Um Passinho à frente aí!
As duas vizinhas encontram-se no ponto de ônibus, depois da feira. Além das habituais sacolas feitas com retalhos coloridos de couro sintético cheias de legumes, frutas e verduras, Dona Iraci traz consigo uma galinha viva. As duas suam em seus vestidos de chita sem manga, estampados de flores.
"Ô, Nena, eta ônibus demorado! Quem é o motorista que cobre esse horário?"
"Ah, pra varia, é o Jorge Nojenta ( apelido dado ao motorista do ônibus devido a uma falha nos dentes da frente, fazendo-o ficar parecido com o famoso personagem de Tião Macalé, cujo jargão era: Ih! Nojenta!")
"Jesus! Já até liguei um monte de vezes para reclamar, mas a empresa não faz nada!"
"Ih, nem adianta... ele vive dizendo que para mandarem ele embora, só vendendo uns ônibus... e se alguém reclama do atraso, ele manda ir à pé. Mas mudando de assunto, Nena, pelo que eu tô vendo, vai ter galinha no almoço, hein?"
"Foi o marido que mandou comprar... mas eu não tenho coragem de matar não!"
"Ora, e como vai ser?"
"Ah, sei lá, ele que se vire! Se quiser comer galinha, vai ter que matar."
Os outros passageiros na fila olhavam para a pobre galinha branca, cujos pés estavam amarrados, e alguns lamentavam a sorte da coitadinha. Uma menininha de vestido rosa estava à beira das lágrimas.
Dez minutos de muito sol e reclamação depois, chega finalmente o ônibus, dirigido pelo lendário Jorge Nojenta. A fila começa a andar, enquanto o motorista, de mão na cintura e pitando um cigarrinho sem filtro, observa a fila andar e o ônibus encher.
Mas quando chega a vez de Dona Iraci, cujas reclamações a respeito de sua pessoa junto à empresa já tinha lhe chegado aos ouvidos, Jorge Nojenta resolve vingar-se; bloqueando a passagem entre a passageira e a porta de entrada, ele brada:
"Não vai entrar com animal no meu carro não!"
Ela retruca, contrariada, enquanto sua amiga observa tudo com a boca aberta:
"Como assim?! É comida! Além disso, eu já tô cansada de ver gente entrando com gato, cachorro e até tartarura dentro desses ônibus!"
"Mas no meu carro não entra não. É proibida a entrada de animal."
"Ora, então como é que eles põe um jumento para dirigir?"
Ele joga fora a guimba de cigarro e estufa ainda mais a avantajada barriga:
"Cumé qui é?"
Os passageiros, já impacientes devido ao atraso do ônibus, começam a reclamar, mas tem sempre alguém que põe lenha na fogueira. Foi o que fez um menino à beira da adolescência:
"E aí, tia! Manda ver!"
Jorge Nojenta manda o moleque calar a boca, e volta-se novamente para Dona Nena:
"Repete, desaforada!"
"Desaforada é tua mãe, seu jumento! Eu vô porque vô entrar nessa carroça com minha galinha, e quero ver quem vai me impedir!"
Dizendo isso, Dona Iraci dá um empurrão em Jorge Nojenta, que surpreso, nem teve tempo de impedi-la de entrar no ônibus. Ela joga o dinheiro sobre a mesinha do trocador e passa a roleta, seguida de sua fiel escudeira, tão fiel que nem sequer abriu a boca para defender a amiga.
Jorge Nojenta entra no carro, pega a sacola com sua marmita sobre o painel e, colocando-a debaixo do braço, diz, com a maior calma:
"Aí, pessoal! Vou almoçar e não sei que horas volto! E se essa bruxa ainda estiver aqui quando eu voltar, eu saio para jantar!"
Dentro do ônibus, um vozerio de desaprovação e impaciência começa a elevar-se. Alguns acham que D. nena tem razão, enquanto outros dão razão ao motorista. Dona Nena, preocupada, pergunta:
"E agora, Iraci? Já passa de meio-dia e eu ainda nem fiz o almoço... que horas isso vai sair?"
"Não tô nem aí!"
O pessoal começa a vaiar.
Enquanto isso, o ônibus começa a lotar; o trocador gritando: "Um passinho à frentre aí, faz favor!"
Vinte minutos, e nada da situação se resolver. O ônibus lotando cada vez mais, a galera cada vez mais ouriçada. O sol batendo na lataria do ônibus e transformando-o em uma fornalha.
Para salvar a situação, chega o outro ônibus para fazer a próxima viagem, e os passageiros, aos poucos, passam para o segundo ônibus.
Dona Nena argumenta:
"Vai ficar aí, mulher? Todo mundo já saiu!"
"Vou ficar sim! Daqui não saio, daqui ninguém me tira! E aquele asno vai ter que me levar pra casa!"
Encolhendo os ombros, a amiga pega suas sacolas e entra no outro ônibus, que parte.
Do outro lado da rua, Jorge Nojenta assiste a tudo de dentro de um bar, onde toma uma branquinha. Acaba de comer seu almoço, e palita os poucos dentes, a marmita vazia embrulhada sobre o balcão.
Dentro do ônibus, Dona Iraci e sua amiga, Marluce, conversam
( devido à solidão, ambas já tinham se tornado tão amigas que Dona Iraci até batizara sua companheira, prometendo-lhe, além de poupar-lhe a vida, um lugar de honra no quintal de casa).
Duas horas e meia depois, como o impasse não se resolvesse por bem, já que Jorge Nojenta abandonara seu posto e jazia adormecido feito um anjo no banco da pracinha em frente ao ponto de ônibus, a empresa mandou um outro motorista para rendê-lo.
Mas Dona Iraci recusou-se a ir para casa conduzida por outro motorista.
Dizem que ela foi vista sentada em um banco da pracinha, de onde vigiou o sono de seu desafeto até o anoitecer, quando finalmente, seu marido veio e obrigou-a a ir para casa:
"Chega de confusão, mulher! Vamos pra casa que eu quero frango assado no jantar!"
Com as forças que ainda lhe restavam, ela grita:
"Ninguém encosta na Marluce!"
KKKK...Ana,só vc mesmo!Um conto super divertido e bem brasileiro tb!bjs e boa semana!
ResponderExcluirOlá!Boa tarde
ResponderExcluirAna
Muito bom...hehehe, a começar pelo Jorge "Nojenta", e pela galinha ter recebido um nome,Marluce.
Ao contrário de dona Nena,vou ficar ao lado de dona Iraci.Se já houve a "entrada" de outros animais, anteriormente,ela tinha mesmo que ficar no ônibus.
É natural que ,Jorge, amparado pelos seus direitos trabalhistas, iria partir para o confronto.
No final,vai acabar sobrando para o marido, que vai ficar sem seu jantar preferido...
Gostei...
Obrigado pelo carinho das palavas em meu blog
Boa semana
Beijos
Olá Ana!
ResponderExcluirMuito divertido o teu conto.
Gostei muito de ler. Parabéns!
Estas senhoras são mulheres de fibra!
Beijinhos,
Cris Henriques
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