terça-feira, 6 de outubro de 2015

A OUTRA MARGEM - Parte I





Mais uma vez, Rayssa andou pela casa, estudando a posição dos móveis. Já anoitecia, e ela tinha acendido algumas luzes que davam aos cômodos uma iluminação indireta e aconchegante. O ruído do seu velho relógio cuco - herança de família, que pertencera á sua bisavó, avó e mãe - emprestava a tudo sensações delicadas que remontavam à riqueza de um lar. A cada hora, o pequeno pássaro dava o ar de sua graça, saindo da casinha e soltando um discreto trinado. Rayssa o tinha levado a um relojoeiro que substituiu o velho som repetitivo e irritante, característico dos antigos relogios cuco, por um único e discreto canto. Georgina, sua mãe, não ficara muito satisfeita com a mudança quando soube, através de um telefonema da filha naquela manhã, mas depois admitiu que o repetitivo "cuco-cuco-cuco" que a acompanhara durante toda a sua vida também a irritava. No fundo, admirava a coragem da filha em quebrar antigas tradições. Uma delas, tinha sido a obrigação do casamento na igreja católica, o que era quase uma exigência da família. Mas Rayssa foi firme: casar-se-ia em uma cerimônia simples na casa de campo dos pais, no começo da manhã, sem padres ou religiosos - apenas um juiz de paz. Aquilo escandalizou os sogros de Rayssa, que fizeram uma pequena cena ao receberem a notícia, mas que de nada adiantou.

Luciano logo estaria em casa. Ela queria que tudo estivesse perfeito para ele. Desejava que sua primeira casa própria, após três anos de casados, fizesse com que ele sentisse sempre alegria ao chegar em casa após um dia cansativo de trabalho. Era sexta-feira, e ela aproveitara o dia para terminar de desencaixotar a mudança e pendurar os quadros. Antes de determinar a posição definitiva dos móveis da sala, ela os empurrou de lá para cá em vários arranjos diferentes, até que encontrou a posição ideal; a poltrona bergére de seu marido ficaria junto à lareira, sobre um pequeno tapete onde ela colocara um confortável pufe, de costas para o  grupo de sofás que formavam um outro ambiente em volta do tapete vermelho felpudo. 

Mais adiante, próxima à cozinha, a sala de jantar, cuja mesa estava coberta em seu comprimento por um caminho de croché  azul-claro feito por sua avó, sobre o qual estava um vaso de flores do campo. Ela respirou fundo: tudo estava muito bonito. Tinha pendurado as cortinas novas, brancas leves  e esvoaçantes, que estavam abertas naquele momento, dando vista ao jardim iluminado e à piscina. No corredor, a passadeira nova, que substituiu a antiga que era curta demais. Ao passar pelo corredor, olhou para o espelho que colocou sobre o  console, e vendo suas roupas sujas e seu cabelo  preso em um rabo-de-cavalo com um elástico, pois não conseguira encontrar seu prendedor de madrepérola,  Raysa decidiu tomar um bom banho de banheira para estar totalmente descansada na hora do jantar.

Acendeu algumas velas em volta da banheira, enquanto a água morna a enchia, e foi pegar seu roupão de banho e os sais perfumados. Colocou uma música bem baixinho, e o som que vinha do aparelho do quarto chegava até lá ainda mais suave. Acendeu apenas a luz sobre o espelho, pois Rayssa não gostava de luzes fortes acesas pela casa. Achava que a noite tinha sido feita para relaxar, e as luzes fortes demais impediam que o corpo se preparasse para o momento de descanso devidamente. Além disso, um ambiente à meia luz remetia à sensualidade, é claro. Entrou na banheira, mas não sem antes de testar a temperatura da água: perfeita! Deixou que seu corpo fosse se entregando aos poucos à deliciosa sensação da água quente e perfumada, e fechou os olhos, deitando a cabeça sobre uma toalha dobrada.  Poderia dormir, de tão relaxada que se sentia. 

Do outro lado da cidade, uma mulher de meia-idade andava de um lado para o outro, medindo o quarto onde estava. Segurava nas mãos um prendedor de cabelos que pertencia a outra mulher. Ela o pegara na casa desta, naquela manhã, sem que a outra percebesse. Não sabia ainda porque fizera aquilo, mas de repente, ao percorrer a casa onde era conduzida em uma visita por sua anfitriã, sentiu uma necessidade quase dolorida de pegar aquele objeto, que parecia brilhar sobre a cômoda apenas para chamar sua atenção. Tentou resistir, mas o objeto parecia exercer uma estranha magia sobre ela, chamando-a para que o pegasse e o levasse dali, o que ela fez assim que a outra mulher saiu pela porta em direção ao corredor, enquanto tagarelava sobre o trabalho que tiveram durante a mudança. Joana - a mulher de meia-idade - olhava com um sentimento invejoso e um sorriso falso, enquanto a nora, sem nada perceber, servia-lhe um chá na sala recém arumada. Olhou em volta, e o sorriso, que morrera no momento exato em que Rayssa entrou na cozinha para pegar biscoitos, voltou ao seu rosto maquiado quando a nora ofereceu-lhe um dos biscoitos de nozes feitos por ela mesma, mas que Joana recusou com uma desculpa sobre estar de dieta.

Dez minutos depois de tomar seu chá, Joana olhou no reloginho de pulso, e levantando-se, disse que precisava voltar para casa, pois seu marido precisava tomar os remédios, e ele sempre se confundia quando ela não estava lá para administrá-los ela mesma:

-Você sabe como são os homens, não é, Rayssa? Totalmente dependentes de nós! (mal sabia ela que dentro em breve, o marido estaria mais dependente dela do que nunca).

Rayssa sorriu, mas sem concordar, e recomendou:

-Dê lembranças minhas a Carlos. Venham os dois, com mais calma da próxima vez!

Rayssa levou a sogra até a porta, e quando a viu entrar no táxi, teve a impressão de que um peso enorme havia sido tirado de suas costas. Ela sempre se sentia assim quando estava próxima de Joana, embora tentasse ignorar aquele sentimento. Era a mãe de Luciano, e agora que ambos tinham se mudado para a mesma cidade que os pais dele viviam, passariam a se ver com frequência, o que fazia que fosse necessário que as duas se entrendessem bem. Rayssa lembrou-se das pequenas indiretas que a sogra jogara sobre ela nas vezes em que estiveram juntas. Indiretas que surgiam sempre que Luciano ou Carlos não estavam por perto. Ela achava que era apenas uma rivalidade natural entre nora e sogra e tentava não dar muita importância, até que num domingo quando ambas estavam sozinhas na cozinha enquanto os dois homens assistiam a um jogo de futebol na sala, Joana olhou para ela com hostilidade mal controlada, e disse:

-Você soube mesmo roubar meu filho da noiva. Fez tudo o que foi preciso para que ele se casasse com você não é?

Desconcertada, pois não estava preparada para aquele tipo de agressão, Rayssa abriu a boca para falar, mas a voz não saiu. Aproveitando a perplexidade dela, Joana continuou:

-Farei o possível para que Luciano seja feliz, mesmo que ele ache que a felicidade dele está ao seu lado, mas preciso ser sincera: você não me engana, Rayssa. Fez com que ele terminasse um relacionamento de anos com Cláudia!

Rayssa conseguiu dizer:

-Espere aí, Joana... quando começamos a namorar, eles já estavam separados há meses!

-Joana interrompeu-a:

-Isto é o que você diz. Mas eu sei que quando você apareceu na vida dele como se tivesse caído de pára-quedas, Luciano teve a cabeça virada por você. Mas eu sempre tentei olhar tudo pelo lado positivo, ou seja, se você foi tão persistente, com certeza é porque gosta dele de verdade.

O que mais surpreendia Rayssa, não era apenas o que a sogra estava dizendo, mas o tom de voz controlado e o rosto sorridente que ela mantinha, enquanto dizia aquelas palavras que a feriam profundamente. Qualquer um que entrasse na cozinha naquele momento, diria que ambas estavam trendo uma conversa leve e amigável. Rayssa ficou tão perplexa, que não conseguiu responder. Sentiu que lágrimas afloravam em seus olhos, enquanto seu rosto queimava.

Joana olhou-a bem dentro dos olhos, com ar vitorioso, e deu-lhe alguns tapinhas amistosos no ombro, dizendo:

-Vamos levar o café para os homens, querida. Eles estão esperando. Vamos.

E saiu pela porta, carregando a bandeja como se nada tivesse acontecido.

Após aquela noite, na qual permaneceu a maior parte do tempo calada, Rayssa também ficou calada durante todo percurso de volta para casa. Luciano a olhava de soslaio enquanto dirigia, até que perguntou:

-Algum problema?

Ela pareceu estremecer, voltando à realidade, e tentou sorrir:

-Não... por que?

-Você está tão calada, amor...

-É só cansaço... preciso acordar cedo amanhã, acho que vou tentar dormir um pouquinho durante a viagem, se não se importa.

Dizendo aquilo, ela fechou os olhos e fingiu dormir durante as quase duas horas de percurso entre a casa dos sogros e a deles.

Rayssa trabalhava em uma revista feminina, para a qual escrevia artigos quinzenais. Também escrevia livros para crianças.  Trabalhava em casa, o que a deixava com muitas horas livres. Tinha muitos amigos no trabalho, mas via em Georgina, sua mãe, a sua melhor amiga. 

Georgina era uma bonita mulher de cinquenta e cinco anos, que tinha uma vida social intensa, muitos amigos e trabalhava em projetos sociais desde que o marido morrera ainda bem jovem, de câncer, há seis anos. Após o luto, ela respirou fundo, ergueu a cabeça e decidiu que ainda tinha o resto de sua vida para viver. Também compreendeu que podia  ajudar pessoas a passarem por aquela doença terrível de maneira menos sofrida, e assim, transformou sua casa de campo em uma casa de passagem para pacientes e seus acopanhantes, que vinham de longe para tratarem-se de sua doença. Chamou sua casa simplesmente de Segundo Lar, e ela a administrava organizando eventos para arrecadar dinheiro, que era totalmente investido em bens necessários aos pacientes e  em obras de ampliação para que ela pudesse receber cada vez mais pessoas. Não cobrava nada pela ajuda que oferecia. A instituição tambem pagava por exames quando os pacientes não podiam pagar eles mesmos. 

Rayssa tinha grande admiração pela mãe, e ambas eram muito unidas. Quando Luciano sugeriu que se mudassem para sua cidade natal, a fim de que pudesse ficar mais próximo do pai, que descobrira estar sofrendo de Alzheimer em fase inicial, ela ficou desolada. Mas Georgina abraçou-a forte, e deu-lhe coragem:

-Você deve acompanhar seu marido neste momento difícil, filha. Estaremos sempre em contato. A internet é uma caixinha mágica. E sempre há os finais de semana, nós nunca estaremos realmente separadas. E bem, você sabe do meu trabalho aqui, e agora que as obras de ampliação estão no final, ele ficará triplicado. Terei até que contratar mais ajudantes para cuidar de tudo. É até melhor que eu possa dedicar mais tempo ao Segundo Lar, o que não é possível com você me telefonando a toda hora... 

Dizendo aquilo, ela deu um sorrisinho implicante, encolhendo os ombros, e Raysa soube que sua mãe ficaria bem. Ela sempre ficava. Era a pessoa mais forte que conhecia. 

Pensou em contar a ela sobre o episódio na cozinha dos sogros, mas achou que não seria preciso deixá-la preocupada. Engoliu seu segredo com um gole de café e um pedaço de bolo. Não queria tornar-se uma preocupação a mais para sua mãe. Tentaria lidar com o problema da melhor forma possível, já que após o episódio na cozinha de sua casa, Joana nunca mais tocara naquele assunto mórbido e absurdo.

Ao contar-lhe sobre a doença do marido, após uma consulta médica para descobrir a causa de seus recentes esquecimentos e desorientações, Joana pareceu-lhe tão frágil que Rayssa chegou a sentir pena dela. Segurou a mão da sogra, enquanto esperou que ela se acalmasse, até afirmar que poderiam contar sempre com ela e com Luciano para o que desse e viesse. Entre lágrimas, Joana olhou para ambos e declarou:

-Eu não vou conseguir lidar com tudo isso sozinha, meus filhos. Preciso da ajuda de vocês.

Luciano sentou-se do outro lado do sofá, de modo que Joana ficou entre ele e Rayssa, e abraçando-a, confirmou o que Rayssa tinha dito:

-Estaremos sempre com vocês, mãe. Pode contar conosco.

Joana balançou a cabeça, concordando, e após assoar o nariz em um lenço de papel que carregava na bolsa, ela ergueu-se do sofá e caminhou até o outro lado da sala, voltando-se para encarar o filho e a nora, que continuaram sentados no sofá:

-Se posso realmente contar com vocês, então tenho um pedido a fazer.

Rayssa gelou: será que ela pediria para morar com eles? Notou, após um breve olhar, que Luciano também estava apreensivo.

Joana disse:

-Queria que vocês estivessem mais próximos. Gostaria que se mudassem para perto de nossa casa.

-Mas mãe, vocês vivem em outra cidade! Meu emprego e o de Rayssa é aqui, e nós...

Joana interrompeu-o:

-Tem razão, é... é uma bobagem minha. Imaginem, como eu poderia pedir que vocês largassem tudo para cuidar de dois velhos? E um deles, tão doente. Não, vocês são jovens e tem a vida toda pela frente, enquanto nós já estamos na reta final. Não se preocupem, o problema é nosso, ou seja, é meu, e tenho que lidar com ele sozinha.

Rayssa sentiu no ar um cheiro de manipulação emocional, mas nada disse, apenas ficou esperando que Luciano se manifestasse. Ele disse à mãe que precisava de um tempo para pensar e tomar uma decisão. Naquela noite, ele e Rayssa tiveram sua primeira briga.

Na manhã seguinte, uma Rayssa de olhos vermelhos e inchados tomava café na mesa da cozinha. Luciano aproximou-se, abraçando-a por trás e pedindo desculpas.

-Sinto muito, amor. É que está sendo muito difícil para mim. Você sabe, sempre fui muito próximo do meu pai, e saber que em breve ele nem sequer se lembrará de mim...

Ele começou a chorar. Rayssa levantou-se, abraçando-o. Passara parte da noite na internet fazendo pesquisas sobre o mal de Alzheimer, e vira a gravidade do problema. Sabia quase que exatamente o que o marido e a sogra teriam que enfrentar, e decidiu ser mais solidária:

-Tudo bem, amor. Nós vamos morar  mais perto dos seus pais. Você pode pedir transferência para lá, e eu posso trabalhar de qualquer lugar, já que fico o tempo quase todo no computador e só vou ao escritório duas vezes por semana. Tentarei reduzir minha ida a uma vez por semana. Eles vão entender.

Ele virou-a para si, olhando nos olhos dela:

-Obrigada, Rayssa. Você não sabe o que isso significa para mim.

Ao ficar sabendo da notícia, Joana deu vivas de alegria. Carlos, que ainda tinha muitos momentos de lucidez, agradeceu-lhes profundamente, com lágrimas nos olhos. Fez questão de adiantar a herança do filho para que eles pudessem comprar uma excelente casa própria, em um bairro ótimo, a trinta minutos de distância deles. E assim, encontramos Rayssa e Luciano, em seus primeiros dias na nova casa.


(continua...)




quarta-feira, 23 de setembro de 2015

O DIÁRIO DO FIM - PARTE VIII - FINAL




 




Os dias acumulavam-se uns sobre os outros, e mais pessoas iam chegando ao nosso pequeno oásis, todas elas cansadas e desiludidas, mas após algum tempo por ali, logo percebiam a importância de sua difícil caminhada, e que a perda de seus entes queridos, que não haviam conseguido chegar, como elas, não tinha sido em vão. Todas as pessoas pareciam perfeitamente integradas umas às outras, o que fazia com que não houvesse conflitos, disputas ou necessidades de liderança. Sara Explicou-me que nos outros oásis o mesmo acontecia. Eu queria muito repartir aquele segredo com alguém, mas ela novamente advertiu-me para que eu não o fizesse, ou ela seria obrigada a provacar-me o esquecimento total sobre o que eu sabia, o que significava a volta das preocupações com meus filhos , as insônias e o medo. Optei por calar-me.

Às vezes Renan me perguntava por que eu estava tão pensativa, e para disfarçar, eu dizia que estava preocupada com nossos filhos. Ele me abraçava, e ficávamos assim por algum tempo, partilhando o silêncio. Eu sentia que ele queria me dizer alguma coisa, e ele também sentia que eu guardava algum segredo, mas nenhum dos dois ousava fazer perguntas um ao outro a esse respeito.

Alí onde estávamos, não havia doenças. Ninguém adoecia. O sol quente parecia não exercer qualquer efeito nocivo sobre a pele daqueles cujo trabalho era ao ar livre, a arar a terra, cuidar das plantas ou construir abrigos novos. A comida e a água eram sempre suficientes, e ninguém fazia perguntas sobre como aquilo poderia estar acontecendo, e nem sentia vontade de desperdiçar ou usar mais que o necessário. Trabalhávamos durante o dia, e à noite, partilhávamos momentos do lado de fora, em volta de alguém que tocava um violão, contava uma história ou de pequenos grupos que encenavam peças de teatro quase improvisadas. Fazíamos oficinas de arte para entreter as crianças. Não mais dispúnhamos de eletricidade a maior parte do tempo, por isso, mal sabíamos do que se passava do lado de fora do nosso oásis. Havia um gerador, mas na verdade, todos concordamos em silêncio em não nos perturbarmos pelo que acontecia lá fora: simplesmente, não queríamos saber.

Havia algumas sessões de cinema, quando Renan ligava o gerador e passava um dos filmes de sua extensa coleção. Também gostávamos de ouvir música, mas, pouco a pouco, escutar notícias deixou de ser um hábito ou uma necessidade.

Eu contava o tempo, enquanto via meus filhos em sonhos. Eles estavam bem, e eu sabia que eles também não se preocupavam conosco, pois tinham também o conhecimento de que estávamos todos bem. 

Hoje, quando penso naqueles dias, concluo que vivíamos num isolamento voluntário e feliz. Havia muita coisa que não sabíamos, e nem queríamos saber. Quando chegavam novos moradores, ainda sob as influências perniciosas do mundo lá fora, eles nos contavam sobre o que estava acontecendo, e nós os escutávamos, mas pouco a pouco, eles deixavam de falar no assunto, e ninguém fazia perguntas.

Uma noite, acordei de repente com sons tamborilando sobre o telhado. Imediatamente, acordei Renan, e nos encaminhamos para fora, onde todos os outros já estavam, alguns com os braços erguidos em direção ao céu, recebendo na pele os pingos de chuva que começavam a cair. Nós nos juntamos a eles, numa festa alegre e frenética, e quando a chuva começou a cair forte, vimos a água entrenhar-se aos poucos nas rachaduras da terra, que logo se fechavam, e as árvores mortas em volta tornarem-se novamente verdejantes. O calor forte arrefeceu. 

Quando a chuva parou, nos vimos todos dispostos em um grande círculo, no centro do qual encontrava-se Sara. O dia amanhecia. 

Olhei para o portão, que estava aberto, e vi duas pessoas na rua, caminhando em direção à casa, ao longe. Mal pude conter um grito de alegria: eram Bruna e Ian! Renan e eu nos entreolhamos, e corremos para receber nosso filhos com abraços e muitas lágrimas. Junto com eles, aos poucos, outras pessoas que não conhecíamos começaram a chegar. As pessoas do nosso oásis as abraçavam, assim que reconheciam nelas seus entes queridos.

Ficamos durante um bom tempo naquela festa de boas vindas, até que alguém nos chamou para o café da manhã. Nos encaminhamos para o grande refeitório que havia sido construído, onde todos nós desfrutamos de uma refeição farta e alegre na companhia daqueles que tanto amávamos. De repente, todos nós nos lembramos de algo: onde estava Sara?

Todos, inclusive as outras crianças, a procuramos por todos os lugares, mas não havia nem sinal dela.   Fui invadida por uma grande melancolia, exatamente como quando eu soube que meus filhos estavam perdidos de mim. Todos nos sentamos e começamos a partilhar nossos segredos. Foi algo natural. Descobri que tudo aquilo que eu soubera através de Sara, os outros também souberam, e que não partilhar o segredo dela uns com os outros era parte da nossa prova. 

Mas seu último segredo, ela jamais contou a ninguém. 


FIM





terça-feira, 15 de setembro de 2015

O DIÁRIO DO FIM - PARTE VII






Ela jogou fora uma pedrinha com a qual brincava, e respirou fundo. De repente, senti naquela menininha um adulto que eu não conhecia. Ergui a mão e acariciei uma mecha de cabelo dela, acomodando-a atrás da orelha, como se aquilo pudesse trazer de volta a criança que eu acolhera naquele dia quente. Eu disse a ela:

-Eu sei que você sabe de alguma coisa, Sara.

Ela concordou com a cabeça, e olhou em volta, parecendo querer certificar-se de que estávamos sós. Nós estávamos sentadas em uma pedra, a alguma distância da casa, e podíamos ver as crianças brincando no quintal, aproveitando os balanços e os brinquedos improvisados feitos pelos adultos. A tarde estava quente, mas o sol se escondera atrás de nuvens pesadas que cismavam em não se transformar em chuva, e que desapareciam à noite como num passe de mágica, dando lugar a céus estrelados e límpidos. Meu marido e Genaro conversavam, apontando para a horta de legumes. Algumas mulheres passeavam, enquanto os homens faziam pequenos consertos aqui e ali ou trabalhavam na horta. Tínhamos ali uma pequena comunidade: éramos trinta e cinco pessoas.

A paisagem árida dera lugar a canteiros, jardins e muito verde em apenas três meses. Cães, gatos, cavalos e outros animais  desfrutavam daquele espaço e eram cuidados por todos. Todos trabalhavam e cumpriam suas obrigações sem que houvesse qualquer tipo de desentendimento.

Finalmente, Sara quebrou o silêncio:

-Quando você me encontrou, eu não me lmebrava. Estava sozinha, e sentia muita fome, sede e medo. Tinha tentado pedir aljuda a algumas pessoas, mas ou elas me ignoravam ou reagiam de maneira hostil, me mandando embora. Eu não sabia de onde tinha vindo, ou como tinha ido parar ali. Não sabia de nada de mim. O nome que dei a você foi o primeiro que me ocorreu, e eu nem sabia o motivo. Acho que fiquei com medo que você não me acolhesse se eu dissesse que eu não sabia quem eu era. Fui me lembrando aos poucos.

Segurei-a pela mão:

-Eu a acolheria de qualquer jeito, querida. Mas quem é você?

Ela sorriu e respondeu, mas ignorou a segunda parte de minha pergunta. 

-Olhe só para todas aquelas pessoas! Elas não estão aqui por acaso. 

Ela apertou minha mão com força, olhando-me bem dentro dos olhos, e murmurou: "Deixe ir."

Eu tentei falar, mas não consegui. Eu não podia mover-me, ou desviar os olhos dela. Ela foi ficando pequena, como se eu me afastasse dela e de tudo, e seu corpo foi sendo emoldurado aos poucos por uma névoa branca, até que ela desapareceui dentro daquela névoa. Ela não disse mais nada, mas eu ouvi; ou melhor, eu compreendi

Havia mais crianças como ela espalhadas pelo mundo todo. Elas estavam perdidas, e pediam ajuda a quem quisesse recolhê-las e dar-lhes amor. Muitos sucumbiram e continuariam sucumbindo, mas era preciso que pelo menos quinhentas delas pudessem receber ajuda e sobrevivessem. As que morriam simplesmente desapareciam, retornando ao lugar de onde tinham vindo, purificadas por seu sofrimento abnegado, e mesmo que sua tentativa tivesse falhado, delas nada seria cobrado. As nuvens no céu esperavam. 

Os lugares que as acolhiam começavam a prosperar. A água voltava milagrosamente. a comida jamais terminava, e tudo prosperava. Nossa casa e as casas que recolhiam tais crianças pareciam  oásis no meio dos mais terríveis desertos, e todos que chegassem saberiam que lhes fora dada uma nova chance.  E chegar até um destes lugares, não era mero acaso. Aquelas pessoas eram guiadas. 

Porém, dependia das crianças e da acolhida que recebiam, se o mundo receberia uma outra chance ou se nossos dias terminariam neste planeta. Eu quis saber se ainda faltavam muitas crianças para que o número chegasse aos quinhentos, mas Sara trouxe-me de volta naquele momento, e eu não fiquei sabendo da resposta. Mas ela disse que os acampamentos do futuro - era assim que elas o chamavam - seriam sempre protegidos, e nenhuma pessoa mal-intencionada conseguiria chegar até eles. O planeta estava passando por uma purificação, e somente aqueles que mereciam permaneceriam nele, mas apenas se quinhentas crianças fossem acolhidas. 

Tentei erguer-me. Eu me sentia um pouco tonta e enjoada, e apoiei-me na pedra, sentando-me novamente. Sara colocou uma mão sobre a minha testa, e os sintomas ruins desapareceram. Apesar de estar diante de alguma coisa muito grande, maior que eu mesma e meus interesses pessoais, eu não conseguia deixar de pensar em meus filhos. Não querendo parecer egoísta, guardei meus pensamentos para mim mesma. Mas Sara pareceu conseguir lê-los:

-O que acontecer a eles, acontecerá a todos. Seja lá o que aconteça, nada há para ser temido. Mas por agora,  eles estão protegidos. Estão em um abrigo semelhante a este. Você não tem nada com o que preocupar-se, Elisabeth. E você não deve comentar nada do que conversamos com as outras pessoas. Elas saberão, quando a hora chegar.

Dizendo aquilo, Sara sorriu e afastou-se, e eu fiquei ali, pensando por que eu tinha sido presenteada com a revelação daquele segredo. Eu não passava de uma mulher de meia-idade, uma escritora que, há sete anos, publicara um único livro que obtivera alguma notoriedade e depois fora esquecido, e que há algum tempo tornou-se apenas apenas mãe, esposa e dona-de-casa. Uma pessoa comum, sem grandes habilidades, que só desejava ver os filhos criados e encaminhados na vida. Só ali, naquele grupo pequeno de pessoas que integravam nossa comunidade havia, entre outros profissionais,  dois cientistas, um biólogo, alguns professores, um engenheiro civil, um agrônomo, seis construtores, um eletricista, dois jardineiros,  ou seja, pessoas que teriam muito mais habilidades do que eu para reconstruir o mundo, se fosse preciso. Por que Sara me escolhera? Logo eu, uma simples dona de casa que nem concluíra a faculdade?

De repente, meu coração deu um pulo: eu me esquecera de perguntar o que aconteceria com as outras crianças, quando tudo terminasse. 

Eu me esquecera de perguntar o que aconteceria a ela.

(continua...)




terça-feira, 8 de setembro de 2015

O DIÁRIO DO FIM - PARTE VI





Foi num segunda-feira de manhã que eles chegaram. Escutei o barulho de passos na rua em frente a casa, e logo, batidas no portão de madeira. É claro, logo pensei que fossem nossos filhos. Renan acordou em um sobressalto, e quando chegamos à porta da casa, Genaro e Dora já esperavam por nós, ambos parecendo muito preocupados. Genaro segurava um pedaço de madeira na mão, como se fosse uma arma, e vi que Renan pegara o atiçador da lareira e o segurava da mesma forma. Meu coração se apertou. As crianças ainda dormiam. Nós olhamos uns para os outros sem saber o que fazer, pois temíamos que fossem saqueadores ou assassinos. O bairro estava vazio, a água, cada vez mais escassa. Quando havia luz, víamos pela TV as invasões e quebra-quebras que frequentemente aconteciam nas cidades. 

Renan e Genaro fizeram sinal para que eu e Dora entrássemos em casa, mas permanecemos à porta, e os dois, vagarosamente, dirigiram-se ao portão. Renan abriu bem devagar a janelinha, e espiou pela greta. Ouvimos uma voz fraca que vinha do outro lado, mas não consegui, de onde estava, distinguir o que dizia, ou se pertencia a uma mulher ou criança. Genaro, que subira no muro, olhou para fora e fez sinal para que Renan abrisse o portão, já descendo do muro e largando sua arma. Bubo começou a latir desesperadamente, e fiz sinal para que ele se calasse, mas de nada adiantou. Ele correu até o portão e começou a rodear os rcém-chegados. Parecia dar-lhes as boas vindas. 

Naquele minuto, as crianças apareceram, sonolentas. 

Eu e Dora fomos ajudar a recepcionar as pessoas que se aproximavam, caminhando com dificuldade. Tratava-se de um jovem casal, ambos aparentando estar na casa dos trinta, e uma criança que logo distingui como sendo uma menina de oito ou nove anos, de cabelos muito curtos. Todos estavam magros, empoeirados e tinham os olhos fundos. A moça apresentou-se, dizendo chamar-se Joana, e apontando para o rapaz que identificou como seu marido Antônio e para a criança, que disse chamar-se Andrea, caiu de fraqueza. Nós a ergguemos e levamos todos até a cozinha, onde rapidamente preparamos refeições quentes para todos e lhes servimos água. Ficamos esperando que terminassem de comer, sem fazer qualquer pergunta, pois notamos que não teriam forças para responder. Quando terminaram, o rapaz falou:

-Viemos caminhando até aqui, a procura de água ou de alguma alma caridosa. Estamos caminhando há quase uma semana. Nossa casa foi invadida, e fomos expulsos. Por sorte, ficamos vivos, mas meu irmão...

A voz dele morreu, e todos compreendemos.

Renan perguntou:

-De onde vocês vem? 

Joana respondeu desta vez:

 -Morávamos do outro lado da cidade.

Dora quis saber:

-E como está a cidade? Há dias não saímos.

Ela tomou um gole d'água antes de continuar:

-Um caos total! As lojas foram invadidas e saqueadas. A polícia não atende mais aos chamados, apenas aconselha que todos fiquemos em nossas casas, o que estávamos fazendo, até que houve a invasão.

Vi uma onda de terror passar pelos olhos dela, e decidi interromper a conversa:

-Vocês devem estar muito cansados. Vão tomar um banho e arrumarei o quarto do meu filho para vocês. 

Dias depois, chegou um casal de idosos, Petra e Moacyr, e nós os recebemos da mesma forma. Quando entraram, a mulher abriu a bolsa e vimos a cabeça peluda de um gato aparecer. O casal nos olhou, pensando que os censuraríamos, mas as crianças imediatamente se encantaram pelo bichano, levando-o para o jardim para alimentá-lo. Nós os instalamos na casa de caseiro, com Genaro e sua família, colocando Pedrinho e Luisinho para dormir no mesmo quarto.

Durante todo aquele tempo, as latas de comida continuaram se multiplicando inexplicavelmente, e a água não parava de jorrar na cisterna. A horta parecia não parar de produzir, e aos poucos, vimos nosso jardim começando a florescer e tornar-se cada vez mais verde. Quando eu perguntava a Sara o que estava acontecendo, ela apenas sorria e dizia que não sabia. Mas nós sabíamos que ela tinha alguma coisa a ver com tudo aquilo. Eu a via caminhar sozinha pelo jardim, afastada das outras crianças que brincavam, e ela estendia a mão sobre o solo, murmurando palavras que eu não conseguia ouvir. Ela fazia isso várias vezes ao dia. Pouco depois, víamos brotinhos verdes saindo da terra seca, e eles vingavam! 

As pessoas não paravam de chegar. Vinham sempre em grupos pequenos. Chegavam cansados, e parecia que eram guiados até o nosso portão por alguma força desconhecida. Transformamos a sala de estar em dormitório, e também disponibilizamos o escritório de Renan, que ficava em uma pequena casa a alguns metros da casa principal. Alguns trouxeram tendas e sacos de dormir, e se instalaram no jardim da casa ou na varanda. 

Através dos que chegavam, ficamos sabendo que a situação lá fora era realmente caótica. Muitas casas tinham sido saqueadas, e as pessoas eram mortas como se fossem moscas por causa de uma simples lata de comida ou por um gole de água. A civilização estava voltando à barbárie, e nem fazia tanto tempo assim que a crise havia começado. A maior parte das empresas tinha falido, pois não podiam operar sem água, e além disso, havia a crise financeira mundial, mas apesar de tudo, minha maior preocupação eram os meus filhos. Porém,  nos piores momentos, Sara me assegurava que eles estavam bem, e eu sentia o mesmo alívio de sempre. 

Um dia, segurei-a pela mão. Ela tentou desvencilhar-se e sair correndo e rindo como sempre fazia, mas eu a segurei firme. Ela ficou séria. Olhei nos olhos dela, obrigando-a a sentar-se do meu lado, e disse:

-Sara, eu quero saber o que está acontecendo. Você parece saber de coisas que ninguém mais sabe, e as coisas começaram a mudar desde que você chegou. Quem é você, e de onde vem? 

(continua...)









sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O DIÁRIO DO FIM - PARTE V







Alguns dias depois, eu estava no jardim observando a pequena horta que Genaro plantara, e vi que alguns tomates começavam a surgir, e os alfaces pareciam estar indo muito bem. Por incrível que parecesse, as plantas não pareciam muito ressentidas com o calor, e cresciam rapidamente. Genaro comentou que dentro em breve teríamos salada no almoço. 

Passei a dormir pesadamente todas as noites, depois daquele meu episódio à mesa do café. Eu planejava ficar acordada a fim de tentar ver se sara voltaria ao reservatório, mas adormecia sem nem ao menos perceber e só acordava na manhã seguinte, o que estava sendo bom, pois me sentia mais bem disposta. 

Os dias corriam sem notícias dos meus filhos, mas estranhamente, eu apenas sabia que eles estavam bem, e que eles ficariam bem. Até me sentia culpada por não conseguir sentir preocupação, mas ao comentar o assunto com Renan, ele fez uma cara engraçada, erguendo as sobrancelhas, e respondeu que com ele se passava a mesma coisa: ele tinha certeza de que as crianças estavam bem.

Saí para dar uma volta pelo bairro, sozinha, no final de uma tarde nublada e abafada. Apesar das nuvens pesadas, a chuva parecia não querer cair, e fazendo as contas, descobrimos que já não chovia há seis meses. As casas vazias tinham seus jardins ressecados. As ruas também estavam vazias e desoladas, e parecia que todo mundo tinha ido embora. Todos os estabelecimentos comerciais tinham fechado. passávamos muitas horas, e às vezes, dias sem energia elétrica, que estava sendo racionada, e também sem telefone. A polícia e as autoridades aconselhavam a todos que ficassem em suas casas e só saíssem caso fosse estritamente necessário, e as famílias mais carentes recebiam cartões que trocavam por comida quando um caminhão passava pela rua, o que poderia levar vários dias para acontecer. Medicamentos também estavam em falta, e ouvíamos pelo rádio os vários pedidos de pessoas que precisavam de medicamentos para controlar doenças crônicas. Também ficávamos sabendo, pelo rádio, das muitas mortes que aconteciam todos os dias devido a doenças que antes tinham sido consieradas totalmente erradicadas, fome, sede e conflitos. As pessoas estavam chegando ao seu limite, o que podia torná-las violentas. 

Mas ali no nosso pequeno mundo, por trás do muro que Genaro e Renan aumentaram e fortificaram com arames farpados, nos sentíamos estranhamente seguros. 

Uma tarde, fui com Dora até o porão para pegar alguns enlatados para prepararmos o jantar, e enquanto descíamos as escadas, ela comentava que as ervilhas tinham acabado, mas que ainda tínhamos algumas latas de milho. Mas quando chegamos até as prateleiras, Dora levou a mão à boca a fim de conter sua surpresa, ao ver várias latas de ervilha empilhadas. Nos entreolhamos, e comenti que ela poderia ter se enganado, mas ela balançou a cabeça, negando, dizendo que tinha certeza absoluta que as ervilhas tinham terminado.

Demos uma geral nos outros produtos, e vimos que tínhamos muito mais comida do que imaginávamos. Tivemos a impressão que estávamos diante de algum milagre, ou pelo menos, de alguma coisa inexplicável. Nós nos sentamos nas escadas do porão, em silêncio, os olhares perdidos no vazio. Foi quando achei que seria uma boa hora para contar a ela o que tinha acontecido naquela noite, no reservatório. Dora ouviu tudo em silêncio, sem fazer perguntas, os olhos atentos presos ao meu rosto. Quando finalmente terminei meu relato, ela suspirou e apenas disse:

-Acho que eu estava certa o tempo todo: temos um anjo entre nós.

Ri de sua ingenuidade, tentando mostrar que, com certeza, haveria uma explicação plausível para tudo aquilo. Quem sabe, Renan tivesse reposto os alimentos? Quem sabe, Genaro se enganara quanto ao estado da mina? Ou eu apenas sonhara aquilo tudo, pois andava muito perturbada de preocupação com meus filhos?

Dora passou a mão pela testa, enxugando o suor, e disse:

-Bem, só há uma maneira de sabermos: vamos perguntar a eles.

E foi o que fizemos. Subimos as escadas carregando os enlatados que precisávamos, e fomos procurar nossos maridos. Nós os encontramos lá fora, cuidando da horta, felizes pelo progresso impressionante que tinham obtido em apenas alguns dias. Renan mostrou-me os tomates quase maduros, e Genaro acariciou as folhas do alface já crescido, dizendo que  comeríamos salada no almoço bem antes do que ele pensara.

Eu e Dora nos entreolhamos, e não dissemos nada. Eles notaram nossa preocupação, e Renan perguntou-nos o que estava acontecendo. Dora contou sua parte da história, sobre os enlatados, e no final perguntou se algum deles tinha reposto a comida, mas eles negaram com a cabeça. Comecei minha história fantástica sobre a noite no reservatório, e foi a vez de ambos se entreolharem. Genaro baixou a cabeça, tirando o chapéu, e colocando-o de volta nervosamente:

-Bem, Dona Elisabeth, eu já sabia sobre o reservatório, quero dizer, eu e 'seu' Renan já sabíamos. Mas eu não sei como isso pode acontecer, pois se eu levar a senhora lá na mina agora mesmo, a senhora vai ver com os próprios olhos que ela secou!

Perguntei:

-Mas por que vocês não nos disseram nada?

Renan respondeu:

-Não queríamos preocupá-las. 

Dora olhou-os com ar de censura:

-E quanto tempo vocês dois acharam que iam manter segredo de uma coisa dessas, hein?

Renan riu, e disse:

-Vocês estão certas. Sabe, eu também notei que Sara é uma menina diferente, e por mais maluca que seja a ideia, também acho que ela pode ter alguma coisa a ver com tudo isso...

Eu disse que queria ir até a mina, e eles disseram que o dia estava quente demais, mas eu e Dora fizemos pé firme, e os dois nos levaram até lá. Éramos seguidos pelas crianças, que brincavam de apostar corrida. Sempre achei incrível a maneira como elas pareciam nem se importar com o calor. Algumas vezes, deparei com Sara nos olhando, muito séria, mas assim que meu olhar cruzava com o dela, ela voltava a brincar como se fosse uma criança comum. 

Ao chegarmos, tudo o que encontramos foi o que Renan e Genaro disse que encontraríamos: muito capim seco, algumas árvores mais teimosas que cismavam em sobreviver e o local onde antes houvera uma mina, totalmente seco, sem nem sinal de água.

Pedrinho e Luisinho nem se davam conta do que estava acontecendo ali, mas Sara sorriu para nós com seu olhar inteligente e misterioso.

(continua...)



sábado, 29 de agosto de 2015

O DIÁRIO DO FIM - PARTE IV



 



Nos dias que se seguiram, tentei contato com meus filhos de todas as formas possíveis, e não consegui, nem mesmo através da embaixada. Tudo o que sabíamos, é que eles tinham deixado o apartamento com as malas e ido para o aeroporto de Lisboa há quase dez dias. Naquele dia, houve uma grande manifestação popular nas ruas que deixou cento e quinze mortos e mais de quinhentos feridos, uma verdadeira catástrofe, e eu só pensava que meus filhos poderiam estar entre eles. Quando a aflição tomava conta de nós, Sara percebia, e vinha sentar-se ao nosso lado. Seu olhar calmo e gentil parecia exercer um poder pacificador sobre nossas almas, e notei que Renan afeiçoava-se cada vez mais a ela. Várias vezes, vira os dois conversando baixinho no jardim, e naqueles momentos, eu percebia que Sara deixava de agir como uma criança e seu semblante tomava ares amadurecidos. 

Ela brincava com Pedrinho e Luisinho como se fosse uma menina crescida tomando conta de crianças menores, demonstrando muita paciência com eles, e sempre deixando-os vencer durante os jogos e brincadeiras. Genaro e Dora também já tinham reparado no ar tranquilizador da menina, e Dora às vezes comentava que Sara era como se fosse um verdadeiro anjo, tomando conta dos seus filhos. 

Certa noite, tive um sonho com meus filhos. Vi-os no chão de uma caverna, as malas abertas, sentados junto a uma fogueira, havia outros jovens com eles. Pareciam estar fisicamente bem, embora angustiados. Meu filho Ian mostrava um computador quebrado, e minha filha Bruna tentava montar as peças de um celular despedaçado. Eu os olhava como se assistisse à cena de algum plano mais alto. Via os topos de suas cabeças, e embora esticasse a mão para tocá-los e tentasse falar com eles, eu não conseguia mover-me; sentia que meu corpo era apenas um pequeno círculo que eles não conseguiam ver. 

Acordei suando muito, angustiada e com um nó na garganta. Olhei para o lado: Renan dormia profundamente, e como ele já não vinha dormindo bem há vários dias, achei melhor não importuná-lo; mas o sonho me impressionou profundamente, e não consegui mais conciliar o sono. Levantei-me, caminhando até a cozinha; mas quando passei pela sala de estar e olhei pela porta de vidro, algo branco se movendo chamou minha atenção: era Sara, que vestia uma camisola branca. Fiquei parada, observando-a. Ela estava descalça, e parecia andar pelo jardim seguindo uma direção lógica. Às vezes, erguia os bracinhos para o céu, e ficava naquela posição durante alguns segundos. Achei que ela pudesse estar tendo uma crise de sonambulismo, mas alguma coisa me fez ficar quieta, apenas observando-a.

Vi quando ela caminhou para fora do jardim, seguindo a trilha que ia dar no reservatório de água, junto à mata ressequida. Abri a porta e segui-a noite adentro. O luar estava claro, e era muito fácil enxergar. A brisa quente da noite e o esforço da caminhada logo cobriram minha testa de pequenas gotas de suor, que começaram a escorrer pelo rosto, mas ela parecia caminhar sem esforço, fresca e decidida.

Andamos durante os cinco minutos necessários para chegarmos ao reservatório, e escondi-me atrás de uma pedra para observar melhor o que ela faria. Ela chegou até o reservatório – uma caixa de cimento quadrada, com uma pesada tampa de madeira por cima. Eu não senti nenhuma apreensão, pois sabia que uma menina pequena como ela jamais seria capaz de erguer a tampa, mas boquiaberta, vi quando Sara apenas ergueu a mãozinha e empurrou a tampa sem o menor esforço. Saí de meu esconderijo, apavorada diante da possibilidade de que ela caísse lá dentro, mas antes que eu pudesse gritar ou chegar até ela, ela subiu rapidamente na beirada do reservatório e pulou na água. 

Eu queria gritar e não conseguia. Corri até a beira do reservatório, olhando lá para dentro à procura dela, mas tudo estava quieto, e a lua se refletia na água. Eu estava apavorada. Tentava falar, chamar por Sara, mas a voz não saía. Meu coração acelerado parecia bater dentro da minha cabeça. Pensei em pular também, mas eu não sabia nadar e não poderia ajuda-la. Tudo estava estranho, pois eu vira claramente quando Sarah pulara na água, mas a superfície estava calma, sem qualquer sinal de agitação. Havia mais alguma coisa estranha que eu não conseguia perceber, mas que ficava agarrada à beira de minha mente procurando um sentido. Eu olhei em volta do poço, e dentro da mata. Só havia o silêncio e o cricrilar de grilos, e alguns pirilampos que passavam. Eu teria sonhado aquilo tudo?

De repente, eu finalmente senti o que se agarrava à beira de minha mente, e que eu não estava conseguindo enxergar: o reservatório estava cheio até a boca! Respirei profundamente, levando as mãos à cabeça, e foi quando escutei o ruído da água da mina entrando com pressão. Aquilo não fazia o menor sentido, pois segundo Genaro, a mina secara há algumas semanas, e o reservatório esvaziara bastante depois que ele e sua família passaram a viver conosco naquela casa. 

Um arrepio na nuca quebrou o calor da noite. Olhei para trás, e vi Sara de pé, seca, atrás de mim. Tive medo dela. Tive medo, e vontade de sair correndo; afinal, ela não era uma criança normal. Vi quando ela levou a mão até os lábios, e soprou-me um sinal de silêncio. 

O que se passou em seguida não está claro na minha mente até hoje, e portanto, não posso explicar. Eu senti que o ar tornara-se mais frio enquanto eu voava sobre a propriedade, e então vi a janela de meu quarto. Acordei em minha cama na manhã seguinte, sentindo-me mais cansada que o normal. 

Eu queria falar com alguém a respeito da noite anterior, mas o que eu diria? Como poderia sequer começar a falar naquilo tudo? Decerto, pensariam que eu estava louca! Eu mesma me senti uma louca, quando, após vestir-me e dirigir-me para a cozinha a fim de tomar o café da manhã, encontrei todos à mesa, conversando, como se nada tivesse acontecido. Olhei para Sara, que me sorriu, dizendo o mais casual “Bom dia” do mundo. Ela ria e conversava com Pedrinho e Luisinho, planejando as brincadeiras do dia. O mundo estava um caos, e as crianças só queriam saber de brincar, e Genaro e Renan conversavam sobre banalidades como se nada estivesse acontecendo. Meus filhos estavam desaparecidos e ninguém parecia se importar. Uma criança mergulhara num enorme e profundo reservatório de água – que deveria estar pela metade, mas estava cheio até a borda – e a vida corria normalmente.

Sentei-me à mesa, a cabeça entre as mãos, sentindo que tudo era estranho, banal e não fazia o menor sentido. Até mesmo Bubo roía um pedaço de osso no canto da cozinha, despreocupadamente, alheio a tudo. Olhei para todos aqueles rostos, que nem sequer pareciam me notar. O grito que dei saiu bem lá de dentro de mim, inesperadamente; eu não queria fazer aquilo, mas quando vi, estava gritando bem alto, extravasando dias e dias de angústia e medo através da garganta. Quando parei de gritar, sentia um formigamento por todo o meu corpo, e lágrimas desciam pelo meu rosto. Todos estavam em silêncio, me olhando. Em câmera lenta, vi Renan aproximar-se de mim e acariciar meu rosto, pegando-me pela mão e levando-me de volta ao quarto. Ajudou-me a deitar na cama, sentando-se ao meu lado, acariciando minha testa. Ninguém me questionou ou perguntou o que estava acontecendo. Da cozinha, vinham murmúrios e sussurros, e vi que eram de Dora, acalmando as crianças e pedindo a elas que fossem brincar lá fora, mas sem fazer barulho.

(CONTINUA...)



quarta-feira, 26 de agosto de 2015

O DIÁRIO DO FIM - PARTE III






Acordei na manhã seguinte com as vozes e risos das crianças brincando no quintal. Era como se eles e Sara se conhecessem há muito tempo. Cheguei à janela e observei, sem ser vista, enquanto eles corriam, brincando de pega-pega. Percebei que Sara muitas vezes deixava-se pegar por Luisinho, que era mais novo e corria menos que o irmão. Eles corriam e brincavam sem a menor preocupação, e pensei no quanto crianças são sempre crianças em qualquer lugar, e em qualquer situação. Pensei também que eu gostaria de ter ainda um pequeno sentimento de otimismo que me restasse... enquanto eu os observei, ainda pude sorrir e esquecer-me de que vivíamos em uma época sombria, apesar do brilho e calor escaldante do sol. De repente, Sara ergueu os olhos e deu comigo olhando para eles. Ela parou de correr por um instante, e me sorriu.

Genaro e Renan foram até a casa de Dona Berta para ver como iam as coisas. Enquanto isso, eu e Dora ficamos preparando o almoço e cuidando da arrumação da casa. O calor forte fazia com que fosse difícil movimentar-se, varrer, ficar ao vapor do fogão da cozinha. Mesmo tendo o ventilador ligado ao máximo, a impressão que dava era que uma massa de ar quente era deslocada em nossa direção; mas se o desligávamos, era ainda pior! 

Por volta das onze horas, o termômetro da varanda marcava trinta e sete graus à sombra. Olhávamos para o céu a procura de nuvens de chuva, mas ele estava límpido, azul e tranquilo. Nenhum vento sequer para amenizar o clima extremamente quente. Eu e Dora nos sentamos à varanda para descansar – o almoço já estava pronto – e servimos suco de laranja gelado às crianças. Naquele instante, Renan e Genaro voltaram da casa de Berta. Disseram ter batido insistentemente, mas ninguém respondera, apesar de terem ouvido o cão latir. Pensavam que ela podia estar dormindo ainda, e acharam melhor voltar após o almoço. Mas o mesmo se deu: o cão latia desesperadamente, mas ninguém atendeu a porta. Genaro tomou a decisão de entrar à força, afinal, Berta já era uma mulher bastante idosa, e ele temia que algo tivesse acontecido a ela. Arrombaram a porta, chamando por ela. Logo sentiram um cheiro horrível. Seguindo os choramingos de Bubo, o cão Beagle de Berta, chegaram ao quarto e depararam com a cena que já esperavam: ela estava morta, e parecia que  há mais de três dias. 

Chamamos a polícia. Tivemos que prestar depoimentos. Foi uma tarde horrivelmente quente e desagradável. Quando levaram o corpo de Berta, Dora ficou com as crianças dentro de casa para que elas não vissem o carro da funerária passando na rua. Adotamos Bubo, o cãozinho de Berta, que estava faminto, sedento e muito assustado. O policial perguntou-nos se conhecíamos alguém a quem pudessem avisar sobre a morte de Berta, mas tudo o que sabíamos era que ela jamais recebia visitas e não tinha parentes. Genaro voltou à casa de Berta à noite, e trouxe em um carrinho de supermercado os mantimentos que encontrou na despensa, alegando que ela não precisaria mais deles... no porão, Renan encontrou várias latas de comida e muitas garrafas de água, o que também recolhemos. Era terrível a sensação de estarmos invadindo, mas Berta realmente não precisaria mais daquelas coisas. 
Aproveitei e levei para casa também alguns vidros de xampu, sabonetes e cremes hidratantes que estavam no banheiro. Chegando em casa, enquanto guardávamos as coisas, fui tomada por uma vontade enorme de chorar, mas segurei-me, para não assustar as crianças. Eu sentia como se estivéssemos fazendo parte de algum daqueles filmes sobre o fim dos tempos, no qual as pessoas entram nas casas vazias para pegar o que puderem. 

Nosso porão e despensa estavam abarrotados, e calculamos que se economizássemos, a comida daria para muitos meses. Genaro começou a procurar um canto mais sombreado no jardim, onde plantou alguns tomates, alfaces e pimentões. A água para rega vinha das sobras da cozinha e dos chuveiros. Decidimos que tomaríamos banhos de dois minutos a cada três dias, embora ainda houvesse muita água no reservatório, pois não sabíamos quanto tempo ficaríamos sem chuvas. As  crianças  passavam bem sem terem que tomar banhos diários, mas eu me sentia horrível. Para mim, era uma das coisas mais difíceis de se fazer. Eu amenizava o calor usando uma toalhinha molhada no corpo, e depois, cremes hidratantes. Dora e os outros faziam o mesmo – tudo para podermos ter água por bastante tempo.

Os dias passaram, e os canteiros de legumes começavam a dar alguns brotos mirradinhos – a água para regas não era suficiente, o que fazia com que as plantas não crescessem muito, mas era tudo o que tínhamos, e Genaro cuidava delas como se fossem seus próprios filhos. Utilizava as cascas de legumes que sobravam, moídas, como adubo; erguera uma proteção sobre a plantação com um tecido escuro, a fim de protegê-la do sol forte. Ele a removia apenas de manhã bem cedo. 

Ainda assistíamos pela TV o caos que estava acontecendo em todo o planeta, com a falta d'água, a crise financeira e o medo das  pessoas, que fazia com que se tornassem cada vez mais violentas. Eu estava muito preocupada com meus filhos, pois desde que me comunicara com eles, há quase dez dias, recebendo a notícia de que estavam voltando ao Brasil, não conseguira mais contatá-los. Tentei a embaixada, que prometeu ajudar-nos, mas mesmo assim, não conseguiam notícias. Diziam que tivéssemos paciência, pois havia muitos casos como o deles. 

A falta de chuvas fez com que o nível dos  rios baixasse drasticamente, causando também falta de energia elétrica durante muitas horas por dia. Era muito difícil conseguir coisas que antes eram simples de serem obtidas, como combustível, água potável, alimentos industrializados, velas, querosene, alguns medicamentos, etc... . 

Em nosso bairro, poucas casas ainda estavam ocupadas, e em nossa rua, especificamente, apenas a nossa. As crianças brincavam com Bubo, o cão de Berta, alheias a tudo o que acontecia em volta delas. Tinham um mundo próprio, e algumas vezes, escutando suas conversas, descobri que brincavam de 'pioneiros'; era algo quer tinham visto na TV. Precisavam sobreviver com muito pouco em uma cidade que estava sendo construída. Eu pensava no quanto os adultos precisavam aprender a ser cmo as crianças de vez em quando e brincar, a fim de aliviar a tensão. 

Eu mesma estava angustiada, e só conseguia pensar em meus filhos. Certa manhã, enquanto todos ainda dormiam, acordei para mais um dia quente, seco e cheio de poeira. Levantei-me da cama, e ao passar pela sala, olhei pela janela e avistei a velha gruta que minha mãe, falecida há anos, mandara construir no nosso jardim. Há quanto tempo eu não ia até lá? De repente, senti uma urgência muito grande de desabafar sobre meus medos com alguém, e dirigi-me sem mais delongas até o local onde ficava a gruta, encrustrada em uma grande parede de pedra natural no jardim, sombreada por um cedro. Enquanto eu olhava para a imagem da Virgem e rezava, senti que as lágrimas que eu vinha tentando conter caíam finalmente, inundando meu rosto. As palavras faziam-se desnecessárias. Eu apenas chorava, olhando o rosto da santa. Foi quando senti o som de passos atrás de mim, e senti uma pequena mão segurar a minha; era Sara.  Ficamos um pouco sde mãos dadas, e ela me sorriu. Disse:

-Eu me lembro de tudo. Sei quem eu sou agora. Sei de onde eu vim.

Ajoelhei-me junto dela, olhando-a nos olhos:

-Que bom, Sara. Conte-me tudo, então.

Ao invés de obedecer-me, ela secou minhas lágrimas com sua mão, perguntando:

-Por que você está chorando?

-Porque estou muito preocupada com meus filhos, querida. Não sei onde eles estão.

Ela fechou os olhos por alguns segubndos, respirando fundo, ainda segurando minha mão, e depois, olhando-me nos olhos, afirmou:

-Não se preocupe; eles estão muito bem. 

-Como você sabe?

-Eu apenas sei. Confie em mim.

Percebi que alguma coisa naquela criança tinha mudado. Ela falava como se fosse um adulto, e seu olhar me tranquilizava de alguma forma, e não sei porquê, eu soube que podia confiar nela, acreditando em suas palavras. Inexplicavelmente, senti que uma onda de alívio tomava conta de mim. 

(continua...)


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O DIÁRIO DO FIM - PARTE II





Apresentei Sara a Bruna e Ian pelo computador. Eles se entreolharam, e tentaram sorrir para a menina, que olhava para eles sem entender como duas pessoas podiam conversar com ela através da “televisão”. Achei incrível que em pleno ano 2019 uma criança daquela idade nunca tivesse visto um computador antes, e compreendi o quanto Sara tinha sido uma criança carente.  Contei a Bruna que a menina estava usando seu quarto, e ela ficou em silêncio durante algum tempo; depois, comentou:

-Mas acho que em breve ela terá uma acompanhante, mãe...

Ela e Bruno se entreolharam de novo, e ele explicou:

-Estamos pensando em voltar. A coisa está muito difícil por aqui. Fui demitido do emprego ontem. E nós sabemos que você e papai não podem mandar mais dinheiro. Acho que não vai dar para pagar o aluguel no mês que vem...

Fiquei preocupada:

-Mas... vocês têm comida? Água?

Foi Bruna quem respondeu:

-Sim, ainda temos água e comida para alguns dias, mas precisamos que vocês comprem as passagens. As coisas lá no meu trabalho também não vão nada bem, vai haver demissões, e tenho quase certeza de que estarei entre os primeiros, já que sou estrangeira; não vai dar para terminar a pós assim. Melhor voltarmos até as coisas melhorarem.

“Até as coisas melhorarem”, pensei. Mas não tinha certeza se aquele dia chegaria. Quando Renan chegou, contei a ele as novidades. Ele pareceu preocupado, mas achou melhor que as crianças voltassem para casa. 


***********************

A água era fria, e escorria pelas minhas costas, aliviando o calor. Em volta, tudo era tão verde, que mais parecia uma pintura. Barulho de chuva, mas o céu estava azul. Barulho de chuva, ficando cada vez mais alto, ensurdecendo-me... a água fria e refrescante tornou-se escaldante de repente. Olhei para cima, e um pássaro colorido cantava num galho de árvore. Parecia um canto agourento. Tudo começou a secar; as folhas iam ficando amarelecidas, douradas e marrons, e logo eram derrubadas por um vento quente. Animais passavam correndo, e caiam mortos no meio do caminho, e no céu o sol se aproximava da terra aos poucos, deixando tudo cada vez mais quente. As gotas de chuva começaram a ficar douradas, e vi que era o sol derretendo. A água ficou dourada, e desceu pelas minhas costas feito lava.

Acordei num sobressalto, sentando-me na cama, a mão na garganta. O calor era sufocante, e notei que o ar condicionado se quebrara. Levantei-me da cama e escancarei as janelas, deixando a brisa morna da noite entrar. No céu, estrelas embaçadas pelo ar poeirento. A lua amarela e cheia parecia rir de nós. 

Na manhã seguinte, Genaro chegou com a notícia:

-Dona Elisabeth, acabo de vir lá da nascente. Secou de vez. 

Meu coração murchou. Jamais pensara que eu viveria para ver aquele momento, aquela época triste. Eu fiquei muda. Durante os cinco anos que morávamos naquele bairro, a água tinha sido sempre abundante, e por isso escolhêramos aquela região. 

Genaro me olhava, apreensivo. Sei que ele pensava que em breve seria demitido. Tentei sorrir, mas formei uma careta:

-A gente pode cavar outra mina... ou poço.

Ele tirou o chapéu, enxugando o suor da testa:

-Não tem mais nenhuma, dona Elisabeth. Há meses venho tentando achar uma, mas está tudo seco. Até as árvores e plantas estão começando a morrer. Bem... acho que no reservatório tem água para mais um ou dois meses. Depois, acho melhor vocês irem embora. Para o sul.

-Mas... está tudo inundado por lá! Vi na televisão que há mais de cem mil mortos, e praticamente toda a população está desabrigada. Estão fugindo de lá. Estão indo para outras regiões.

-É o desespero...mas quando chegarem lá, encontrarão só um deserto. Eles no fundo sabem disso. 

-Mas o governo precisa fazer alguma coisa!

-Não conte com isso, dona Elisabeth. O presidente acaba de dar um discurso na TV dizendo que não tem mais verbas para ajudar ninguém. O governo faliu...

-Mas as Nações Unidas...

-Estão sobrecarregados com o resto do mundo. A Europa toda está um caos só. A África é o reino da fome. Até os estados Unidos estão numa crise horrível, como nunca se viu antes!

Eu sabia de tudo, apenas não queria pensar no assunto. Não discuti com ele. Compreendi que todos estávamos sós, e deveríamos fazer o que fosse possível para continuarmos vivendo, sem contar com a ajuda de ninguém. Ele me olhou nos olhos:

-Eu sei, dona Elisabeth, que é muito difícil para vocês me manterem aqui, e agradeço por tudo; mas eu entendo que a senhora e o ‘seu’ Renan não podem carregar a mim e à minha família nas costas, ainda mais agora que tem mais uma boca para comer (ele olhou para a pequena Sara). Me peguei dizendo:

-E meus filhos estão voltando da Europa...
Ele aquiesceu. Seu olhar era triste, mas conformado. Genaro sabia que não podíamos mais ajuda-lo e à sua família, que tínhamos feito tudo o que era possível.

-Eu me demito, dona Elisabeth.

Senti um nó na garganta:

-Mas... o que você vai fazer? Para onde vai?

-Pra onde tem chuva.

-Mas Genaro... como você vai chegar lá? E quando chegar, onde irá morar? Não há casas, não há lugar seguro, nem mesmo para a população de lá!

-Uma coisa de cada vez... lá a gente vê. Aqui não dá mais. Vou pegar uma carona, mais minha família, em um caminhão de um amigo mais a família dele. 

Naquele instante, vi o carro de meu marido chegando. Fiquei apreensiva, pois ele nunca voltava para casa duas horas depois de ter saído para o trabalho. Antes mesmo de Renan sair do carro, eu já sabia o que tinha acontecido. Ele me olhou, e saiu do carro dizendo:

-Fui demitido. 

Abracei-o, chorando. O que seria de nós, o que seria dos nossos filhos, de Genaro... de todos? 

Ele cumprimentou Genaro, e este lhe disse que estava indo embora com a família:

-Boa sorte para o senhor, e obrigada por tudo, ‘seu’ Renan.

Meu marido aprumou o corpo, e colocando a mão no ombro de Genaro, anunciou:

-As coisas estão difíceis, Genaro. Você não vai conseguir sobreviver com sua família lá fora. Fique aqui conosco.

Genaro ficou com os olhos rasos d’água, e respondeu:

-Obrigada, mas não quero ser um peso para o senhor.

-Já o considero da família, Genaro. Ajudarei como puder. Ainda temos água e comida, e algum dinheiro da minha indenização e economias. Uma mão lava a outra. Confesso que pensei em demiti-lo, mas como fazê-lo, se já nos conhecemos há tantos anos?

Eu interferi:

-Ele acaba de anunciar que as minas secaram.

Mesmo assim, Renan insistiu:

-Não importa. O que acontecer a nós, acontecerá também a vocês. Mudem-se para a edícula com sua família, há dois quartos. Não é muito grande, mas é confortável. Quem sabe, alguma coisa boa acontece no meio de tanta coisa ruim?

Sara escutava a conversa, olhando de um para outro quando falávamos, os olhos azuis arregalados, a boneca apertada junto ao peito. Tinha calçado as sandálias dadas por Renan, e vestia um vestidinho leve de verão. Limpa e penteada, era uma criança realmente muito bela. Eu tinha prendido seu cabelo em um rabo de cavalo, o que deixava seu rosto mais à mostra e mais arredondado. E embora eu não tivesse a intenção de afeiçoar-me a ela, ela e seu silêncio já tinham me cativado.
Genaro apertou a mão de Renan, rendendo-se à oferta.

-‘Seu’ Renan, o senhor sabe que eu tenho mulher mais dois meninos, o Pedrinho e o Luisinho. Mas nós vamos fazer o que pudermos para a ajudar, vamos tentar não ser um peso tão pesado para vocês. 

Renan disse:

-Seria horrível ficarmos sozinhos aqui, Genaro. Todos já se foram, exceto a senhora do final da rua...

Completei:

-Dona Berta. Precisamos ver se ela está bem, se precisa de alguma coisa... bem, ela sempre encomenda do mercadinho. Acho que ela deve estar bem. Não é de muita conversa...

Genaro disse:

-É, mas o mercadinho vai fechar, dona Elisabeth. Ela não vai mais ter de onde encomendar não...
Senti uma grande apreensão ao saber que o mercado do bairro ia fechar, pois sabia que teria que dirigir quase uma hora para fazer compras na cidade. Mas era natural em tempos de crise, e pelas prateleiras quase vazias e os legumes murchos, eu já desconfiara que aquilo acabaria acontecendo.
-Amanhã vamos até lá dar uma olhada. Agora estou cansado e faminto. Vá buscar sua família, Genaro, e venham jantar conosco.

Quando Genaro chegou com a família, sua esposa Dora agradeceu-me, beijando minhas mãos. Tentei evitar, mas ela insistiu, dizendo que nunca tinha visto pessoas tão boas quanto nós, o que me deixou muito constrangida. Sentamo-nos à mesa, comemos e bebemos. Luisinho e Pedrinho eram tímidos, mas notei que sentiram-se mais à vontade quando coloquei-os perto de Sara. As três crianças se entreolhavam e sorriam timidamente. 

Dora me ajudou a tirar a mesa e lavar os pratos, economizando água, como eu ensinara. Ela disse que a partir daquele dia eu não precisava mais me preocupar com os serviços da casa, mas eu a fiz me olhar de frente, e disse:

-Dora, não os chamamos aqui para que fossem nossos empregados. A situação é a mesma para todos. Cada um terá suas tarefas, ninguém deixará de colaborar. Amanhã vamos ao porão e contaremos as latas de comida e os pacotes de cereais, açúcar, sal e macarrão. Também contaremos a água, leite e suco.

-Nós também temos algumas coisas em casa que vamos trazer amanhã. Juntaremos tudo. Não é muito, mas ficaremos felizes em poder dividir.  A laranjeira deu muitos frutos esse ano, dona Elisabeth.

-Me chame de Elisabeth, ok?

(CONTINUA...)




terça-feira, 18 de agosto de 2015

O DIÁRIO DO FIM - PARTE I





O DIÁRIO DO FIM


Era o ano de 2019. Aquele verão fora o mais quente de todos os anos, diziam os noticiários da TV. Os termômetros chegavam a marcar 40 graus à sombra, e mais de 45 ao sol nos dias mais quentes. Eu me sentava em meu jardim, à sombra do velho carvalho, e olhava a grama ressecada e o que restara das plantas. Genaro, meu jardineiro, sugeriu que plantássemos um canteiro de cactos para dar alguma vida ao jardim enquanto as chuvas não chegassem, e eu concordei. E aquele era o único cantinho que emanava alguma vida naquele jardim que já fora um dos mais bonitos das redondezas. 
Genaro também cuidava do poço e da mina d’água. Eu morava em uma tranquila rua sem saída, onde havia poucas casas. A maioria das minas da minha rua já tinham secado, e alguns dos poucos moradores simplesmente fecharam as casas e foram para o sul do país, onde as chuvas torrenciais inundavam as ruas. “Melhor ficar onde tem enchentes do que onde não tem água”, um deles declarou. Todas as outras regiões do país, exceto o sul, que estava inundado pelas enchentes, sofriam por causa da seca prolongada. O clima tinha enlouquecido, e não apenas no Brasil, mas no resto do mundo também. Assistíamos na TV notícias sobre o restante do mundo que falavam de neve na Grécia durante a primavera, frio no verão californiano, derretimento mais acelerado das calotas polares e temperaturas que atingiam 40 graus na Suíça.
 Genaro dizia que a mina que abastecia a nossa casa ainda estava em um bom nível, mas também me aconselhou a economizar o máximo que pudesse e a não “ostentar” muito para evitar olho gordo de vizinho. Dizia: “Em tempos de crise, melhor não mostrar muito, dona Elisabeth”. Achei melhor seguir seu conselho. 
À noite, eu via ao longe as queimadas varrendo as colinas. Diante de tanta seca e tanto calor, como as pessoas podiam tocar fogo no mato daquela maneira? A situação era caótica, mas ninguém parecia dar a importância devida. Afinal, a raça humana tem a estranha mania de achar que as tragédias só acontecem em outros endereços, nunca em suas casas, e algumas pessoas são capazes de reconhecer o caos mesmo estando vivendo dentro dele.
Naquela época, eu tinha quarenta e seis anos e morava sozinha com Renan, meu marido. Meus dois filhos gêmeos de vinte e três anos, Bruna e Ian, moravam e estudavam em Lisboa. Quando nos falávamos, diziam que a situação por lá também não era nada animadora; havia também necessidade de economizar água, pois o racionamento era severo, e as chuvas não chegavam. Além disso, a crise que assolava o país já deixava quase metade da população desempregada. Havia muitas passeatas, e quando eu as via acontecer pela TV, rezava para que Bruna e Ian estivessem em lugar seguro.
Lídia, minha jovem vizinha de trinta e dois anos, dizia que as pessoas estavam exagerando:
-Ouço falar em crise desde que nasci, Elisabeth, e todo mundo sempre reclama que a situação não está boa. Nunca esteve! Acredito que logo tudo voltará ao normal, e nós nos recuperaremos, como sempre tem acontecido. Depois dos suicídios em 1929, a vida continuou e houve grande progresso. E depois dos arrochos salariais, desemprego, casos de corrupção no governo e tantos outros problemas, que começaram no Brasil por volta de 2012, todo mundo tem sobrevivido e seguido em frente. Assim foi, tem sido e será!
Mas Lídia não pode continuar sustentando seu discurso quando a firma de software onde trabalhava fechou e  demitiu todos os funcionários, sem pagar os seus direitos, e ela teve que ir embora e voltar a viver com os pais em Curitiba. Saiu sem nada, pois nem sequer a casa conseguira vender. Ninguém tinha dinheiro para comprar, e mesmo se tivessem, quem compraria uma casa onde não havia mais água? Algumas pessoas só sentem a crise quando ela bate à porta. Lídia e eu nos despedimos em uma tarde de quinta-feira, no portão de minha casa. Ela me abraçou chorando, entrou no carro e partiu. Sua casa juntou-se à longa fileira de casas com portas e janelas fechadas e jardins mortos da minha rua. 
Ainda havia, no final da rua, em uma casa antiga e castigada pelo tempo e a falta de cuidados,  uma velha senhora que vivia sozinha e não tinha filhos que se chamava Berta. Devia estar com setenta anos, e nunca fora muito sociável. Poucas vezes tínhamos conversado com ela, e certa vez, quando a bola das crianças que brincavam na rua caiu em seu terreno, ela a jogou furada por cima do muro. Ela não saía de casa, e costumava encomendar no mercado local as coisas que precisava para viver, como comida, água e outros produtos. Eu sabia, pois já vira o caminhãozinho do mercado parar em frente ao seu portão várias vezes.
Eu saía de vez em quando para dar uma caminhada pelo bairro. Era um lugar tranquilo e bonito, com um pequeno centro comercial a mais ou menos duzentos metros de distância de nossa casa. Levava a sombrinha aberta para obter alguma sombra, já que o calor do sol era causticante, e mesmo assim, ficava com a pele avermelhada. Ia ao armazém buscar alguns legumes – que estavam cada vez mais absurdamente caros devido às dificuldades de plantio e cultivo. Eu e meu marido íamos nos virando conforme dava...  a água estava cada vez mais cara, e apenas alguns podiam contar com o benefício dos carros pipa. Eu tinha em casa quase uma centena de litros d’água armazenados no porão. Tinham sido comprados aos poucos, durante meses. Meu marido, que trabalhava em uma firma de meteorologia, dizia que mais tarde precisaríamos deles, e eu lamentei muito ter que admitir que ele estava certo quando a hora chegou.
Conversando com o dono do armazém, ouvi-o dizer, desanimado, que estaria fechando as portas em alguns dias, pois a falta d’água, a diminuição do número de clientes e o encarecimento das mercadorias o obrigavam a isto.
Em uma das minhas caminhadas, após comprar meio quilo de batatas e algumas maçãs que começavam a murchar, deparei com uma menina. Sentada à beira da calçada, descalça, suja e muito magrinha, ela chorava baixinho. Aparentava ter por volta de cinco ou seis anos. Tinha cabelos pretos e muito lisos, embora sujos. Era uma criança bonita, mas muito maltratada. Aproximei-me dela e perguntei seu nome, e ela me olhou assustada e desconfiada. Repeti a pergunta, e ela murmurou: “Sara.” Olhei-a durante mais algum tempo antes de abaixar-me para poder ver seu rosto melhor. Lágrimas sujas escorriam pela face da menina. 
-Por que você está chorando, Sara? Cadê sua mãe?
Ela não respondeu, secando os olhos com as costas da mão. Repeti a pergunta, e ela disse que não sabia onde a mãe estava, e nem se lembrava onde morava.
-Há quanto tempo você está sozinha?
Ela encolheu os ombros.
-Mas para onde foi sua família?
-Não sei... eu acordei um dia e eu estava sozinha.
-Você tem irmãos? Tios?
Ela negou com a cabeça.
-E quem está cuidando de você?
-Ninguém.
Levantei-me, respirando fundo; não podia deixar aquela criança ali, sozinha, debaixo daquele sol. Abri a garrafinha de água que tinha levado comigo e ofereci-lhe um gole do que tinha sobrado – quase meia garrafa. Ela bebeu tudo. Peguei na mão dela, e levei-a comigo. Sara não tentou impedir-me, apenas seguiu ao meu lado. Fui conversando com ela, tentando saber mais:
-O que você tem comido nesses dias, Sara?
Ela não respondeu; novamente encolheu os ombros, olhando para o chão; parecia estar muito confusa.
-E você tem estado sozinha o tempo todo? Ninguém cuidou de você?
Mais uma vez, ela negou com a cabeça. 
-Onde estão seus vizinhos?
-Não sei... – e ela começou a chorar de novo.
Mil pensamentos e sentimentos me atormentavam; eu tinha plena consciência de que precisava ajudar aquela menina, mas ao mesmo eu pensava em quantas mais havia como ela naquele momento. Além do mais, eu e meu marido também estávamos com dificuldades, pois com a inflação cada vez mais alta, o dinheiro ia ficando cada vez mais curto para podermos comprar o que precisávamos para nos sustentar. Ele já tinha cogitado sobre demitir Genaro, mas e sabíamos que ele era pai de dois meninos ainda pequenos – de onze e treze anos - e que ficaria em grandes dificuldades se nós o demitíssemos, já que a maioria de seus antigos clientes já o fizera. Além de nós, naquele momento difícil Genaro contava com apenas uma outra casa onde trabalhar. 
Ao chegarmos em casa, sentei a menina à mesa da cozinha e servi-lhe uma refeição – arroz, feijão salada e carne, que ela devorou rapidamente, pedindo mais um pouco. Depois, comeu uma maçã e bebeu quase meio litro de suco de laranja. Notei que seu rosto já ganhara alguma cor. Ao terminar sua refeição, Sara ficou me olhando timidamente, enquanto brincava de enrolar uma mecha de cabelo no dedo. Parecia estar esperando que eu a mandasse embora. Mas eu sabia que não poderia fazê-lo. 
Levei-a até o banheiro, e coloquei-a sob o chuveiro, dando-lhe um sabonete. Massageei seu cabelo com um pouco de xampu, e enrolei-a em uma toalha, levando-a no colo até o quarto de minha filha Bruna. Vesti-lhe uma camiseta, que ficou bem grande, mas era o que eu tinha no momento, e mandei que ela ficasse ali, dando-lhe uma das antigas bonecas de minha filha. 
Telefonei ao meu marido:
-Por favor, veja se consegue roupas de menina. Aparentemente, seis anos de idade.
Ao passar pelo quarto, ainda ao telefone, olhei-a e vi que tinha caído no sono na cama de minha filha, abraçada à boneca. Fechei as venezianas e deixei-a descansar, ligando o ventilador para refrescar o calor do quarto. 
Enquanto isso, meu marido indagou:
-Como assim, roupas de criança para quem?
-Uma menina. Recolhi-a na rua, estava sozinha. Chorava, tinha fome e sede. 
Silêncio. Ouvi a respiração profunda de Renan, e senti sua reprovação. Há dias ele tinha me impedido de recolher um cão perdido, dizendo que não podíamos salvar todo mundo, mas desta vez, tratava-se de uma criança, e eu disse isso a ele. Senti sua desaprovação no tom da voz, quando antes de desligar, ele disse:
-Está bem.
À noite, quando Renan chegou em casa, eu e Sara assistíamos TV. Ela não falava muito, e eu não pretendia afeiçoar-me muito a ela, e então não puxei conversa. Ficava o tempo todo segurando a boneca como se ela fosse uma tábua de salvação, e não me olhava nos olhos. Quando eu falava com ela, respondia ‘sim’ ou ‘não’ apenas balançando a cabeça, olhando sempre para meus pés. Renan olhou-a, e beijou-me a testa. Apresentei-o a Sara:
-Sara, este é Renan, meu marido. 
Ela olhou-o, mas nada disse. Apertou mais a boneca. Ele ajoelhou-se perto dela, e ela afastou o corpo ligeiramente. Renan estendeu a ela duas bolsas:
-Veja Sara, são para você. O que acha de ir lá dentro e vestir o pijama? Você sabe o que é um pijama?
-Ela apanhou a bolsa, sinalizando ‘sim’ com a cabeça, e saiu correndo em direção ao quarto, carregando as bolsas em uma mão e a boneca na outra. 
-Comprei também um par de sandálias para ela, espero que sirvam. 
Ficamos nos olhando, e ele me abraçou, e depois foi trocar de roupa. 

(CONTINUA...)




A RUA DOS AUSENTES - PARTE 11

 Capítulo 11 UM A UM  Ela abriu os olhos e reconheceu o caminho diante dela, por onde já tinha passado, e que a conduziria de volta à mesma ...