segunda-feira, 10 de junho de 2013

ACEITAÇÃO



ACEITAÇÃO - PARTE 1


Passei aquela manhã terrível tentando compreender a presença daquela jovem no velório de meu marido.  Entre as minhas lágrimas, notei - e todos notaram; apenas fingiram não perceber para não causar-me constrangimento - aquela mocinha, menos da metade da minha idade, que chorava compulsivamente, embora tentasse ser discreta. Os cabelos loiros caíam em cachos sobre os ombros. Vestia uma blusa cor-de-rosa de lã macia, e calças jeans. Era do tipo 'mignon'. Não consegui ver a cor de seus olhos, pois usava enormes óculos escuros, que só retirava para secar as lágrimas - ocasiões nas quais mantinha-se de cabeça baixa. Não falou com ninguém, e ninguém falou com ela. 

Vi quando Gertrudes e Zilá, minhas melhores amigas, conversavam baixinho enquanto dirigiam olhares curiosos e zangados àquela jovem. Achei melhor não fazer nada, nem aproximar-me dela. Tércio, meu falecido marido, estava morto. De nada adiantaria vasculhar um passado que nem sequer existia mais, um passado que seria, de repente, embrulhado junto com o presente e o futuro e atirado em uma cova. Eu nunca fora do tipo que sofre sem necessidade. Procurava minimizar meus sofrimentos, de maneira muito prática. Alguns me diziam fria por causa de minha atitude, e nem percebiam que era a minha maneira de continuar e tentar ser feliz, pois já sofrera muito na vida.

E fora Tércio quem resgatara-me de meus sofrimentos ao trazer-me para sua vida, salvando aquilo que restava da minha, e intensificando-a. 

Após o sepultamento, recebi as condolências finais de minhas amigas, e as foram-me ditas as frases clichés em ocasiões como aquelas - "Se precisar, me ligue, estou aqui," "Força, a vida continua," "Ele era um bom homem," "Está com Deus, descansou" e outras frases que se diz tentando significar alguma coisa quando tudo perde o significado e nada há a ser dito. Certifiquei minhas amigas de que estaria bem e de que não, não seria necessário que uma delas passasse a noite comigo, pois queria ficar sozinha. Quando todos se foram, tomei um táxi e fui para casa. A tarde já ia longe.

Apenas quem já perdeu alguém sabe exatamente o que significa chegar em uma casa vazia que estará sempre vazia dali em diante. Ver as roupas ainda penduradas no varal, o livro começado sobre  a mesinha de cabeceira, as chaves jogadas no console, o perfume sobre a cômoda e em todo lugar da casa... é preciso acostumar-se com o fato de que a gente jamais vai se acostumar. É preciso saber que aquela pessoa se foi, e pronto; nem todas as lágrimas a trarão de volta. Mesmo assim, a gente as chora em profusão. Só de raiva, impotência e teimosia. E saudade. mas a saudade não vem logo após o sepultamento. Ela é caprichosa. Vem mais tarde. Vem de repente, quando a gente desperta durante a noite e depara com o travesseiro ao lado onde deveria haver uma cabeça repousando. Vem quando a gente escuta algo interessante no rádio, ou vê algo interessante na TV, e não tem com quem comentar. A saudade é muito caprichosa mesmo! Ela se esconde na caixa de fotografias que cai no nosso pé quando a gente abre o armário do corredor. Vem no cheiro da comida do vizinho, que era o prato preferido de quem se foi. Fica tatuada e adormecida na pele, e desperta nas noites frias. Às vezes, é trazida até nós por uma canção que a gente escuta de repente. Ou vem assim, do nada. Apenas vem. Porque está lá, aonde o outro não está. A saudade substitui uma presença.

Deixei-me mergulhar em meu mar de fossa e de luto durante as duas semanas seguintes. Não fui trabalhar. Dei folga à Rose, minha funcionária. A loja de presentes permaneceu fechada. Atendi a apenas duas ligações, apenas para certificar as minhas amigas de que eu ainda estava viva; depois, pedi que me deixassem em paz. Disse que as avisaria, caso eu morresse. 

E após as duas semanas durante as quais não atendi à porta, não tomei muitos banhos, não comi muita coisa e nem passei muito tempo de pé, achei que era chegada a hora de aventurar minha cara para fora do edredon. É verdade, a vida continua, e até o luto cansa. Eu ainda era jovem, estava no auge de meus 42 anos. Havia muito a se fazer. Ainda teria que cuidar da papelada do inventário, abrir a loja, acionar o seguro de vida de Tércio (engraçado como os seguros de vida só funcionam depois que a gente morre), enfim, voltar a ter algo parecido com uma vida.

Lembrei-me de uma cena no hospital, assim que fiquei sabendo que Tércio não tinha resistido ao enfarto fulminante; uma amiga de minha sogra, que a acompanhava, bradou ao saber da notícia: "Se pelo menos vocês tivessem tido filhos, agora estaria amparada!" Tive que me segurar para não quebrar a cara dela! Um filho teria feito com que Tércio permanecesse vivo? Em que um filho seria capaz de amparar-me? Eu é quem teria de ampará-lo, e sozinha agora! Tem gente que não sabe mais o que fazer para mostrar-se indiscreta e inconveniente. Minha sogra pediu-me desculpas, mas no fundo, eu sei que ela pensava da mesma forma. 

Liguei para ela assim que me desenterrei dos edredons. Naquelas duas semanas, ela não me telefonara nenhuma vez. Não éramos grandes amigas. Sei que ela não aprovou-me desde o início, e que fez tudo o que estava ao seu alcance para que Tércio se casasse com a ex-namoradinha de infância. Ela foi fria e monossilábica ao telefone. Nem perguntou como eu estava. Compreendi que aquela era a primeira e última vez que a contataria após a morte de Tércio, pois não tínhamos realmente nada a nos dizer.

Liguei para minhas amigas, Gertrudes e Zilá. Elas ficaram realmente contentes ao ouvirem a minha voz. Eu fiquei feliz de saber que elas tinham ficado felizes. Minhas melhores amigas formavam um lindo casal - sim, elas eram um casal, e mais um motivo para que minha sogra me odiasse. 
Tomei um bom, e morno, e perfumado com sais, e longo banho de banheira. Chorei de novo. Sempre choraria, todos os dias.

Reuni a papelada que achei que seria necessária para o testamento. Cuidaria de tudo no dia seguinte mesmo. Passei uma vassoura na casa, pois o barulho do aspirador me desintegraria. Tirei o pó. Joguei o edredon das dores na máquina de lavar. Tomei uma xícara de café bem forte e comi uma bolacha salgada. Joguei fora as frutas podres da fruteira e o leite azedo da geladeira.
 Ao abrir as panelas que estavam sobre o fogão, deparei com o estrogonofe e o arroz - nossa última refeição juntos antes de eu receber a notícia, duas horas após ele ter voltado para o escritório de pois do almoço ,cobertos de pelos verdes. O cheiro era tão terrível, que joguei fora as panelas também.

Pronto; primeiras urgências resolvidas.

Agora, a vida, essa urgência que é a mais urgente das coisas.








2 comentários:

  1. Ana...seu texto é bem escrito e interessante.Tem passagens que,creio,quase todos sentem e a tristeza pela perda aqui é relatada de maneira fiel,pois assim ficam as pessoas que se veem frente à morte de um ente querido com o qual conviviam.Prendeu-me a atenção até o ponto final.Bjs

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  2. Ana,estava lendo e pensando que grande escritora vc é!Uma linda e comovente história!Vou ler a segunda parte agora,bjs,

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