quinta-feira, 6 de março de 2014

A ILHA SEM BARCOS - PARTE III




Na manhã seguinte, parecia que um milagre ocorrera durante a noite: o dia amanhecera claro e ensolarado, um convite para uma boa caminha da na praia - já que a temperatura subira alguns graus e o vento amainara. Após despedirem-se do jovem casal que deixava o hotel, Liana e Décio foram dar uma volta pela praia. Ambos estavam descalços, ele, com as pernas da calça dobradas até os joelhos, e ela, de saias de comprimento médio, e aquecida por um xale azul-claro. Caminhavam e apostavam pequenas corridas, parando de vez em quando para olhar o mar, abraçados. 

Rosalba os observava sem ser vista. Nascida na ilha, jamais saíra dali, nem mesmo para visitar outras ilhas do arquipélago. Seus pais, já falecidos, tiveram-na já tarde na vida, o que fez com que ela nascesse com um certo grau de retardamento mental, mas que não a impedira de aprender o suficiente para sobreviver; ela ajudava os pescadores a costurar suas redes e fazia bonecos de madeira que vendia aos turistas. Também ajudava as donas de casa locais em pequenos trabalhos de faxina, que eram-lhe concedidos por pura caridade, já que Rosalba não trabalhava com muito afinco. Era uma jovem calada e solitária. Às vezes, falava sozinha. Dizia conversar com "eles." Vivia em uma pequena cabana sem eletricidade  que herdara dos pais, próxima à praia, e ninguém jamais conseguira convencê-la a ir para outro lugar. Ela mantinha as coisas funcionando por ali o melhor que conseguia; catava lenha para cozinhar sua própria comida e fabricava as vassouras que usava para manter o piso de madeira mais ou menos limpo. 

Ela observava o jovem casal que divertia-se na praia, e seus olhos percorriam as roupas e o cabelo de Liana, e ela sorria quando a outra sorria. Escondida atrás da pedra, Rosalba brincava de fingir que era Liana, e que o jovem moço bonito a abraçava e beijava. Via a si mesma vestida com as roupas da outra, e quase podia sentir a barra das saias de Liana roçando seus tornozelos. E ela ria, ria... de repente, correu para a praia e passou a seguir o casal. Eles logo deram-se conta da presença dela, e também de sua condição mental. Décio, em um gesto protetor, aproximou-se da esposa e passou um braço em volta dela ao ver que Rosalba se aproximava. Liana teve um leve estremecimento de medo, mas tentou sorrir e ser sociável. Ao mesmo tempo, olhou a distância que já haviam caminhado, tentando calcular se conseguiria correr de volta ao hotel caso fosse necessário. Não sabia como lidar com pessoas como Rosalba, e não sabia se ela era agressiva. Olhou o rosto quase bonito da jovem, mas pálido e sujo, entre as mechas de cabelos desgrenhados, as roupas esfarrapadas. Teve mais medo.

Rosalba chegou mais perto, parando diante do casal, olhando-os dos pés às cabeças. Sorria para eles. Estendeu a mão e entregou à Liana uma concha que tinha escondida na palma da mão. Liana estendeu a mão e a segurou, agradecendo ao mesmo tempo que engolia em seco. A outra levantou o braço e tentou fazer-lhe uma leve carícia no rosto, o que fez com que Liana, sem querer, desse um passo para trás a fim de esquivar-se. Na mesma hora, o sorriso no rosto de Rosalba desapareceu, sendo substituído por um olhar magoado e furioso. Ela soltou um grito de dor. Décio tentou proteger a esposa, mas não foi rápido o suficiente para evitar que Rosalba a segurasse pelos cabelos, puxando-os com toda força, enquanto Liana caía de joelhos, tentando soltar-se.

Os próximos minutos foram confusos: Décio segurava nas mãos de Rosalba, tentando acalmar seus gritos e soltar Liana, que chorava de medo e de dor. Mas os dedos furiosos da moça fecharam-se firmemente sobre as mechas do cabelo de  sua esposa. Felizmente, Pepe, que caminhava por ali, viu a cena e já corria em seu auxílio. Aproximou-se e, devagar, conseguiu convencer Rosalba a largar Liana, dando tapinhas consoladores em seu ombro, enquanto a puxava delicadamente para longe dizendo palavras de conforto. Lágrimas sujas escorriam no rosto dela. Depois, mandou que ela fosse para casa:

-Vá para casa agora, Rosalba... assim, isso mesmo. Depois eu digo à Flora para levar um pedaço de bolo para você.

Nos braços de Décio, Liana tentava arrumar o cabelo, ainda sentindo no couro cabeludo a dor da mecha arrancada que ficara nas mãos de Rosalba.

-Quem é essa louca, Pepe?

-Calma, senhor Décio... eu não sei o que aconteceu, ela nunca agiu assim antes. Seu nome é Rosalba, ela mora em uma cabana aqui perto. Tem problemas mentais, coitadinha... nunca agrediu ninguém antes.

Liana, ainda chorando, retrucou:

-Ela deveria ser trancada em uma casa de saúde! É perigosa! Onde já se viu, sair por aí atacando as pessoas?

Décio pediu-lhe que se acalmasse:

-Calma, querida, a moça tem problemas...

Assim, despediram-se de Pepe, agradecendo-lhe pela ajuda, e voltaram ao hotel. Liana estava visivelmente abalada e mal-humorada, e Décio tentava acalmá-la. Sabia que as variações de humor de Liana podiam durar um longo tempo, e não desejava desperdiçar a viagem. Ao chegarem na varanda do hotel, Nina os interceptou, preocupada:

-O que aconteceu?

Uma Liana zangada respondeu-lhe, a voz alterada e chorosa:

-Fui atacada por uma louca na praia. De repente, ela surgiu do nada e tentou arrancar-me os cabelos!

-Rosalba?!

Décio concordou com a cabeça, ainda tentando acalmar a esposa.

-Mas ela nunca fica agressiva! É sempre tão calada e amistosa! Rosalba ama as pessoas...

-Posso ver que sim. Essa maluca deveria ser trancafiada em uma cela acolchoada, isso sim! Décio, vamos arrumar as malas, pois eu não fico nessa ilha nem mais um dia!

-Como assim, Liana?! Acalme-se! Não vamos estragar nossa lua-de-mel por causa de um incidente...
-Incidente?! Ora... eu fui agredida, e deveria ir à polícia!

Nina observava a cena, sem saber o que fazer. Percebeu que tivera uma impressão errada a respeito de Liana, que demonstrava ser mais uma ricaça mimada que se achava melhor que todos. Sentiu pena de Décio.

O céu escurecia, como se estivesse submetido ao mau-humor de Liana, e o vento voltou a soprar, estragando a manhã ensolarada. 

-Escute, Liana, não há como sairmos da ilha hoje. Ian foi levar o casal ao continente, e só voltará amanhã, para levar-nos à Fiorde, nossa próxima ilha. Acalme-se. De qualquer maneira, nós iríamos embora amanhã. A tal moça não virá até aqui. Você está segura.

Nina interferiu:

-Na verdade, há Carlos, um pescador que tem um barco à vela que poderia levá-los a Fiorde...

Décio fez sinal para que ela silenciasse, sem que Liana visse.

Naquele momento, Cecília aproximou-se, atraída pelos gritos de Liana, e já interada sobre o que estava acontecendo. Trazia uma xícara de chá de camomila, que entregou à Liana:

-Sente-se, meu bem... eu sinto muito... tome este chá, irá acalmá-la. Rosalba é apenas uma pobre coitada que vive sozinha, e tem tantos problemas... eu sinto muito pelo que aconteceu, jamais pensaríamos que ela um dia agiria desta forma.

De alguma maneira, Cecília teve um efeito positivo sobre Liana, que tomou o chá e acalmou-se. Finalmente, concordou em esperar a chegada de Ian para continuar a viagem como programada.

O incidente passou, e quando parecia que o problema havia sido resolvido e estavam todos sentados à mesa para o café da manhã, de repente Pepe adentra o hotel, trazendo Rosalba pela mão.:

-Ela queria pedir desculpas... peça desculpas, Rosalba.

No mesmo instante, Liana ergueu-se da mesa, gritando:

-Leve essa louca para longe de mim!

Aquilo fez com que Rosalba começasse a chorar e ficasse furiosa novamente. Soltou a mão de Pepe, e pegando uma xícara de café que estava sobre a mesa, atirou-a sobre Liana, errando por centímetros. Todos ficaram atônitos, mas Cecília correu para Rosalba e carregou-a para a cozinha, de onde seus gritos podiam ser ouvidos.  Novos pedidos de desculpas. Nova crise de Liana, que pediu a Pepe que chamasse o pescador Carlos com o barco à vela para levá-los embora. Décio percebeu que seria inútil tentar fazê-la mudar de ideia.

Apesar do vento forte, embarcaram naquela mesma manhã para Fiorde.

Da varanda do hotel, Cecília sentia uma angústia crescente ao ver o casal partir daquela maneira. Rosalba brincava no chão, conversando com algumas conchas que Nina providenciara para acalmá-la. Ninguém ouvia que ela murmurava baixinho:  "Sim, manda o vento, manda o vento..."


(continua...)





4 comentários:

  1. Excelente conto! Muito bom! Ficarei aguardando a tempestade saciar o desejo de Rosalba. Luz e paz. Bjs

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  2. Hummmm... O desconhecido, o inigualável sabor do mistério permeia a história. Novos personagens aparecendo tornando a narrativa mais aguçada e a leitura mais acirrada.
    Manda mais pelamor!
    bacios da LU

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  3. Querida amiga, andei ausente esses dias, mas, estou retornando e aos poucos visitarei todos que me compreenderam, me visitando deixando lindas palavras nos comentários. Só peço a Deus chuvas de bênção na sua vida, porque sou muito grata pela sua presença marcante em minha vida. De forma virtual mas muito significativa.
    Aproveitando, que amanhã dia 08 de março é comemorado o nosso dia, deixo essa pequena mensagem, com todo carinhos.
    “Bem aventurada a mulher que, dia após dia, com pequenos gestos, com palavras e atenções que nascem do coração, traçam sedas de esperança para a humanidade. Que Deus neste dia tão especial nos conceda mais bênçãos e que ele possa acrescentar em nossa existência mais virtudes, sermos mais felizes , compreendidas , respeitadas e amadas e assim possamos caminhar felizes e irradiar felicidade para quem nos rodeia.
    Que Jesus nos abençoe e nos proteja sempre!
    FELIZ DIA INTERNACIONAL DA MULHER
    Profª Lourdes Duarte



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  4. NOSSAAAAAA, ANA, TO PASSADA. AMEI.. MAS QUE CURIOSA AGORA ESTOU. QUE DELÍCIA DE LEITURA, COLOCA LOGO A PARTE 4. MTO BOM.

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