quarta-feira, 6 de novembro de 2013

EVA - Capítulo II





EVA – Capítulo II



Mamãe andava muito ocupada com seu trabalho. Estava organizando sua quarta exposição (ela era artista plástica) mas desdobrava-se para fazer com que Eva ficasse à vontade. Sempre almoçava em casa, embora algumas vezes precisasse jantar fora, ocasiões em que papai a acompanhava, e eu ficava em casa, encarregado da feliz tarefa de paparicar Eva.

Já havia uma semana que ela estava hospedada conosco, e minha paixão por ela só fazia crescer cada vez mais... pensava nela o tempo todo. Adorava o ar que ela respirava, e ficava embevecido pelo perfume que ficava nos cômodos por onde ela passava. Reparava em cada roupa que ela usava, admirando seu bom gosto, elegância e simplicidade; roupas que talvez parecessem apagadas em outras mulheres, assentavam-lhe com perfeição, e ressaltavam a beleza de suas formas e as cores de sua pele e cabelos. Logo eu, que jamais reparava nessas coisas, passei a prestar atenção a ela, comparando-a com as garotas da faculdade e com outras mulheres que conhecia (a maioria, amigas de mamãe) e percebia o quanto a maioria delas adornava-se exageradamente, usando maquiagem às vezes pesada e roupas enfeitadas demais. Mas Eva era a elegância em pessoa! Das joias usadas como peças únicas à maquiagem quase imperceptível, que não escondia as marcas da passagem do tempo, aos vestidos simples e esvoaçantes, às calças jeans e camisetas despojadas, adornadas por lenços coloridos ou longos colares, aos chapéus cor de creme e óculos escuros sóbrios e tradicionais (aparentemente, muito caros e antigos) que ela costumava usar quando o sol estava muito forte.

Ela adorava ser mimada por mim, e muitas vezes, andávamos na rua de mãos dadas parando nas barracas de frutas da feira, onde ela escolhia uma maçã ou pêssego, dando-lhes uma generosa mordida e passando-os para mim, enquanto conversava com o feirante e negociava preços, enchendo sacolas plásticas com as frutas perfumadas. Quando chegávamos em casa, Eva arrumava as frutas artisticamente sobre a mesa de jantar, entremeando-as com flores do campo, o que deixava mamãe encantada e agradecida. Depois, Eva dizia sorridente à minha mãe o quanto eu era gentil, bem educado e atencioso.

Às vezes, ela me levava com ela para ver apartamentos. Eu sempre colocava algum defeito em todos eles, pois não queria que ela fosse embora. Eva sempre concordava comigo, franzindo sua linda testa e dizendo: “Você tem razão... veremos outro amanhã.” Aquilo me fazia pensar que ela também não estava muito à vontade com a ideia de mudar-se. Um dia, ela me confessou que ficar sozinha em um apartamento seria uma experiência inédita para ela, e que estava com medo. Caminhávamos por uma rua movimentada, e o dia estava quente e alegre. Quando ela disse aquilo, levou a mão ao rosto, e vi quando ela secou uma lágrima que caía. Outras lágrimas seguiram-se àquela, e Eva parou em frente a uma vitrine, fingindo que observava alguma coisa para não ter que deixar-me vê-la chorando.

Meu coração derreteu-se; segurei-lhe a mão, que ela apertou com força, e vi seu nariz ficando cada vez mais vermelho, e as lágrimas jorrando. Não pude deixar de abraçá-la, deitando sua cabeça em meu ombro. Ela não resistiu, e passou um braço em volta de minha cintura. Ficamos ali, em breves momentos que para mim pareceram horas, e que eu jamais desejaria que acabassem. Tinha o perfume de seus cabelos sob as minhas narinas ansiosas, e o calor do seu corpo contra o meu. Sentia-lhe a respiração em meu pescoço e as pontas dos seus dedos tocando de leve a minha cintura. Foi um momento doce e intenso.

Quando finalmente ela se separou de mim, pegando um lenço na bolsa, sussurrou-me um “Obrigada... desculpe-me...” e eu só pude olhá-la, totalmente emudecido pela força daquele momento. 

Meus amigos da faculdade me telefonavam, convidando-me para noitadas – o que eu sempre estava disposto a aceitar e gostar no passado, mas não mais. Certa manhã, enquanto eu me vestia, meu pai adentrou meu quarto e sentou-se em minha cama, jogando-me uma almofada de brincadeira:

-E aí, campeão? Como estão as coisas?

-Tudo bem, pai.

-Você não tem saído muito, Elton. Está tudo bem mesmo com você?...Quero dizer... antes eu e sua mãe tínhamos que implorar para que você ficasse uma noite em casa, e agora você não sai mais! Graça está preocupada e pediu-me para conversar com você.

-Tentei soar o mais natural possível:

-Fique tranquilo, pai. Eu estou ótimo. Só um pouco cansado... a faculdade foi ‘barra’ no segundo semestre!

-Mas antes você não ligava para isso. Não antes de Eva mudar-se para nossa casa...

Senti que meu coração ia sair pela boca. Respirei fundo e tentei um sorriso:

-Ora, senhor Antônio, reparando nas hóspedes da mamãe? Olha que elas são amigas de infância! (peguei a almofada no chão e joguei-a de volta sobre ele).

-Ela é bonita, não é? – ele perguntou-me maliciosamente.

Notei que ele me olhava como se estivesse tentando ler a minha mente. Meu pai já sabia de minha paixão! Mas eu precisava negá-la até o fim. Ele levantou-se de minha cama, e parando em frente a mim, segurou-me pelos ombros, obrigando-me a encará-lo:

-Você sabia que ela tem quarenta e seis anos, filho? E uma filha da sua idade?

-Ora, pai... ela me disse! (tentei desvencilhar-me, mas ele me segurou com força):

-Pois é... isso faz com que ela seja exatamente vinte e cinco anos mais velha que você. Já pensou? Quando você tiver... digamos... trinta, ela terá... cinquenta e cinco!

-Eu não sei do que você está falando, pai. Aonde você quer chegar?

Ele soltou meus ombros, me obrigando a sentar-me na cama ao lado dele:



- Elton, sua mãe não percebeu ainda, pois ela tem estado realmente muito ocupada com a exposição e absolutamente encantada com a sua disponibilidade em deixar a amiga dela à vontade; mas eu tenho notado que você mudou desde que Eva entrou nessa casa. E que vocês tem passado tempo demais juntos. 

Eu não respondi. Abri a boca, mas as palavras não saíam.

-Eu sei que uma mulher bonita como Eva, madura e experiente, pode ser muito atraente para um garoto novo como você; mas não faz sentido, filho. Ela poderia ser sua mãe! 

-Ah, pai... eu... apenas gosto da companhia dela! Ela é diferente daquelas amigas pedantes da mamãe. E a gente pode conversar com ela, o que não acontece com as meninas da faculdade, que só pensam em... roupas, e... maquiagem, e só falam de festas, garotos... e mal umas das outras.

-Pois é, Elton. Mas eu acho melhor você se aproximar mais das meninas fúteis da faculdade, pois elas tem a mesma idade que você. Você está na idade de ser fútil, divertido, e conversar amenidades, e não de ficar enfurnado em casa, ou andando por aí na companhia de uma mulher como Eva. Não faz sentido. Pense bem: o que as outras pessoas vão pensar?

-Que se danem, pai.

Levantei-me, e peguei meu boné, ajeitando-o na cabeça. Ele não perdeu tempo:

-Você fica muito bem com esse boné, filho. Ele mostra bem a sua idade.

Tirei o boné, guardando-o de novo no armário e alisando os cabelos. Meu pai ficou de pé atrás de mim, olhando-me pelo espelho:

-Apenas prometa-me que não vai se apaixonar por ela, filho. Seria ridículo! E que vai aceitar alguns dos convites dos seus amigos para sair. 

Assenti com a cabeça, e escorreguei para fora do quarto.

Eva me esperava na sala de jantar; marcáramos com um corretor na cidade. 

O apartamento ficava no nono andar, em frente a um lindo parque. Tinha dois quartos pequenos, sendo uma suíte, uma enorme e ensolarada sala com dois ambientes, uma cozinha moderna e um banheiro recém reformado, com direito à hidromassagem. Mas o mais encantador, era a varanda envidraçada, que circundava todo o apartamento, transformando-o em uma caixa de luz. Fiquei procurando vazamentos e defeitos, enquanto Eva percorria os cômodos com seus saltos barulhentos. Tentei ver um pedaço de tinta descascando, ou uma torneira ou descarga que não funcionassem. Sabia que ela adorava casas iluminadas e grandes janelas, o que me deixou apreensivo. Minha apreensão aumentou ainda mais quando ela sorriu para o corretor, e os dois começaram a conversar sobre preços, o que nunca acontecera antes ( ela sempre despedia-se deles dizendo que ia pensar melhor).

Fiquei absolutamente transtornado quando ela caminhou até mim, vestida com seu mais lindo sorriso, e disse:

-É este!!!

Vi seu sorriso se desmanchar diante da minha cara decepcionada. Engoli em seco, e forjei um sorriso. Ela franziu as sobrancelhas:

-Você não gostou? É perfeito! E eu posso pagar.

-É alto demais... pense bem; e se o elevador quebrar? Se a luz acabar, ou algo assim, você terá que subir ou descer nove andares!

O corretor interferiu:

-O prédio dispõe de um potente gerador para estas ocasiões, senhora. Não se preocupe.

Ela pediu ao corretor se poderíamos ficar mais alguns minutos, a sós. Ele sorriu, entregando-lhe as chaves, e dizendo:

-A senhora e seu filho podem ficar à vontade! Quando terminarem, basta me dar um telefonema; estarei na corretora. Um bom dia!



terça-feira, 5 de novembro de 2013

EVA - capítulo I



Imagem: Christian Schloen




Conheci Eva num final de noite, quando voltava da faculdade. Eu tinha vinte e um anos. Ao abrir a porta de casa, escutei a conversa animada entre minha mãe e suas amigas - era dia de jogo de buraco, e a vez de mamãe ser a anfitriã. Pé ante pé, tentei esgueirar-me escadaria acima, pois não estava nem um pouco a fim de ter que cumprimentar as amigas de minha mãe e escutar as mesmas velhas frases, como por exemplo: "Nossa, como ele cresceu!" E coisas desse tipo. Uma das mulheres tinha a mania de apertar minhas bochechas como se eu ainda fosse um garotinho, o que me deixava bastante irritado, embora eu apenas sorrisse educadamente!




Bem, eu estava no terceiro degrau, quando ouvi os saltos de minha mãe no chão de mármore, e ouvi sua voz atrás de mim:



-Elton! Venha até aqui, por favor, filho. Quero que conheça uma amiga minha!



Bufei de indignação, revirando os olhos, e deixando a mochila nas escadas, virei-me para ela:



-Ah, mãe, eu estou morto de cansado...

-Olha, eu juro que vai ser bem rápido; é que não nos vemos há mais de vinte anos, e gostaria muito que Eva conhecesse você! Por favor...



Ela piscou para mim.



Mamãe era uma mulher charmosa e bonita, e aparentava bem menos idade do que realmente seus quarenta e nove anos. Fruto da genética; minhas tias também eram assim. Não pude resistir ao seu olhar pidão, e respirando fundo, segui-a até a sala de estar, onde um grupo de oito mulheres (contando minha mãe) aguardavam a continuação do jogo, enquanto seguravam suas cartas. Olhei para elas, dando um "Boa noite" bem geral. Os mesmos rostos conhecidos de sempre, exceto por um.



Olhei para a mulher que deveria ser Eva, e fiz uma rápida avaliação: Tinha cabelos curtos e ondulados, de um tom louro-escuro, cortados à altura do queixo, o que lhe emprestava um ar quase infantil. Os olhos castanhos eram claros e vivos, e seu sorriso, uma bênção para quem o recebia: as maçãs do rosto desenharam charmosas covinhas quando ela riu, e suas sobrancelhas arqueadas ergueram-se ao olhar para mim. Vestia camiseta de malha verde e calças jeans escuras, e portava um longo colar de grandes pedras negras e prateadas que chegava-lhe à altura do ventre. Fora este e um par de brincos minúsculos, não usava nenhum outro tipo de ornamento. Nem sequer um relógio de pulso. Também não percebi sinais de maquiagem em seu rosto, ao contrário das outras amigas de mamãe, e ela já mostrava algumas rugas junto ao canto dos olhos e da boca. Não era muito magra - pelo contrário, tinha as ancas generosas e seios grandes, embora a cintura fosse fina. Também não era muito alta, e achei que deveria ter algo entre 1,65 e 1,67 de altura.



Achei-a uma das mulheres mais lindas que eu já vira em minha vida, e acho que apaixonei-me por ela imediatamente. Eu soube que estava perdido assim que pus os olhos nela. Não me incomodava os talvez mais de vinte anos, aparentemente, de diferença entre nós. Eu a queria. E pelo jeito que ela me olhou, percebi que eu tinha chances.



Após as apresentações, enquanto mamãe explicava que elas tinham sido amigas de escola e que perderam contato quando os pais de Eva mudaram-se para a França, levando-a com eles, nós não conseguíamos parar de nos olhar. Eu mal ouvia o que a minha mãe dizia. Lembro-me de ter escutado algo sobre terem se encontrado naquela manhã em um shopping center, e depois, o mundo emudeceu enquanto eu a bebia com os olhos.



Após alguns minutos, vi-me erguendo a mão e apertando a dela, polidamente. Vi os lábios dela se entre-abrirem, e ela me disse "Muito prazer." A palavra "prazer" ficou ecoando em meus ouvidos. Senti que um leve choque percorreu o meu braço quando nos tocamos, e vi o rosto dela corar levemente. Eu não queria largar aquela mão. Fez-se silêncio à nossa volta, e mamãe pigarreou, trazendo-me à realidade cruel de ter que deixá-la. Eva Também pareceu desapontada (ou teria sido minha impressão?).



Finalmente, desejei boa noite a todas, e quando cheguei à porta, olhei para trás, e Eva ainda tinha os olhos presos em mim. Naquela noite, custei a dormir, pois só pensava nela. Imaginava mil cenas de amor entre nós, nas quais eu a tomava em meus braços e fazia coisas maravilhosas com seu corpo.




Na manhã seguinte, quando desci para o café da manhã,quase engasguei de satisfação ao vê-la sentada à mesa! Mamãe anunciou que Eva seria nossa hóspede por alguns dias, enquanto procurava um apartamento. Eva sorriu para mim, derretendo qualquer tipo de cansaço que pudesse haver naquela manhã maravilhosa. Papai, como sempre, tomou de pé uma xícara de café preto e desejou-nos bom dia, saindo para o trabalho. Após o café, mamãe anunciou que precisava ir até o mercado, e pediu-me que fizesse companhia à nossa hóspede: 


-Você não tem nenhum compromisso, tem, Elton? 


Pensei que nem que eu tivesse um almoço com a rainha da Inglaterra, ou uma conferência com o presidente dos Estados Unidos, eu deixaria de atender àquele pedido de mamãe. Mas achei melhor disfarçar meu interesse, e balbuciei um "Tudo bem" tentando demonstrar indiferença, enquanto levava as xícaras para a cozinha. 


Eva lavou a louça, e eu enxuguei. E enquanto enxugava, pensava que cada xícara poderia ser os seus quadris, e que cada colher poderia ser um de seus braços. Lembrava-me das fantasias que tivera com ela na noite anterior. Olhei-a de soslaio, e a luz da manhã entrava pela janela sobre a pia da cozinha e incidia diretamente em seu rosto honestamente cuidado, sem exageros, sem maquiagem pesada, a não ser um batom rosado muito leve, que eu desejava provar. Queria percorrer cada marca do seu rosto com as pontas de meus dedos, e cheirar aqueles cabelos que pareciam tão macios... Perdido em meus pensamentos, quase assustei-me quando ela me olhou nos olhos e disse: 


-Elton, se você tiver algum compromisso, não se prenda por minha causa. Eu... vou olhar os classificados. Ficarei bem! 


Eu tinha que fazer alguma coisa para que ela não me dispensasse daquela maneira; pensei... pensei rápido. Lembrei-me de um amigo cujo pai era corretor de imóveis, e que no momento, não estava na cidade, mas voltaria dentro de dois dias. 


-Na verdade, dona Eva, eu tenho um amigo cujo pai é corretor. Ele estará de volta à cidade dentro de dois dias, apenas, e se você quiser, posso falar com ele para ajudá-la a achar um lugar. 


Ela pareceu encantada: 


-Oh, sim, claro! Você é muito gentil, Elton! Mas por favor, chame-me de Eva. 

-Está bem, Eva. Mas quero que você saiba que será um grande prazer que você fique aqui conosco o tempo que desejar... o mês inteiro, se quiser, ou... quem sabe, até o ano novo? Ou até o carnaval?... 


Não pude acreditar que eu tinha dito aquilo! Detestei-me por ser tão idiota. Com toda certeza, ela deveria me achar um garoto boboca. Senti meu rosto arder. Abri a geladeira e fiquei olhando para dentro, tentando disfarçar meu embaraço. Mas ela não riu de mim, apenas olhou-me muito séria. 


Fiquei pensando se haveria um marido em alguma parte do mundo. Ela pareceu adivinhar meu pensamento: 


-Sabe, Elton... eu tenho uma filha da sua idade. Seu nome é Ingrid. Acho que você adoraria conhecê-la, mas ela ficou na França, morando com o pai... sinto muita falta dela! 


Naquele momento, terminamos o trabalho na cozinha e fomos sentar-nos na varanda. Era uma linda manhã de dezembro. Havia uma aura de cor diferente, e tudo parecia brilhar de uma forma especial. 


Olhei para Eva, sentada ao meu lado no banco da varanda, e de repente tudo pareceu fazer sentido. Era como se eu estivesse a procura de alguém como ela - não, a procura dela, mais exatamente... era como seu eu a conhecesse de outras eras. E agora que ela estava ali, ao meu lado, eu sentia como se pudesse descansar de uma longa busca. Era uma sensação nova e totalmente estranha. Olhava para sua mão apoiada no assento do banco, ao lado da minha, nossos dedos quase se tocando, e meu coração fremia de vontade de segurar a mão dela. 


Pensei nas garotas que conhecia, e em algumas que eu já tinha namorado, e no quanto durava pouco, pois eu as achava infantis e superficiais. Alguns amigos já insinuavam que eu fosse gay, e eu mesmo também pensava, às vezes, naquela possibilidade, já que não conseguia interessar-me realmente por menina alguma. 


Nós ficamos ali, sentados na varanda a manhã toda. Eva contou-me um pouco sobre sua vida na França e sobre sua vontade de voltar ao Brasil, o que terminou por acrescentar-se como mais um motivo para pedir o divórcio, pois seu marido francês jamais desejara vir ao Brasil, e muito menos, mudar-se para cá. Sentia muito a falta da filha, cuja vida também encaminhara-se na França, país que ela adorava. Eva disse-me ter se cansado da frieza européia, e contou-me sobre uma ocasião em que, durante um jantar, uma senhora referiu-se ao Brasil com desprezo, o que fez com que ela a insultasse veementemente, causando uma situação tremendamente constrangedora. Apesar da tal senhora ter se desculpado (não sabia que Eva era brasileira), toda aquela situação serviu para deixar bem clara a sua decisão de voltar para o Brasil. 


Perguntou sobre mim, e falei-lhe sobre o curso de engenharia que estava apenas começando. Lamentei por não ter nada de interessante para contar a ela, e achei-me vazio e muito distante de Eva. Ela percebeu minha tristeza, e mudou de assunto; perguntou-me sobre música, e descobri que nós dois gostávamos dos Beatles, e que ambos tocávamos violão, e ela, piano. Ficamos de promover uma noite de seresta entre os amigos antes do natal, e rimos muito. 


Perguntei como ela e mamãe se conheceram, e se tinham sido grandes amigas; Eva contou-me que as duas tinham feito odo o ginásio juntas, e que foram amigas inseparáveis naqueles anos. Ainda se corresponderam por algum tempo depois que Eva mudou-se para a França, mas a vida estabeleceu-lhes caminhos diferentes, e elas os seguiram. 


À hora do almoço, mamãe voltou, e nós fomos ajudá-la a levar as compras para dentro de casa. Enquanto pegávamos os pacotes na mala do carro, Eva olhou-me por cima de um deles, e agradeceu-me: 


-Há muito tempo não tinha uma manhã tao agradável na companhia de um cavalheiro, Elton. Obrigada! 


Eu quase flutuei de satisfação! 

(segue...)




sábado, 2 de novembro de 2013

EU NÃO ESCOLHI VOCÊ!




Ajudei-a  a carregar as malas até o carro. Evitávamos nos olhar ou dizer qualquer coisa, pois nada mais havia a se dizer. No entanto, alguma coisa dentro de mim gritava de dor pelo que tinha acabado. Era como um luto. E tudo fora tão inesperado!



Aconteceu logo depois que o He-Man – meu cão de dezoito anos de idade – finalmente morreu, após mais de uma semana de agonia. Porque eu me recusara a dar-lhe a injeção letal. Ela me chamou de egoísta. Olhou-me com desprezo. Não entendia minha dor.



He-Man foi meu presente de aniversário, dado por meus pais, quando fiz quinze anos. Era um pastor manto negro maravilhoso, um grande companheiro, um amigo de valor inestimável. Ele esteve em todos os acontecimentos importantes de minha vida; ele também estava lá, quando conheci Dorinha. Passeava com ele num final de tarde de sábado, e ela, passeava com Lulu, sua cadelinha Beagle.



Quando meus pais morreram no acidente de carro, He-Man me acompanhou durante meu período de luto. Ficamos morando sozinhos na casa de meus pais durante cinco anos, e fomos ajudando um ao outro. Era muito reconfortante chegar em casa, depois do trabalho, e saber que eu não estaria sozinho.



Depois, Dorinha e Lulu mudaram-se conosco, e vivemos um período de muita felicidade, acredito, o período mais feliz de minha vida. Eu e Dorinha nos casamos. E parece que He-Man e Lulu estavam se dando muito bem, embora fossem apenas bons amigos. E quando Lulu se foi, atropelada por um carro em frente à casa, He-Man foi o nosso consolo.



Assim, passaram-se quinze anos desde que He-Man nasceu. Neste período, perdi meus pais, casei-me com Dorinha, perdemos Lulu, Dorinha formou-se na faculdade de Direito, e eu, em Biologia. Demos muitas festas em casa, fizemos muitos amigos, e vimos muitos amigos irem embora da cidade, em busca de suas carreiras.



Mas há mais ou menos um ano, alguma coisa começou a acontecer, ou a deixar de acontecer, entre Dorinha e eu. Ela chegava em casa cada vez mais tarde. E eu, por meu lado, comecei a sair com outra mulher, embora ela nada significasse de importante para mim. E eu comecei assim que soube que Dorinha estava tendo um relacionamento com seu sócio. Eu simplesmente não conseguia abordar o assunto, com medo de perdê-la, e fomos nos distanciando cada vez mais.



E dois dias depois da morte de He-Man, cheguei em casa uma noite e ela estava sentada na sala, as malas prontas. Declarou que não me amava mais. Disse que estava se mudando para o apartamento de seu sócio. Ao mesmo tempo que eu me mantinha totalmente frio e indiferente por fora, sentia que uma boa parte de mim desmoronava por dentro.



Quando ela se foi, entrei na casa totalmente vazia. Nunca senti tanta tristeza...



Acordei de madrugada, com o choro de um cão. Cobri a cabeça com o travesseiro, e consegui pegar no sono de novo. Mas na manhã seguinte, quando saía para o trabalho, ao tirar o carro da garagem, lá estava ele: um cachorrinho branco, com manchas  marrons sobre so olhos . Apesar de bonitinho e bem tratado, aquele cão sentado à beira da caçada era o retrato do abandono. Ele se parecia comigo. Suspirei fundo e entrei no carro.



Durante o dia, nem sequer lembrei-me dele, pois tive mil coisas a fazer. Mas quando cheguei em casa, ele estava ali, no mesmo lugar, e alguém tinha colocado um pouco de leite em um potinho de margarina para ele. Quando me viu sair do carro para abrir a porta da garagem, ele veio correndo desajeitadamente na minha direção, mas eu joguei-me no carro depressa e entrei em casa, fechando a porta da garagem. Ele ficou chorando do lado de fora.



Eu não estava pronto para ter outro cão. Sentia que precisava passar um tempo sozinho, pensando na minha vida, e que um cão poderia até atrapalhar-me, já que eu tinha em mente umas férias e uma longa viagem de carro, sem destino.



Jantei e, após assistir um pouco de TV, fui deitar-me mais cedo.



Acordei por volta das duas da manhã, e parecia que ia cair uma tempestade daquelas... os clarões dos relâmpagos cruzavam o céu, clareando o quarto, e trovões ribombavam assustadoramente. O vento uivava, entrando pela greta da janela, e fiquei um tempo prestando atenção, até que, entre o uivo do vento, percebi ganidos desesperados. Fui até a janela do quarto e vi o cão lá em baixo na calçada, sentado, as perninhas de trás esticadas na frente do corpo e a barrigona cheia de leite. Ele chorava e gania, e achei que não faria mal se o deixasse passar a noite na garagem.



Assim, desci até a rua e peguei-o no colo, no exato momento em que a tempestade desabou.



Arranjei uma blusa de lã velha e coloquei dentro de uma caixa de papelão para ele, na garagem. Antes de apagar a luz, olhei para ele, e ele estava mordendo a beirada da caixa. Eu disse a ele: “Escute aqui, eu não estou adotando você! É  só por uma noite, e amanhã, você vai embora!” Ele me olhou, a cara mais feliz do mundo.



Ganiu um pouco durante a noite, mas eu estava tão cansado, que continuei na cama.



De manhã, quando cheguei na garagem, havia pedaços de papelão por todo o chão. Ele dormia, no meio daquela bagunça, como se não tivesse nada a ver com ela. Quando me viu, veio correndo, abanando a cauda,  sujando a pata em um montinho...



Eu tinha que ir trabalhar. Não poderia deixá-lo na garagem, e nem queria um cão. Dei-lhe um pouco de ração com leite, e depois que ele comeu, abri a porta da garagem e, sem que eu fosse visto,  coloquei-o no quintal do vizinho. Entrei no carro e saí, sem olhar para trás.



Quando cheguei de noite, ao me aproximar de casa, vi uns adolescentes em volta de alguma coisa. Eles riam alto. Quando eu encostei o carro perto deles, eles pareceram meio sem graça ao me ver, e um deles veio perguntar: “Esse cachorro idiota é seu?”



Quando olhei para o chão, vi que eles tinham raspado o pelo do cão em algumas partes do corpo, e um dos garotos o estava pintando com as cores de um time de futebol. O cão parecia muito assustado. Lembrei-me de que haveria final de campeonato naquela noite, e fiquei imaginando o que aqueles garotos pretendiam fazer com o cão. Sem pensar mais, respondi: “É meu sim! E se vocês não derem o fora agora mesmo, vão se ver comigo, seus moleques!”



O pelo de Flaflu demorou um pouco a crescer, mas hoje, ele está bonito de novo. Estou saindo em viagem de férias, e em uma caixinha especial que coloquei no banco de trás, Flaflu, todo contente,  já se sentindo o dono do pedaço, olha a paisagem pela janela.



Eu não o escolhi; ele me escolheu.





quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Confissões de Uma Idosa Cínica - FINAL





Estar vivo ou estar morto; tudo uma questão de tempo! Se estamos do lado de lá, significa que voltaremos para o lado de cá a qualquer momento; se estamos do lado de cá, também podemos voltar para o lado de lá quando menos esperamos, e esta é a única verdade comprovada sobre a vida. Ninguém fica pra semente. Ir é apenas uma questão de estar. Nada há que possamos fazer a respeito: o corpo envelhece, fica cansado e desgastado, e precisa ser despido feito uma roupa velha e gasta. Mas por dentro dessa roupa velha, existe uma essência que nunca envelhece, nunca se desgasta. 

Não tenho o apego de ficar por aqui tempo demais, e Deus sabe quando será minha hora. Mas existem algumas coisinhas que eu gostaria de deixar acertadas antes de ir. E não pensem que sou melancólica; sou apenas prática. Depois de tantos anos de vida indo a funerais e missas de sétimo dia, tive tempo de observar o quanto essas cerimônias são chatas e extremamente cruéis para os parentes de quem morre. Não sei quando elas começaram, mas por que manter uma tradição que só causa dor? E de nada adianta para o morto, que já "está em outra" e nem se interessa pelo que pode acontecer ao corpo já em decomposição que vai ficar por aqui... portanto, já tomei algumas providências que eu gostaria que ficassem bem claras para os meus parentes. E nem se atrevam a não atender os meus últimos desejos, ou voltarei e puxarei as pernas de vocês enquanto eu for morta!

Vivi uma vida longa e muito feliz. Tive meus filhos, curti meus netos, morei em várias casas, viajei o mundo todo, tive muitos amigos - alguns eu dispensaria com alegria, mas tudo é aprendizado - aprendi muitas coisas. Tive uma vida muito boa, sim. Ainda tenho, e espero continuar a ter enquanto estiver por aqui. Adoro as tardes de biriba às quintas feiras com as amigas. Amo passear pelo meu jardim e observar a natureza, aprendendo com ela. Adoro ler, passear, almoços e jantares em família. Gosto da vida! Mas olhem, eu não me apego a nada. Nem mesmo a ela. E as minhas decisões - que espero, sejam respeitadas - são as seguintes:

Doei meu corpo à medicina. Que façam o que desejarem com aquilo que sobrar de mim, já que meus órgãos estão velhos demais para que possam servir a alguém. Façam experiências, ou então, dissequem e usem nas aulas de medicina. Não quero que sobre nada que justifique um velório, pois eu não quero ter um velório. Quem quiser fazer-me algum tipo de homenagem, embora não seja preciso, digam uma oração por mim e lembrem das coisas boas que vivemos juntos, e isso pode ser feito durante um jantar de família, com boa música de fundo e muitas flores em vasos enfeitando a casa.

Da mesma forma, esqueçam as missas de sétimo dia e missas para 'salvar' a minha alma de morta. Minha alma não precisa de padres e nem de sacerdotes de religião nenhuma! Dispenso alegremente a intervenção destas criaturas. Eles não sabem de nada, e acham que podem salvar almas e absolver-nos de nossos pecados. Tenho certeza de que o fim é só outro começo, e quem estiver esperando por mim lá do outro lado, o fará sem julgamentos e condenações ao fogo do inferno ou emanações de enxofre. Serei acolhida com generosidade e amor, assim como todas as almas que se vão deste mundo. Pois se existe um Deus julgador e punidor, não desejo encontrá-lo, pois o desprezo. Deus só pode ser bom e justo. De uma bondade e justiça que ninguém aqui é capaz de conceber - muito menos os religiosos, seus dogmas repetitivos e suas palavras vazias de sentidos, pronunciadas automaticamente com pompa e frieza. Para vocês, aqui ó! Uma banana bem grande!

Minha casa e meus poucos bens podem ser vendidos e distribuídos entre vocês, e não faço questão de determinar quem herdará o quê, pois estas coisas, conforme a minha hora vai chegando, significam apenas peso e inconveniência para mim. Divirtam-se com elas!

Não chorem por mim. É bobagem chorar por quem já morreu, pois eu tenho certeza de que a vida é assim, é um eterno encontrar-se, despedir-se, e encontrar-se novamente para despedir-se de novo. Por que chorar? Lembrem-se de mim, se assim o desejarem, como alguém que fez parte da vida de vocês, errou e acertou, tentou fazer o melhor, cumpriu sua missão e se foi. Continuem com suas vidas, e se algo de bom ficou da minha, guarde dentro de vocês como uma lembrança querida, algo para ser assunto de conversas ao pá da lareira nas noites de inverno. 

Minhas roupas e sapatos, doem aos necessitados, e não guardem nada, nadinha! Nem um lenço sequer. E façam-no sem culpas, pois eu quero que seja assim. Esvaziem todos os meus armários! Joguem fora toda a tralha acumulada durante minha vida ( o que sobrou dela, pois já doei quase tudo), e doem, doem, façam alguém feliz! Depois, se quiserem, encham tudo com as coisas de vocês, coisas novas, bonitas, com cheirinho de loja! Aproveitem bastante, pois chegará o dia em que alguém também terá que esvaziar seus armários. Não deixem suas melhores roupas para usar em dias de festa; usem sempre o que tiverem de melhor, em qualquer ocasião! Gastem tudo, aproveitem tudo, e depois, enquanto ainda estiverem em boas condições de uso, doem. Doem sempre. E comprem tudo novo. Respeitem o ciclo. Não retenham nada.

E lá no final, quando chegar a hora, vão em paz, sem olhar para trás, sem culpas, sem medos e sem saudades. E pelo amor de Deus, sem velórios.


FIM



segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Confissões de Uma Idosa Cínica - Parte VII




Nunca pretendi viver tanto... se cheguei até aqui, foi por obra do destino. Também não tenho aquele medo de morrer que a maioria das pessoas tem - principalmente, alguns idosos, que transformam a ideia da morte em fobia. Tampouco tenho aquela pena de deixar este mundo, da qual falou o comediante Chico Anísio. Na  minha hora de ir, fecharei os olhos e irei, simplesmente. Não levo culpas, arrependimentos, ansiedades ou saudades. Sei muito bem que os que ficam tem muito o que viver, e por isso, logo serei esquecida.

O que há do outro lado? Outra questão que também não me preocupa muito... sabem, já passei por algumas experiências um tanto esquisitas e incomuns... já vi e ouvi certas coisas que não se deve partilhar, principalmente, quando se chega à minha idade, ou as pessoas dirão que você está vendo coisas... elas me bastam. Sei que existe alguma coisa depois disso aqui, embora eu não saiba o que é, e nem esteja preocupada em saber. E se as coisas que eu experimentei tiverem sido apenas alucinações, então, também é um motivo para não me preocupar de jeito nenhum, pois se nada houver, nada sentirei, nada verei, nada serei.

Existe uma ansiedade tão grande, uma urgência em se prolongar a vida, em se parecer mais jovem hoje em dia. Fico pensando: para quê? Os idosos não são respeitados! melhor seria se as pessoas se preocupassem em tornar a vida melhor para nós, enquanto estivermos aqui, ao invés de ficarem tentando prolongá-la! Viver mais para que? Qual a vantagem? Os jovens nos ignoram, nos desprezam, riem da nossa experiência, não nos querem por perto! Nos aposentamos ganhando misérias! O plano de saúde dos idosos custa uma fortuna, e quem fica dependendo da saúde pública sofre todo tipo de desrespeito e humilhação. Viver mais, nestas condições?

As pessoas olham para fora dentro do ônibus ou fingem que estão dormindo para não terem que ceder lugar para nós; motoristas passam direto no ponto quando vê que só há um idoso fazendo sinal. Os mais jovens ignoram nossas opiniões e querem que a gente dê o fora quando estão conversando e tomando decisões importantes - algumas delas, relativas às nossas vidas! Viver mais para quê?! Em um mundo onde ser velho é ser desrespeitado, esquecido, ridicularizado!?

Não me agarro a esta vida; não mesmo! Mas enquanto eu estiver aqui, farei questão de não viver da maneira como 'eles' querem que eu viva; serei dona do meu nariz! Farei as coisas que eu gosto. Me recuso a agir como a maioria das pessoas da minha idade, ou seja, tentando não incomodar, não falar demais, contentando-me em ficar no quartinho dos fundos e em sorrir, satisfeita, toda vez que alguém olhar para mim e disser "Que gracinha a sua vovó!" Eu não sou uma gracinha, sou uma pessoa adulta, sã e capaz! Exijo respeito.

Também já não vou mais à igreja há muito tempo, pois sinto que os religiosos nos consideram estúpidos e incapazes de raciocinar. Acho um absurdo, as coisas que ouço quando vou à igreja! Eles pegam a Bíblia e a detonam de todas as formas, distorcendo as passagens para que caibam em suas concepções preconceituosas e absurdas. Várias vezes, sinto que aqueles padres nem sabem o que estão dizendo, apenas repetem automaticamente aquilo que escutaram ou leram em algum lugar. Nem sinto que eles mesmos acreditam no que estão dizendo. As missas são repetitivas; há mais de dois mil anos, as mesmas coisas são ditas, nada muda, nada evolui. Pra mim, chega. Como diz minha neta, "Já deu!" Na última vez que estive em uma missa, vi um cartaz enorme na entrada, com a lista dos dizimistas, e os nomes e sobrenomes dos que haviam pago o dízimo, ao lado dos nomes dos devedores! Achei aquilo absurdo e humilhante. Também tive que aturar o padre falando mal de outras religiões durante (contei no relógio) dezessete minutos! Já vivi demais para ter que engolir aquelas baboseiras. Não vou mais à igreja. Nem faço questão que rezem missas pela  minha alma quando eu me for. Quem gostar de mim, que faça uma oração silenciosa.

A evolução total do mundo não será quando o homem conseguir viver cento e cinquenta anos, mas quando conseguir viver cinquenta anos bem vividos, de forma a não prejudicar seu semelhante, respeitando os direitos alheios, considerando os idosos e sua sabedoria, tratando bem dos animais e do planeta. Isso sim.



quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Confissões de Uma Idosa Cínica - Parte VI





Quem nunca chocou-se ao ver um casal idoso em atitudes românticas? Porque  para a sociedade em que vivemos, amar é coisa de jovens! Velhos já 'passaram do ponto,' 'tiveram seu tempo,' e ficam ridículos em cenas de amor. 

Ontem, assistindo à minha novela, vi o escândalo que a personagem sentiu ao saber que sua mãe idosa iria passar a  noite na casa do namorado. Antes que ela saísse, deitou-lhe um verdadeiro questionário, como se fosse ela a mãe e a mãe, a filha! Mas a senhora não deixou por menos: pegou sua bolsa e saiu, deixando bem claro que já era adulta e que portanto, não devia satisfações de sua vida.

E quando cenas de amor entre idosos acontecem em público, sempre surgem questionamentos e até mesmo comentários como: "Mas que safadinhos!" "Que ridículo!" Ou até mesmo "Mas que nojo!" Como se pessoas idosas não tivessem mais direito a amar! 

Precisamos deixar claro que estamos vivos, e às vezes, é cansativo lembrar as pessoas o tempo todo deste fato. Precisamos mostrar que ainda somos pessoas adultas e independentes, donas de nossas vidas, que não voltamos a ser crianças e nem ficaremos contentes ao nos recolhermos a um cantinho da casa, fazendo tricô ou assistindo televisão o dia todo. Somos pessoas! Será que é tão difícil assim nos deixarem em paz?

Um dia eu sei que poderá aparecer alguém que balance novamente com as minhas estruturas. E tenho certeza absoluta que a minha família ficará escandalizada com este fato: o de que eu estou viva, tenho sangue correndo nas veias e um coração que pulsa intensamente. Ai de quem fizer algum comentário engraçadinho a respeito disto! Estrei pronta para responder à altura, pois não levo e  nem nunca levarei desaforo para casa. Humpf!

As pessoas se esquecem de que um dia, elas ficarão velhas também. Acham que juventude é coisa que dure, e que velhice é algo que acontece apenas com suas tias e avós. Deixem elas... seu dia chegará, e será tão de repente, que elas nem perceberão; apenas abrirão os olhos, e alguém as chamará de 'senhoras' e 'senhores,' ou torcerá o nariz quando, durante uma conversa de família, elas derem alguma opinião. Haverá aquele silêncio constrangedor, as pessoas se entreolhando e pensando: "Mas quem foi que pediu a opinião dela? Será que vamos ter que escutar suas histórias novamente?" 

E antes mesmo que possam perceber, começarão a ganhar camisolas, peças de roupas cinzas ou pretas, talcos, sabonetes e chinelos de presente de natal. Porque os 'jovens' pensam que estes presentes dizem melhor aos velhos os lugares que lhes cabem dentro de uma casa e de uma família. E se não tomarmos cuidado, logo estaremos ocupando a velha cadeira de balanço, envoltos em chales e linhas de  bordar, e quando as visitas chegarem, dirão às crianças: "Vá cumprimentar a vovó!", o que elas farão à contragosto. E passadas as obrigações sociais, os 'jovens' irão para a sala de estar conversar, esperando que o velho não os siga. 

E quando insistimos em mostrar-lhes que estamos vivos, ouvimos comentários pelos corredores da casa, tipo: "Mamãe não aceita a idade!" Mas isto não é verdade; quem não aceita a nossa idade, são vocês!




segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Confissõs de Uma Idosa Cínica - Parte V



Ah, os golpistas!... 

Há alguns dias, fui parada na rua por um senhor muito distinto, que parecia estar em grandes dificuldades. Abordou-me com gentileza, parecendo apressado, e pediu-me se eu poderia trocar uma nota de cinquenta reais para ele em notas de dez reais. Precisava tomar o ônibus, e não tinha trocado.

Na maior gentileza, peguei algumas moedas que tinha em minha bolsa, já que eu não tinha como trocar o dinheiro, e entreguei-as a ele, que me agradeceu com um sorriso amarelo. Nisto, entrei na drogaria a fim de comprar algumas coisas que eu precisava. Quando saí, vi que o homem continuava ali no ponto de ônibus,  e passei a observá-lo melhor. Ele aproximou-se de uma outra idosa, fazendo-lhe o mesmo pedido. Vi quando ela abriu a bolsa na maior inocência, e contou cinco notas de dez reais que entregou ao homem, que passou para ela a nota de cinquenta. Ele começou a conferir o dinheiro, e disse:

-A senhora se enganou. Aqui só tem quarenta reais.

Ela respondeu:

-Como? Não é possível, eu contei, o senhor viu!

-Minha senhora, aqui só tem quarenta reais, veja...

E ele contou as notas, e só tinha quarenta reais. Logo percebi a jogada dele, e enquanto a senhora, muito constrangida, abria a bolsa e começava a procurar por mais uma nota de dez reais para pagar o homem, aproximei-me, dizendo:

-Ora, o senhor não tomou o ônibus? Por que?

Ele sorriu:

-Acabei perdendo.

Apontei para o ônibus, ainda parado no ponto:

-Corra, ele ainda está ali.

E ele, com certa impaciência:

-Assim que esta senhora pagar-me o dinheiro que me deve.

Tirei minha sombrinha da bolsa, dizendo:

-O senhor é um golpista, e se não der o fora agora mesmo, vai ver só o que eu vou aprontar!

A outra senhora nos olhava, atônita, sem entender nada. Ele engoliu em seco, e afastou-se de nós, resmungando. Expliquei a ela que ele era um golpista, e ela, aliviada, agradeceu-me.

Se você é idoso, não deve jamais abrir sua bolsa ou carteira perto de estranhos, e muito menos, fazer coisas tão estúpidas quanto trocar dinheiro para alguém. Nós, os idosos, somos sempre vítimas destas pessoas inescrupulosas, que provavelmente não tem mães ou pais, e aproveitam-se de nossa aparência frágil e de nossa boa vontade! Infelizmente, o mundo mudou bastante desde o tempo em que éramos jovens e podíamos confiar nas pessoas.

Foram-se os tempos em que as pessoas eram verdadeiras, tinham honra, e a palavra dada era lei. 

Não se pode mais confiar em ninguém, e isto pode ser verdadeiro até mesmo quanto às pessoas mais íntimas.

Dia desses meu neto mais novo veio fazer-me uma visitinha. estranhei, já que desde que nasceu, ele nunca veio sozinho visitar-me, e quando em companhia dos pais, sempre demonstra bastante tédio, checando as horas repetidamente, só parecendo feliz na hora de despedir-se. E de repente, o moleque de dezesseis anos bate à minha porta em uma tarde de sexta-feira, dizendo que sentiu saudades... bem, abri-lhe a porta e recebi-o bem, com uma grossa fatia de bolo de chocolate. Mas fiquei, como se diz hoje em dia, "na minha," esperando para ver o que ia acontecer...

E então ele me falou que precisava de um computador novo:

- Sabe, vó, para fazer as lições da escola.
-Mas seu pai não lhe deu um no ano passado?
-Pois é, mas já está ultrapassado, e o HD está com defeito. 
-E por que você não fala com ele e pede um novo?
-Eu bem que tentei, vó, mas ele disse que não vai me dar... 

Ao mesmo tempo que eu me senti usada e tola, achei que o moleque precisava de uma lição. Tomei mais um gole do meu chá, deliberando o que deveria fazer.

-Sabe, meu filho... ando precisando de alguém que me dê uma mãozinha por aqui. A garagem precisa ser pintada, a cerca viva precisa ser aparada, a área de serviço merece uma boa lavada, e algumas lâmpadas da casa tem que ser trocadas; além disso,  o jardineiro não veio esta semana, e o gramado está 'dessa altura!' E também necessito de alguém que faça as compras do mês para mim, já que não ando me sentindo muito bem...  e talvez, se uma alma gentil fizesse uma boa faxina - a casa precisa ser encerada, sabe, e também tem algumas coisas que preciso separar em caixas para doação...

-Eu ajudo a senhora, vó! faço tudo, tudo o que a senhora pedir!

E meu desinteressado netinho passou a semana toda aqui em casa, fazendo tudo para mim.

No sábado à tarde, quando ele terminou, a casa estava um verdadeiro brinco! Nós tomamos café na varanda, e ele devorou um bolo de cenoura quase inteiro, feliz da vida, embora cansado. Quando ele acabou de comer, agradeci e abri a porta da frente. Ele ficou me olhando... despedi-me novamente.

-Mas vó... a senhora não está esquecendo de nada?
-Eu?! Do que? Ah, sim! O porão precisa ser limpo!
-Não vó, não é isso... o dinheiro... sabe, para o computador novo?...
-E quem disse que eu vou dar dinheiro para você comprar computador novo?
-Mas...
-Mas... mas... ora, menino! Você nunca vem visitar-me! Acha que vou lhe comprar um computador só porque fez uns servicinhos aqui em casa? 

Ele ficou me olhando, de boca aberta.

-Sabe, agora você sabe exatamente como alguém se sente quando descobre que está sendo usado! Agora, vá para casa, meu filho.

Ele baixou os olhos, e saiu. Fiquei à porta olhando-o caminhar cabisbaixo, até que desapareceu na esquina.





quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Confissões de Uma Idosa Cínica - Parte IV





Alguns conselhos para os quase velhos e para os velhos  (ou idosos, se preferirem; quem sabe, vocês prefiram , ao meu ver, o pejorativo termo "membros da terceira idade." Ou o mentiroso "membros da melhor idade:):

-Seja independente. Cultive a independência, tanto financeira quanto física e emocional. Cuide bem de sua saúde para que na velhice você tenha a melhor mobilidade física possível, e esteja livres de doenças crônicas, como diabetes e artrites. Exercite-se; faça caminhadas, consulte o médico periodicamente.

-Aprenda a apreciar a solidão, através da criação de momentos mágicos, como o apreciar da chuva, ou do nascer do sol, um passeio à pé por um belo jardim, um bom livro, boa música. Abra um blog; aprenda a usar a internet, compre um computador, e dê asas à imaginação. Quem sabe, você não possa tornar-se um exímio fotógrafo ou poeta? Enfim, crie alguma coisa que te traga momentos de lazer preciosos. Se preferir, entre para um daqueles grupos da terceira idade, que se encontram para jantares dançantes ou excursões - embora eu não tenha conseguido adaptar-me a eles.

-Aprenda a fazer-se respeitado! Os mais jovens tem a mania de pensar que somos inúteis ou incapazes de cuidar de nós mesmos. Querem mandar nas nossas vidas!

-More em sua própria casa, nem que seja um pequeno apartamento, mas evite loucuras, como subir em escadas para trocar lâmpadas, por exemplo. Preste atenção para não deixar o fogão aceso, e evite os chuveiros à gás. Melhor exercitar sua memória fazendo palavras cruzadas, ou se preciso, tome um medicamento para evitar esse tipo de coisa! Mas prefira viver sozinho. Por mais encantadores que seus filhos sejam, quando eles o convidam para viver com eles, é porque sentem-se obrigados a isso, e não porque querem realmente conviver com você. Assim que você realmente precisar da ajuda deles, eles se esquecerão dos tempos em que você limpava-lhes as bundas, alimentava-os, levava-os à escola, lia histórias para que dormissem e dedicava todo o seu tempo a cuidar deles. Assim que você tornar-se o que eles consideram  um velho inútil, aqueles que antes brigavam pela sua companhia estarão brigando para ver quem segurará a barra de ficar com você. Eles o empurrarão uns para os outros como se você fosse um velho cão sarnento. Portanto...

-Tenha um plano de saúde. Nem que você precise dar uma grande parte de sua aposentadoria para pagar um! Se não tiver, correrá o risco de, quando precisar, ter que fazer uso dos 'serviços' de um hospital público, pois seus filhos não terão dinheiro para pagar-lhe um tratamento. Já viram quanto custa um dia de UTI?!

-Se viver sozinho tornar-se difícil, escolha você mesmo para qual tipo de instituição você quer mudar-se. Jamais aceite viver com seus filhos, pois eles o tratarão como um inútil cuja opinião não faz a menor diferença para ninguém. Eles o legarão ao quartinho dos fundos, e adorarão que você permaneça lá a maior parte do tempo. Vão querer controlar seus gastos, determinando o que você pode ou não comprar. Vão desejar entupir-lhe de medicamentos que vão acabar com seu estômago e sua boa disposição física. Mas tudo com a melhor das intenções, é claro!

-Mas se a sua única saída for morar com um dos filhos, evite dar opiniões, sejam elas quais forem. Fique lá no seu quartinho a maior parte do tempo, seja gentil, faça tudo o que eles mandarem, não se intrometa nas decisões ou brigas de casal, não queira interferir na educação de seus netos e evite até mesmo regar um vaso de plantas sem antes perguntar se é permitido fazê-lo. A não ser que você queira ver seu pimpolho transformar-se em um monstro em questão de segundos!

-Não deixe que falem de você como se você não estivesse presente! Geralmente, os filhos - e até as pessoas que não pertencem à família - gostam muito de fazer esse tipo de coisa. Ficam discutindo sua vida sem pedir a sua opinião. Não permita que isso aconteça! Nem que você precise berrar um palavrão para que a ouçam. A última decisão sobre a sua vida deve ser sempre sua. Não perca sua dignidade como ser humano!

-Torça para que, depois de impor a sua vontade, eles não queiram internar você em uma clínica psiquiátrica...





domingo, 13 de outubro de 2013

Confissões de uma Idosa Cínica - Parte III




Os cientistas fazem questão de desenvolver métodos, remédios e mais uma porção de tranqueiras a fim de prolongar a vida das pessoas. Antigamente, uma pessoa era considerada velha aos quarenta anos, e idosa aos cinquenta. Alguém que vivesse até os sessenta, setenta, era um milagre! Por causa disso, as pessoas casavam-se muito cedo. Minha bisavó conheceu meu bisavô aos doze anos, e casou-se - virgem - aos treze, tendo doze filhos. Hoje em dia, ela seria considerada vítima de pedofilia!

As pessoas mudam, os tempos mudam, os conceitos mudam...

No meu tempo de juventude, a comida não fazia mal à saúde, e se fizesse, ninguém ficava sabendo; apenas adoecia e morria. Viver e morrer eram coisas naturais. Nos funerais, a gente se sentava e conversava sobre a vida. Marcava encontros e reuniões - afinal, a gente não se via há tanto tempo! Depois, na hora do 'enterro', cada um jogava no caixão seu punhado de terra, dava seu suspiro, derramava sua lágrima e seguia com a vida...  hoje, morrer é sinal de derrota e fracasso! Os médicos se sentem fracassados quando alguém morre, a família não se consola. Cultua-se o morto como se ele tivesse virado santo só porque morreu. E se ele cometeu alguma falta, ninguém falará sobre ela.

Estive em um velório recentemente; mais um. É incrível como, de repente, o evento principal na vida de alguém passa a ser ir a velórios. Até que o o show principal somos nós. Enfim: a viúva aturou aquele cabra por mais de quarenta anos, humilhando-a, pisando nela, impedindo-a de ser quem queria (seu grande sonho era ser poeta, publicar seus poemas em livros), diminuindo-a diante dos amigos e da família, talvez porque isso o fazia sentir-se melhor em relação a si mesmo. Ela nunca fazia uma escolha sozinha, nem mesmo quando ia a um restaurante. Ele não deixava. Decidia tudo por ela. Um dia, encontrou seus cadernos de poesia, e queimou-os todos, só pelo prazer de vê-la destruída. Vivia gabando-se de sustentar a casa e não deixar faltar nada a ela e aos filhos, que cobria de dinheiro e a quem satisfazia todas as vontades a fim de receber deles o apoio que precisava. Bem, talvez ele deixasse faltar apenas uma coisinha sem importância: respeito! Mas isso não era tão relevante assim para ele.

Bem, durante o velório, as pessoas iam cumprimentá-la, lamentando pela "terrível perda." Ela enxugava uma lágrima com o lencinho bordado, e agradecia, sentada à cabeceira do morto, que nem mesmo depois da morte, assumira um ar menos arrogante. Aquela coisa toda, aquele ritual macabro foi me enchendo por dentro, e finalmente, chegou à minha garganta.

De repente, eu me levantei, e batendo palmas, pedi a atenção de todos. As pessoas me olharam, caladas e atentas, com certeza, pensando que eu fosse dizer alguma coisa em favor do morto. Mas as palavras simplesmente escorregaram da minha boca, e não pude me conter mais. Meu discurso foi mais ou menos assim:

"Todo mundo sabe que a Dora (viúva) foi casada com Guilhermino aqui (apontei para o caixão)   por mais de quarenta anos. Todos aqui também sabem que Guilhermino era um crápula rude, hipócrita, arrogante, mulherengo e mentiroso. Sugou desta mulher (apontei para a viúva) todos os seus anos de juventude. Os filhos, contanto que recebessem seu quinhão, jamais se levantaram para defendê-la durante as muitas humilhações pelas quais ela passou." (Naquele momento, os três bastardos ergueram-se de seus assentos, vindo em minha direção. Mas como eu sei que ninguém vai atrever-se a tocar em uma idosa de oitenta e tantos anos, não me intimidei): "pois é... e agora vocês vem aqui, dizer o quanto sentem pela morte desse crápula? Vocês deveriam estar é comemorando!" 


Dirigi-me diretamente à viúva: "Querida, você ainda tem sessenta e poucos anos, se não me engano. Pegue a grana que esse safado deixou e vá conhecer o mundo! faça uma viagem! Não deixe que seus rebentos interesseiros ponham a mão no dinheiro antes que você morra. Viva o que lhe resta com dignidade e em grande estilo!"

Depois daquilo, a viúva ficou me olhando de olhos esbugalhados, e quando o pessoal começou a murmurar, e conforme o murmúrio foi aumentando de intensidade, peguei minha sombrinha e saí dali apressada.

Mais tarde, soube que Dora, a viúva, partiu em um cruzeiro pelas Bahamas com seu motorista, quinze anos mais jovem, que sempre estivera interessado nela, mas para quem ela nunca dera uma chance em respeito ao marido. Limpou o dinheiro da conta bancária naquela mesma tarde, após o velório,  transferindo tudo para um paraíso fiscal, para que os filhos não conseguissem bloquear-lhe os bens. Ainda fechou a venda de algumas propriedades que já estavam iniciadas pelo marido antes de sua morte, escondido dos filhos. O  novo casal, com o dinheiro da herança e da venda das propriedades, mudou-se para Buenos Aires, onde abriram um hotel cassino. 

Ando pensando em dar uma passadinha por lá nas minhas férias.


quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Confissões de Uma Idosa Cínica - Parte II




"Dona Abigail!!!" Acordei com alguém tocando a campainha na manhã de domingo, ao mesmo tempo que vociferava meu nome à porta. Calcei meus chinelos de pompom e fui atender, ainda descabelada, e muito curiosa a respeito de quem seria capaz de acordar uma velha senhora em uma manhã fria e chuvosa como aquela. Será que a casa estava pegando fogo?

Abri a gretinha da porta, e o vento gelado entrou, congelando-me as pupilas; mas ainda tive tempo de ver meu vizinho da porta ao lado, um linguarudo contumaz, acompanhado por um outro senhor de quepe usando um uniforme... da polícia! Escancarei a porta sem dizer nada, mas expressando toda a minha insatisfação através do meu olhar. O vizinho sorriu, meio-sem graça, enquanto o  policial perguntava:

-Bom dia, senhora. Está tudo bem? Precisa de alguma coisa?

Respondi:

-Estou ótima, ou melhor, estava, antes de ser incomodada. O que está acontecendo aqui?

Naquele momento, meu vizinho explicou-me, com aquela voz condescendente que se usa com os retardados mentais:

-É que eu não a via há quase dois dias, Dona Abigail, e então eu supus que alguma coisa terrível pudesse ter acontecido... decidi verificar se a senhora estava bem!

Olhei-o como se ele fosse o ET de Varginha:

-Bem,  com um frio desses, o que eu vou fazer aí fora? Para que abrirei as janelas? E por que chamou a polícia antes de verificar por si mesmo?

-Ora, sabe como é, dona Abigail... da última vez, a senhora espantou-me com a vassoura!

-E passou pela sua cabeça lesada usar o telefone, ou ligar para um de meus filhos?

Ele deu um sorriso amarelo:

-Na verdade... não.

Naquele momento, o policial fuzilou-o com o olhar,  dizendo-me que se eu precisasse de qualquer coisa, telefonasse para o número que estava no cartão que ele me entregou. Gostei dele! Enquanto isso, bati a porta na cara do infeliz vizinho bisbilhoteiro. Eu sei muito bem que ele aguarda meu passamento ansiosamente, pois há anos ele anda querendo comprar a minha casa, pois tem interesse em ampliar seu jardim. Fez várias propostas ao meu falecido marido, mas como metade da casa me pertencia, não permiti tal absurdo. Também abordou meus filhos no dia do velório. Bem que eles tentaram me convencer a vender e mudar-me para "Um lugar maravilhoso" que eles conheciam, mas deixei bem claro que eles só colocariam a mão na herança após a minha morte.

As pessoas se esquecem de um pequeno e importante detalhe: elas também vão ficar velhas! E ainda há  um outro detalhe, do qual elas se esquecem mais ainda: nem todo velho é idiota.



segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Confissões de Uma Idosa Cínica Parte I




Meu nome é Abigail, e tenho 87 anos e cinco filhos: duas meninas e três rapazes - todos eles casados e com filhos. Tenho oito netos no total, alguns adolescentes e outros já adultos. Vejo-os tão poucas vezes que confesso que não consigo lembrar-me sempre de seus nomes. Eles acham que é porque estou velha, mas eu sei que é pela falta de contato frequente. 

 Olhando para trás, posso dizer que nem todos os meus anos foram bem vividos, e acredito que na vida de todo mundo é assim, embora alguns tentem passar uma impressão diferente. Sou viúva. Meu marido foi desta para melhor há cinco anos e meio, e até hoje, ainda não consegui recuperar-me completamente da repentina solidão e sensação de absoluta liberdade que acometeu-me nos dias que se seguiram ao seu velório e cremação. Bem, no início, foi um pouco assustador; morávamos sozinhos em nossa própria casa - onde ainda moro-, e a morte repentina dele deixou-me muito amedrontada; será que eu encontraria alguma coisa de útil para fazer, já que não precisaria mais cuidar dele? Mas estranhamente, não  lamento a falta física de meu marido. Talvez porque eu saiba que para onde ele foi, eu irei daqui a pouco... só não sei se me agrada esta ideia; não a da morte, pois com esta, já me conformei, mas a de ir para o mesmo lugar aonde ele se encontra. Acho que depois de cinco anos, não teremos muito o que conversar. Na verdade, já não tínhamos mesmo.

A lembrança mais forte que me ficou dele, é quando ele acordava pela manhã e sem o menor cuidado para não fazer barulho, ia para o banheiro e começava a tossir alto e escarrar na pia. Depois, ia arrastando os chinelos pelo corredor até a cozinha, de onde bradava: "Abigail! Estou com fome!" Ou então: "Abigail! Onde está o meu remédio do coração?" Meu marido era, literalmente, o que se pode chamar de um homem velho. Morreu aos noventa e sete anos, e tenho certeza de que se eu tinha algum pecado a pagar, agora eu tenho crédito. Talvez por isso ainda esteja por aqui... se bem que não era bem esse tipo de bônus que eu esperava que Deus me daria. Pensei em um  namorado bonitão,  mais jovem, mais forte e muito bem disposto; mas todos os homens com estas características já estão comprometidos, e não tenho vocação para ser "a outra." Imaginem só, na minha idade... 

Mas foi estranho chegar em casa após o velório e não mais escutá-lo tossindo, escarrando e reclamando o tempo todo. Tinha que atender telefonemas e receber pessoas que me traziam tanta comida, que no fim, eu tive que jogar fora, já que não cabia mais nada no freezer. 

Entre meus filhos, foi aquele constrangimento quando um amigo da família perguntou: "E agora? Onde Abigail vai morar? Com quem ela vai viver? Vocês sabem, é muito perigoso ficar só na idade dela..." Vi como eles se entreolharam, e percebi o silêncio que imperou na sala de velório depois que aquele intrometido levantou tal assunto; a fim de dar-lhes um alívio, eu mesma respondi: "Não se preocupem comigo. Ficarei muito bem sozinha, enquanto eu tiver saúde e puder cuidar de mim mesma."

E cumpri a minha promessa, até agora; e foi a melhor coisa que eu fiz. 

Não tive muito o que fazer depois que meu marido se foi. Não havia remédios para administrar, não havia pratos dietéticos a serem preparados, nem precisava ajudá-lo a tomar banho ou limpar-se. Não havia mais gritos mal-humorados e de repente eu tinha todos os canais da TV disponíveis para assistir o que eu bem quisesse, à hora que eu desejasse. Mal pude lidar com tanta liberdade no começo; mas após alguns dias, já estava mais acostumada. De vez em quando, eu levo-lhe algumas flores; acho horrível quando vou ao cemitério e vejo aquelas campas abandonadas e sem flores. É o cúmulo do esquecimento. Espero que façam o mesmo por mim... mas já estou pensando em contratar os serviços de uma flora para que alguém vá lá a cada três dias colocar flores frescas para mim quando eu tiver ido desta para melhor. Minha neta Juliana (ou será a Luciana?) achou desnecessário, já que eu vou pagar um bom dinheiro por um serviço que eu não sei se vai ser cumprido. Ela tem razão. Quando eu lhe perguntei se ela poderia ir até lá e checar se as flores estariam sendo entregues, ela desconversou, dizendo que detestava cemitérios.

Vocês conhecem alguém que goste?

Na dúvida, contratarei os serviços de uma flora.

Hoje em dia existem muitos eufemismos para mencionar que alguém está velho. Mas no fim, todos eles só querem mesmo é dizer o óbvio: "Você está velha, passou do ponto." Odeio essa coisa de Terceira Idade ou Melhor Idade. A quem eles estão tentando enganar?  O que há de bom em se estar cheio de cabelos brancos e rugas, ter os ossos do corpo doloridos e amolecidos, ver os dentes enfraquecendo e caindo um a um, não poder comer tudo o que se quer, não ser escutado pelos mais jovens, e quando somos, ver nossas ideias e gostos serem criticados? Acho que esta é a pior parte.

Não; a pior parte, é ser tratada como criancinha. Odeio quando chegam aquelas pessoas sorridentes, exageradamente complacentes, e se aproximam de mim, dizendo: "Mas olha só que gracinha que ela é!"  Certo dia, eu mandei um deles para 'aquele lugar,' e ao invés de chocar-se, ela riu bem alto, exclamando: "Mas ela é sapequinha, hein?" Daí, minha única saída, foi atingi-la com minha sombrinha. Só então ela compreendeu. E esta talvez seja a única vantagem de ser velho: quando fazemos coisas malucas, somos imediatamente perdoados.

Certa vez, uma vizinha convidou-me para um desses bailes da Terceira Idade, e após muita insistência, eu fui. Chegando lá, deparei com um salão enfeitado de bolas coloridas, como em aniversários de crianças, algumas mesas abarrotadas de idosos que ora abanavam-se com leques de papel, ora posavam para fotografias, ora paqueravam uns aos outros. A música foi o que mais me incomodou: chatérrima! Aqueles boleros de 1925, chorinhos, marchinhas do carnaval de 1930... pensei: "Esse pessoal nunca ouviu falar de Ivete Sangalo?!" Não era à toa que todos pareciam tão entediados. No sábado seguinte, levei meu CD da Ivete, e pedi ao DJ que o pusesse para tocar; imediatamente, todo mundo se levantou e começou a dançar. Ficou bem melhor! Mas depois de cinco minutos, a organizadora do baile achou melhor retirar a música dançante e frenética. Só porque um dos velhinhos teve um ataque cardíaco fulminante! Ora essa! Não vamos todos morrer? Melhor que morramos felizes! Depois daquilo, eu nunca mais apareci por lá. Minha vizinha me contou que eu virei lenda.










A RUA DOS AUSENTES - PARTE 11

 Capítulo 11 UM A UM  Ela abriu os olhos e reconheceu o caminho diante dela, por onde já tinha passado, e que a conduziria de volta à mesma ...