rosa, o pai o proibira de unir-se àquela família. Dizia lamentar profundamente o ocorrido, mas ele mesmo, querendo seguir uma carreira honesta de doutor, não poderia ter o seu nome ligado a pessoas não distintas. terminava a carta friamente, com apenas uma palavra: "Saudações.”

Régis embolou a carta, jogando-a com raiva no chão. Andava de um lado a outro, proferindo obscenidades a respeito de Alfredo, até que Fiorela mandou que se calasse, pois estava piorando a situação de Rosa. Só então ele lembrou-se da irmã, ajoelhando-se ao lado dela, e segurando-lhe as mãos, disse:

-Querida irmã, com sua beleza, certamente logo encontrará um cavalheiro distinto que a queira. Vou me embora; levarei comigo o motivo de sua vergonha, e você e Fiorela nunca mais ouvirão falar de nós. Gente como eles tratará de manter segredo pelo que aconteceu, pois não hão de desejar o nome da família envolvido em escândalos, e tudo será esquecido.
Mas quando Rosa ergueu os olhos para ele, Régis tomou um grande susto: não viu mais a alma da irmã. Alguma coisa tinha se perdido dentro dela para sempre.

Rosa subiu para o seu quarto, de onde não saiu durante vários dias. Vestiu-se de negro, e jogou fora todas as suas roupas coloridas e leves, substituindo-as pelas roupas da velha tia falecida que tinham sido socadas em um baú no sótão, e todas eram escuras, velhas, pesadas e feias. Prendeu os longos cabelos  sedosos em um coque na nuca, e durante toda a sua vida, seria aquele o seu penteado, e aquela a sua indumentária. Jamais voltou a enamorar-se de ninguém. Nenhum rapaz desejara desposar aquela criatura taciturna, que mais parecia um abutre disfarçado.

Ela apareceria mais tarde, em fotos de família como uma criatura de olhar triste e enviesado, calçando sapatos largos e quadrados, uma jovem vestida de idosa por dentro e por fora.
Os dias que se seguiram foram difíceis para Fiorela, pois não sabia lidar com a depressão da irmã. Ao mesmo tempo, o irmão desapareceu novamente, deixando para trás a filha e a mãe de sua filha. Vicentina, grávida do seu terceiro filho, desesperou-se; Diana disse lamentar muito, mas não poderia ficar com ela e mais uma criança; as coisas estavam difíceis naqueles tempos de guerra. Além de tudo, aquele não era um lugar bom para se criar crianças, e como Vicentina fosse uma mulher extremamente fértil, provavelmente acabaria por engravidar outra vez. Diana já não queria mais problemas, pois já fizera por ela mais do que a própria família tinha feito. Porém, em um último gesto de bondade, deixou que Vicentina ficasse por lá com sua filha até que o seu terceiro bebê nascesse; escreveu à irmã na fazenda, e esta aceitou alegremente o filho que, segundo Diana, alguém abandonara em sua porta em uma noite de inverno. Assim, Antônio ganhou um irmão, mas só descobriria o parentesco entre eles muitos anos mais tarde.

Vicentina deixou a casa levando consigo alguns vestidos – presentes de Régis – e vendendo às meninas os demais, pois precisava de dinheiro para manter-se e à filha. Vendera também, muito à contragosto, sua única joia, uma pulseira de esmeraldas e ouro que ganhara de uma tia rica em seu décimo quinto aniversário. Conseguira contatar o irmão em segredo e convencê-lo a levar-lhe a pulseira, o que ele fez a contragosto. Com aquele dinheiro, conseguiu alugar um quartinho no Hotel Royal.
Mas o dinheiro foi acabando, e ela viu-se com o aluguel do quartinho vencido e a filha às margens de passar fome; voltou à vida. Recebia cavalheiros em seu quarto discretamente, após as dez da noite, enquanto a filha dormia alheia à tudo, em um bercinho ao lado da cama.

Fiorela casou-se, e com a permissão do marido, convidou Rosa a morar com eles em sua nova e espaçosa casa. Cedeu à Rosa a edícula, onde ela viveu solitária a maior parte do tempo, passando a ficar muitas horas lendo e tricotando em sua cadeira de balanço. Mal sabia ela que aquela seria a sua casa até idade avançada, e que viveria e morreria ali. Tornar-se-ia a tia mais querida dos sobrinhos, a Tia Rosa, que dava-lhes sempre muitos presentes e que sempre tinha uma maçã bem vermelha para ofertar a quem chegasse. Aos poucos, o amor pelos sobrinhos e a lida da casa tomar-lhe-iam o lugar da amargura, e ela voltaria a ser a criatura doce e ágil que sempre fora. Porém, Alfredo ocuparia sempre um lugar secreto em seu coração, um lugar escondido de todos, ao qual ela retornava sempre todas as noites antes de adormecer. Nunca saberia ela que também ocupava um lugar semelhante no coração dele, que jamais a esqueceria – mesmo já casado e pai de vários filhos. Passariam um pelo outro na rua e não se cumprimentariam, mas seus olhares lhes trairiam sempre, e as batidas aceleradas de seus corações sempre os fariam lembrar daquele habitante secreto.

Rosa nunca mais mencionou o nome de Alfredo. Quando os sobrinhos às vezes lhe perguntavam por que nunca se casara, ela suspirava e desconversava, ou então respondia: “Porque eu não quis. Preferi tomar conta de vocês.” Mas tudo isso deu-se bem mais tarde nesta história.

Antes disso, selou-se o destino de Vicentina.

Sozinha, com pouco dinheiro, má alimentada e levando uma vida promíscua na gélida cidade de Petrópolis, ela acabou adoecendo; contraiu sífilis. Não teve dinheiro para o tratamento, mas a causa da doença ter se espalhado e agravado rapidamente, não foi esta; poderia ter recorrido à ajuda de Diana, que certamente, não se recusaria a ajuda-la mais uma vez. Ela mesma tinha dito que, caso ela precisasse, que a procurasse – mas Vicentina não o fez; poderia também  ter se encaminhado a um hospital público. Mas no fundo, Vicentina não queria curar-se; queria morrer. Não via mais motivos para continuar viva. Olhava para o rosto da filha, e pensava que junto dela, a menina jamais poderia ter um bom futuro. Assim, um dia bateu à porta da casa de Fiorela, levando a menina nos braços. Sua aparência doente penalizou Fiorela e Rosa, que receberam Regiane em sua casa e cuidaram dela. Também tentaram providenciar cuidados médicos para a mãe – “já ouviu falar da penicilina?” Porém, esta recusou-se a tratar-se.

Regiane, aos quatro anos de idade, passou a viver no casarão junto com as tias e a prima recém-nascida, a qual Fiorela deu o nome de Lea. Sentia muita falta da mãe, e chorou muito no início, mas logo acostumou-se a nova vida, pois percebeu que seria aquela a vida que lhe estava sendo oferecida dali por diante. 

(continua...)






4 comentários:

  1. Ana, o titulo anuncia capitulo III, mas o texto é do cap. II

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  2. Que coisa, enquanto lia o início me vi exclamando (como a uma juíza) o preconceito, aí me lembrei de que já estava tentando colocar Vicentina em uma posição nessa história... rs... Senti vergonha de mim... rs...
    Ana, a forma como trata as diferentes reações, que lindos contrastes, parabéns!
    Volto logo mais a noite... Inquieta, curiosa, feliz por ter me dado esse direito.

    Amo as tuas letras!

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