segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O ANJO NO PORÃO - CAPÍTULO VIII









O ANJO NO PORÃO – CAPÍTULO VIII



Quando Régis chegou em Niterói após deixar Regiane na nova escola, encontrou a casa em polvorosa: os empregados corriam pelos corredores, e os gritos de Madame ressoavam pela casa toda. Rapidamente, Régis tentou inteirar-se do ocorrido. Os outros empregados tentavam fugir dele, dizendo estarem muito ocupados naquele momento, carregando sais de banho para Madame, pílulas tranquilizantes e xícaras de chá. Régis ficou parado no corredor da casa, tentando abordar os outros empregados, que passavam por ele sem olhá-lo nos olhos, até que perdeu a paciência e gritou:

-Mas alguém pode me dizer que diabos está acontecendo por aqui?

Uma das criadas deu-lhe a atenção que ele solicitava:

-Tenho más notícias. Aliás, péssimas notícias, senhor Régis. 
-Fala logo, mulher!
-Sua esposa... Hanna... ela...
-O que aconteceu? Hanna está doente?
-Não. Mas se Madame a encontrar, ela poderá estar morta sem nunca ter ficado doente na vida! Ela fugiu. Com o patrão Levou o pequeno Paulinho.

Régis sentiu que as paredes se espremiam em volta dele, e tonto, apoiou-se em uma delas. A mulher achegou-se mais, segurando seu braço:

-O senhor está bem?
-Sim, só um pouco tonto... o que aconteceu, quando foi?
-Madame acordou esta manhã e encontrou um bilhete do Coronel. Ele disse que não deixaria faltar nada na casa, e que ela continuaria  a levar uma vida confortável como sempre, mas confessou-se apaixonado por Hanna. Disse que eles vão deixar o país a fim de evitar escândalos. Sinto muitíssimo, senhor. 

Régis tentava absorver o impacto daquelas palavras. Finalmente, após algum tempo começou a rir da peça que a vida lhe pregara! Ele, que sempre abandonava suas mulheres; ele, que as deixava para trás assim que as coisas se complicavam, ou que uma outra mais bela ou mais jovem aparecia, estava provando uma boa dose do próprio remédio. Tendo se convertido ao espiritismo, Régis procurou dentro de seu coração o perdão para que pudesse libertar Hanna e a si próprio. Encontrou-o empoeirado, em uma curva do coração. Aquela era a maior armadilha que o destino já lhe pregara.

Despertou de seus pensamentos ao escutar os gritos de madame:

-Régis! Régis, você está aí?

Procurou recuperar-se do susto, e encaminhou-se ao quarto de sua patroa, tentando não demonstrar seu nervosismo. Encontrou-a de cama, segurando um lenço rendado, os olhos e o nariz vermelhos de tanto chorar. Ela estendeu um braço, fazendo sinal para que ele se aproximasse, e entregou-lhe uma xícara de chá vazia, que ele deu à empregada, que a levou embora, saindo do quarto e fechando a porta atrás de si. Mandou que ele se sentasse na cadeira que tinha sido colocada em frente aos pés da cama:

-Oh, Régis, meu bom Régis... eu jamais poderia imaginar que aquela ingrata estava nos traindo por trás!

Ele sentia todo o impacto da tragédia daquela situação, mas tentou conter um riso. Sua cabeça estava confusa. Pensou nas palavras de Madame: “Traindo por trás.” Ninguém trai pela frente, pensou. A não ser ele mesmo, no passado. Ele ficou sentado na cadeira, torcendo as mãos, sentindo que seu emprego estava em jogo, e não se atreveu a dizer nada, enquanto ela continuava:

-Eu a tratei como se fosse uma filha! Criei seu menino como se fosse meu próprio neto... oh, o menino... de tudo o que ela me tirou, é de Paulinho que sentirei mais falta! O senhor sabe que eu  nunca pude ter filhos... o menino era tudo para mim...

Naquele instante, Régis se deu conta totalmente da situação, e a realidade abriu-se diante dele.

-Para onde eles foram? Para onde levaram meu filho?

Ela assoou o nariz, deixando-o ainda mais vermelho:

-Partiram de navio para Portugal, onde, segundo ele, se casarão, e levaram o menino com eles.

Régis viu o rosto belíssimo de Hanna, os olhos azuis pelos quais se apaixonara, e escutou a voz doce e sedutora. Naquele instante, compreendeu que ela não era melhor que Vicentina, a quem abandonara, e que jamais seria! Chorou lágrimas amargas, lágrimas que ele vinha tentando conter para não desabar diante de Madame, que penalizou-se dele, pensando que as chorava pela esposa, quando na verdade, chorava por Vicentina e pela vida miserável que ela tivera por causa dele. Se tivesse ficado com ela, se tivesse assumido a filha e a casado com Vicentina, hoje teria uma família feliz e ajustada, e a menina não estaria em um internato. Vicentina estaria viva! Poderiam ter sido felizes... mas Régis sabia que de nada adiantaria pensar no que passou. Os mortos estavam mortos – embora o espiritismo lhe tivesse aberto uma outra porta àquele respeito. Frequentava as sessões do Centro Amor & Caridade, esperando obter uma mensagem de Vicentina, mas sem sucesso. Quem sabe, ela agora se manifestasse? Agora, que era novamente um homem livre? Aquela esperança deu-lhe forças. Olhou para Madame, e disse, com voz calma:

-Cara senhora, se quiser me demitir, eu compreenderei, pois sei que, toda vez que Madame pousar os olhos em mim, se lembrará do acontecido. Mas saiba que eu jamais desconfiei de nada. Acho que tudo o que aconteceu a mim foi merecido, já que levei uma vida desregrada e egoísta até o momento, mas a senhora realmente não merecia estar passando por tudo isso... só nos resta ter fé, e perdoar.

Madame negou com a cabeça:

-Você é um bom homem, Régis, e um bom empregado. Não vou demiti-lo, a não ser que seja de seu desejo deixar esta casa. Preciso de seus serviços, de sua fidelidade, mais ainda agora. E gostaria de dizer que sinto muito pelo que aconteceu, e principalmente, por seu filho... talvez nunca mais o vejamos... posso ter fé, mais jamais serei capaz de perdoá-los pelo que nos fizeram.

Ela recomeçou a chorar, e a empregada entrou no quarto com outra xícara de chá. Madame fez sinal para que Régis saísse. Ele cruzou o corredor sentindo os olhos dos outros empegados grudados em suas costas, e mal virou a esquina e entrou na cozinha, os murmúrios começaram. 


 .   .    .    .


Regiane estava enfiada em seu camisolão, às seis da manhã, sentindo-se sonolenta. Foi seguindo as outras crianças, até que chegou a uma sala de banho grande e comprida, com vários chuveiros enfileirados. As meninas entravam sob os chuveiros e puxavam o ar com força ao contato com a água fria. Imaginem, tomar um banho frio às seis da manhã em Petrópolis, quando o clima era bem mais frio! Quando chegou sua vez, ela olhou para a encarregada – uma menina bem mais velha, que estava ali para assegurar-se de que todas as meninas tomariam banho – e esta fez sinal para que Regiane entrasse no chuveiro. Regiane colocou a ponta do pé sob a  água, sentindo o frio despertá-la. A menina maior a empurrou, segurando-a debaixo do chuveiro, enquanto as outras meninas riam:

-Vamos lá, depois você acaba acostumando! Banhos frios são bons para os pulmões, não sabia? Agora se ensaboe... os cabelos também, isso... muito bem. Enxague... Agora pode ir para a cabine enxugar-se e vista seu uniforme.

Quando Regiane abriu os olhos, estava em uma cabine minúscula, fechada por uma cortina parda. Em frente a ela, o uniforme da escola pendurado em um cabide. Ela tremia tanto de frio que mal conseguia mover-se, mas achou que quanto mais rapidamente se vestisse, melhor, e assim enxugou a pele arroxeada rapidamente com a toalha. Achou estranho que, após vestida, não sentiu mais frio o dia todo, e teve uma sensação de bem-estar que durou até o final da tarde. Aquele ritual do banho frio repetia-se dia sim, dia não. Quando as meninas mais velhas estavam menstruadas, as irmãs não permitiam que tomassem banho, e faziam com que ficassem de cama nos alojamentos ao invés de assistirem às aulas, e as refeições – geralmente, pratos de canja – eram servidas para elas nos quartos. 

Mas ainda demoraria muito para que Regiane descobrisse o que é estar menstruada.

Regiane acostumou-se à rotina da escola, e acabou não achando tão ruim. As freiras eram geralmente bondosas e pacientes, com algumas exceções, mas mesmo as consideradas mais ‘malvadas’ pelas meninas, não chegavam aos pés de Celeste, sua antiga guardiã. Ela procurava não olhar muito para Irmã Malvina, e baixava a cabeça sempre que cruzava com ela em algum corredor. Porém, não podia evita-la nas aulas de aritmética, pois ela era a encarregada de ministrar a matéria, e Regiane, que sempre tivera muitas dificuldades com números, ficava tão tensa durante as aulas, que mal conseguia respirar, com medo de dizer ou fazer algo que chamasse a atenção de Irmã Malvina para si. Aplicava-se na arte de permanecer invisível, embora Irmã Malvina frequentemente a questionasse e a mandasse ir ao quadro negro para resolver equações que ela jamais conseguia. As outras meninas riam dela naqueles momentos. 

Nas outras matérias, apesar de ser bem mais nova que as outras meninas, Regiane era uma aluna aplicada, e não tinha problemas. As suas duas novas colegas, Dóris e Célia, estavam sempre com ela, e as três brincavam juntas na hora do recreio – apesar de Dóris e Célia – respectivamente, com 12 e 9 anos de idade -serem bem mais velhas. As duas tomaram a menor sob sua proteção instintivamente, mesmo sem saber que na verdade ela era dois anos mais nova do que realmente dizia ser. Para todos, Regiane era apenas uma menina franzina, talvez devido a maus cuidados. Nas aulas de arte, corte e costura, Regiane era bem mais lenta que as demais, mas o acabamento de seu trabalho era mais esmerado, o que compensava a sua lerdeza. 

Após um mês na escola, Finalmente Régis pode estar presente em um dia de visita. Ainda estava abatido após a traição da esposa, que àquela altura, estaria bem longe com seu filho, mas Régis não estava zangado com Hanna, pois ela apenas fizera a ele o que ele sempre fazia com as mulheres de sua vida. 

Ao ver o pai ao longe, esperando por ela, a menina correu em sua direção. Régis abraçou sua menininha, entregando a ela uma caixa de tamanho médio, que ela sacudiu, perguntando a ele o que continha. Ele disse:

-Está cheia de seus doces favoritos, filha! Há doce-de-leite com chocolate, rapadura, mariola, sonho, balas, biscoitos doces e chocolates.

O sorriso de Regiane morreu nos lábios.

-O que foi, não gostou, filha?
-É que tenho que dividir tudo com as outras meninas. Da outra vez, não sobrou nada do pirulito que o senhor me deu. Aqui todas temos que dividir tudo.

De repente, o rosto dela se iluminou:

-Já sei! Papai, o senhor pode esperar aqui um pouquinho?
-Sim, mas... onde você vai?

Sem responder ao pai, Regiane escapuliu por entre as outras crianças, indo parar nos fundos da escola, onde ala sabia que existia uma porta que dava para um porão. Já tinha tentado abri-la antes, e verificado que não estava trancada. Ela olhou para os lados, e rapidamente abriu a porta e colocou a caixa no porão, sobre uma mesa que estava no canto, saindo em seguida e fechando a porta atrás de si. As outras meninas disseram a ela que jamais entrasse ali, porque era proibido. Havia ratos, gatos de rua e aranhas. Mas Regiane não tinha medo de bicho nenhum. Uma das meninas mais velhas, responsável por ajudar a olhar as menores, dissera que existia também um fantasma naquele porão, e que ele saía à noite a procura de alguma menina que estivesse fora do dormitório nas horas indevidas, e as levava com ele para a Madre Superiora.

Regiane voltou ao pai, fazendo sinal para que ele ficasse em silêncio. Nem desconfiava que esteve sendo observada por três pares de olhinhos maldosos o tempo todo...

-O que você fez com os doces, menina?

-Shsh... eu escondi! Vou comer quando estiver sozinha e ninguém estiver olhando!
A visita transcorreu normalmente. O pai prometeu voltar para visita-la um outro dia, e pediu que ela se comportasse. Regiane concordou. Ao ver o pai se afastar, percebeu que estava menos triste do que pensava que ficaria. 

No casarão, Fiorela e Rosa estavam às voltas com a administração da casa e o cuidado com as crianças. Rosa pensava muito em Regiane, e gostaria de visita-la, mas Fiorela a convencera de que seria ainda mais sofrível para a menina receber a visita das tias, e que melhor era deixar com que ela se esquecesse delas. Aquela ideia soava um tanto cruel para Rosa, mas ela não tinha forças para contestar a irmã, principalmente porque vivia sob o teto de sua casa. Prometia a si mesma que um dia acompanharia o irmão em uma visita. 

Na verdade, Rosa não tinha forças para muita coisa. Após o rompimento com o noivo, a vida tornara-se um simples suceder-se de dias e noites, sem muito sentido ou sabor. Nada a interessava. Passava horas sozinha – quando não estava ajudando a irmã nos cuidados com os pequenos – e nestas horas, ficava sentada em sua cadeira de balanço, olhando as sombras passando pela parede de seu quarto na edícula. Pensava em tudo o que sua vida poderia ter sido, caso tivesse se casado. Poderia ter sua própria casa e seus próprios filhos, e levaria a sobrinha para viver com ela. Ali, ela era apenas alguém que vivia sob a caridade de sua irmã e seu cunhado, não era dona de nada, não podia ter vontade própria. E mesmo que pudesse, vontade era uma coisa que morrera dentro dela. Ela se perguntava se algum dia sua vida seria diferente.

Toda manhã ela abria a janela do salão à mesma hora, e via passar de braços dados com a esposa o seu ex amor. Os dois trocavam olhares furtivos, para que a esposa não percebesse, e era tudo o que aconteceria entre eles por anos a fio, até que ambos estivessem já bem velhos, e ele, viúvo.



(continua...)





3 comentários:

  1. Oh my God! Cada dia melhor essa história.
    Peloamor não demore a postar a continuação!!

    Bacios

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  2. Enquanto lia esse capítulo fiquei pensando no quanto algumas relações são doentias. Algumas vezes responsabilizamos o outro pela nossa vida e sentimentos, parece clichê, mas é sério.
    Mas a vida se encarrega de dar voltas enquanto brincamos sem saber de dança de cadeiras...

    Ana, são tão incríveis as diferentes análises de comportamento existentes no teu conto, sério, me sinto revivendo as aulas de Terapia Ocupacional.

    Parabéns mesmo! Sempre te achei centrada, mas confesso que estou meio surpresa com a coerência das personalidades, característica dos fortes!

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