segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

INOCÊNCIA - Parte I, capítulo V





TIA AURORA E TIO ANTÔNIO

Tia Aurora era uma “mulher de revista” – era assim que eu me referia a ela, quando ela não estava presente. Era parecida com aquelas mulheres que apareciam na capa da Revista Cruzeiro dos anos 60, que estavam esquecidas sob a mesinha de telefone do corredor lá em casa: sempre impecável, maquiada e bem penteada, com um sorriso branco demais no rosto, emoldurado por um batom vermelho berrante. Gostava de usar um avental leve sobre o vestido quando estava em casa, embora todos soubéssemos que ela só entrava na cozinha para dar ordens. Extremamente preocupada com aparências, muito doce, de fala mansa e calculada, Tia Aurora era o retrato de tudo o que se podia chamar convencional. Nunca dizia ou fazia nada que fosse imprevisível, nunca contestava ninguém, nunca discutia as regras. A esposa perfeita, a mãe perfeita, a dona de casa perfeita, a grande dama da sociedade. Eu nunca escutava Tia Aurora perder a paciência ou gritar, e se ela o fazia, jamais o fazia em público. Chamava sempre Tio Antônio de 'querido' em público. Nós crianças costumávamos imitá-los quando eles iam embora, e mamãe ralhava conosco quando isso acontecia, enquanto papai dava gargalhadas.

Era muito comum, ao visitá-la de surpresa, encontrá-la vestida e maquiada, arrumando flores em um vaso grande sobre a mesa de jantar. Ela olharia para nós e diria: “Oh, querida, que surpresa agradável!” Deixando todos com a impressão de que, na verdade, não era surpresa nenhuma, e que ela calculara cuidadosamente aquela cena. Um dia, Joana me contou que era verdade; se sua mãe olhasse pela janela e visse alguém chegando na estradinha que levava à casa, ela corria para a sala de jantar, e retirando as flores do vaso, passava a arrumá-las de novo.

Tia Aurora parecia inofensiva, e era assim considerada pela maioria das pessoas: frívola, alegre, coquete. Mas por trás daquela máscara de perfeição e solicitude (eu descobriria mais tarde) havia o medo de ser julgada e uma disposição imensa para julgar a todos. Casara-se com Tio Antônio, dez anos mais velho, quando ainda tinha dezesseis anos, e todos diziam que tinha sido um casamento arranjado. Mamãe era considerada a rebelde da família, enquanto Tia Aurora era a filha perfeita. Não conheci meus avós muito bem, pois morreram quando eu ainda era bem pequena, mas Berta me contava que os pais de mamãe e Tia Aurora eram um casal quatrocentão, tradicional e cheios de convenções e preconceitos.

A casa de meus tios era o oposto da nossa: sempre muito arrumada, limpa e organizada, impecável em todos os aspectos. Não havia sequer uma parede com marcas de umidade; a casa era sempre repintada, e qualquer pequeno problema era imediatamente consertado. Havia muitas peças de arte, vasos caríssimos dos quais nós crianças estávamos frequentemente sendo advertidos para mantermos distância, pisos espelhados de tão brilhantes, e roupas de cama perfumadas. O jardim devia ser uma réplica do jardim do Éden, eu acho. Nenhuma flor fora do lugar, nenhuma folhinha fora dos limites da poda. Eles tinham três empregadas trabalhando dentro da casa, e dois jardineiros. Mesmo assim, em casa Tia Aurora usava aqueles aventais impecáveis em tons pastel sobre seus vestidos perfeitos.

Tio Antônio era muito mais simples e menos sofisticado, embora seguisse os padrões impecáveis de vestir-se. Eu não prestava muita atenção nele, talvez porque ele estivesse sempre trabalhando, ora na fábrica de laticínios, ora no restaurante luxuoso que mantinha na cidade. Costumava chegar tarde em casa todas as noites – muitas vezes, de madrugada – e também viajava muito. Mamãe maliciosamente dizia que por isso os dois ainda eram casados, pois quem poderia suportar conviver com alguém tão perfeito como Tia Aurora? Enfim: meus tios eram a parte rica da família. Meu pai era advogado e mantinha sua própria firma, o que era considerado uma profissão muito rendosa naqueles tempos, mas estávamos longe de sermos ricos. Além disso, meus pais nunca gostaram de ostentar.

Nossa casa era limpa, mas um tanto bagunçada, pois era para lá que as crianças iam quando queriam brincar. Porque  lá nós podíamos correr no jardim sem medo de pisar no gramado,  brincar de guerra de água de mangueira, ficar enlameados até a alma e depois tomar banho no banheiro do jardineiro, que ficava do lado de fora. As crianças podiam brincar de esconde-esconde dentro de casa, por trás dos sofás, sem medo de quebrar coisas valiosas, pois elas não existiam em nossa casa de campo. Mas quando as brincadeiras terminavam, mamãe nos punha – eu, Berta, Cristina e até Joana – para limpar tudo e guardar os brinquedos. Não gostava de sobrecarregar Flora por causa de nossas “artes.”

Mas em casa de meus tios, só podíamos ouvir música (sem dançar), assistir TV ou pular corda no quarto de brinquedos – um espaço no sótão da casa onde meus tios tinham forrado o piso com um carpete grosso, para não fazer muito barulho, e colocado caixas e prateleiras cheias de brinquedos com os quais ninguém mais brincava por medo de quebrá-los e ficar de castigo.

Eu amava meus tios, e sei que eles nos amavam à sua maneira. Tia Aurora era carinhosa comigo e com Berta, e sempre nos presenteava com coisas caras em nossos aniversários. Mamãe e ela eram boas amigas, apesar das diferenças, e costumavam fazer compras juntas quando estávamos por lá. Nós nos visitávamos e comíamos juntos com frequência. E eu simplesmente amava entrar naquele restaurante maravilhoso que pertencia aos meus tios, e que ficava situado em uma enorme mansão na cidade, e ser atendida por garçons de luvas brancas que nos levavam até a nossa mesa e nos serviam com toda cerimônia. Aquelas eram ocasiões muito felizes, e eu me lembro com carinho de todas elas. Mamãe nos fazia vestir nossos melhores vestidos. Às vezes, quando nós insistíamos, ela deixava que Cristina nos acompanhasse, mas ela mesma fazia questão de escolher um dos vestidos de Berta para ela usar, e também fazia com que Cristina nos acompanhasse ao salão de beleza antes dos eventos.

(continua...)



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