domingo, 10 de fevereiro de 2013

No Escuro da Floresta - Capítulo V







 Capítulo V

Os dias que se seguiram foram cinzentos e frios. Nossos pais trocavam apenas frases corriqueiras, mal se olhando nos olhos. Matilde não  apareceu durante quatro dias, e não tivemos permissão para irmos até a casa dela. Passávamos os dias com as amigas de Maria, mais velhas do que eu, e elas mal me notavam. Eu ficava num canto, ou seguia pelas ruas atrás delas, sem ser incluída nas conversas e brincadeiras. Finalmente, cansei-me e passei a ficar em casa, trancada em meu quarto. Sentia-me deprimida e solitária, e tinha muitas saudades de minha amiga. Um dia, sentei-me na área de serviço da casa e comecei a recordar-me da noite em que Matilde me contara seu “segredo.”
Eu Estava especialmente melancólica naquele dia. De repente, comecei a soluçar , e não conseguia me conter, por mais que tentasse. Mamãe veio correndo da cozinha e passou os braços à minha volta, como Matilde havia feito dias atrás.
-Minha querida, minha pequena... me desculpe... tenho sido uma péssima mãe, não é?
Ergui os olhos cheios de lágrimas para ela.
-Mãe, por que não posso mais ver Matilde?
- É só por um tempo, querida. Logo as férias vão terminar, e em duas semanas voltaremos para casa e tudo ficará bem novamente.
-Mas eu não quero ir para casa sem falar com ela! O que está acontecendo, mamãe? Diga a verdade! Eu sei de tudo, ouvi sua conversa com aquela mulher, mas é tudo mentira, tenho certeza!
- Você está falando de Virgínia? Você ouviu atrás da porta?
Senti-me corar, e baixei a cabeça.
- Ouvi, sim, mas foi sem querer. É que ela falava muito alto. Ela disse que Matilde é filha daquele tal Gregório, que saiu da cidade. Mas eu sei que isso é mentira. E se ela mentiu sobre isso, também mentiu quando disse que papai está namorando Carla.
De princípio, minha mãe não respondeu. Pareceu confusa ao perceber o quanto eu sabia daquela estória toda e o quanto eu entendia, realmente, o que estava acontecendo. De repente, ela levantou meu rosto em direção ao seu:
-Sua irmã sabe dessa estória também?
- Sabe, eu contei tudo a ela.
- Pois quando ela chegar, nós três vamos ter uma conversa. Prometo que não vou esconder nada de vocês. Mas... Você disse que sabe que Gregório não é pai de Matilde? Como sabe?
- Ela me contou tudo. Mas é um segredo...
- Noêmia, se eu vou contar meus segredos para você, significa que você terá de contar os seus a mim. Trato?
Contei à mamãe tudo o que tinha acontecido na noite em que eu e Matilde víramos as fadas voando na floresta. Contei que ela era metade fada, e que seu pai um dia viria buscá-la. Mamãe ouvia tudo com atenção, e parecia comovida. Mas assegurou-me que aquela era apenas uma estória que Carla provavelmente tinha inventado para que Matilde não sentisse falta de um pai. Disse que havia realmente alguns vaga-lumes enormes voando por ali, e que ela mesma já tinha visto alguns. E, é claro, que fadas não eram reais.
Mas eu tinha contado apenas metade do segredo. Não lhe dissera que o pai de Matilde viria buscá-la quando ela fizesse dez anos, dali a alguns meses. Desta maneira, eu sentia que não tinha violado totalmente nosso segredo.
No comecinho da noite,antes do jantar, papai estava assistindo Tv na sala. Maria já tinha chegado em casa, e mamãe chamou-nos para dar uma volta na estradinha de paralelos úmidos, que brilhavam. Era noite de lua cheia, e as copas das árvores brilhavam , iluminadas pelos raios de luar, e uma brisa fresca espalhava um delicioso cheiro de ciprestes e eucaliptos. Caminhávamos bem devagar, tendo mamãe no meio, segurando cada uma de nós pela mão. De repente ela parou, colocando as mãos nos nossos ombros e conduzindo-nos para uma pedra baixa e larga na beira da estrada, onde nos sentamos.
Maria me olhava com curiosidade, pois notara que mamãe iria nos dizer algo e que eu sabia exatamente do que se tratava. Pisquei para ela, sentindo-me muito madura e importante. Mamãe começou a falar.
- Bem, minhas queridas, quanto àquela mulher que esteve aqui, a Virgínia... vocês sabem exatamente o que ela veio me dizer. O que eu vou contar a vocês é exatamente e apenas toda a verdade. Eu segui o pai de vocês quando ele saiu de casa, e vi quando ele entrou na casa de Carla, naquela manhã que vocês sabem muito bem qual é. Esperei um pouco, e me aproximei da casa. Olhei pela janela da cozinha, onde os dois conversavam, sem deixar que eles me vissem.
Ela fez uma pausa, e Maria encorajou-a:
- E então, mamãe? O que você viu?
- Eles estavam apenas conversando. Fiquei observando mais alguns instantes, e a única coisa que vi foi quando seu pai começou a consertar um cano em baixo da pia, enquanto ela ficava no fogão preparando o almoço. Mas quero que saibam que o que eu fiz foi errado, e não desejo que vocês façam nada semelhante na vida de vocês, entenderam? É muito feio ouvir a conversa alheia.
Eu e Maria nos entreolhamos, nada convencidas pelo argumento de mamãe. Ela continuou:
- Em certo momento, enquanto eu espiava, fui surpreendida pela amiga de vocês, a Matilde, que perguntou bem alto o que eu estava fazendo ali, chamando a atenção de seu pai e de Carla para minha ridícula posição. Os dois pareceram muito chocados. Então, Carla pediu que Matilde nos deixasse sozinhos.
Lembrei-me de que naquele dia, Matilde aparecera em nossa casa e que tínhamos passado um dia maravilhoso juntas. Naquela época, eu mal pude compreender a maturidade de minha amiga ao não comentar, nem sequer mencionar que tinha visto nossa mãe espionando a sua casa. Mas hoje,quando me lembro de tudo, me vêm a compreensão de que tal atitude não passara apenas de maturidade, mas de uma força de caráter rara, e de um profundo respeito por nós, por nossos pais e principalmente, pela nossa amizade. É difícil acreditar que tal atitude tenha vindo de uma menininha de nove anos de idade.
Maria perguntou:
- E o que aconteceu depois?
- Eles me mandaram entrar, Carla preparou-nos um chá e eu contei a eles tudo o que tinha acontecido, a visita de Virgínia e a estória que ela me contara. Carla alegou que Virgínia era boa pessoa, mas tornara-se amarga após a morte de Camille e que a culpava por isso. Mas, o que ela não contara, foi que Camille roubara-lhe o noivo sem o menor escrúpulo, e que tudo que ela tinha feito fora tentar recuperar o homem que amava.
Eu respirei fundo. No céu, a lua emanava uma luz diáfana, levemente encoberta por um fiapo de nuvem que passava. Falei:
- Mas se foi só isso, por que você e papai mal estão se falando? Por que não posso mais visitar Matilde? E por que vocês não saem mais para as reuniões nas casas das pessoas, como antes?
- Você tem toda razão, Noêmia. Acho que eu estava... que eu estou com ciúmes. Carla é tão bonita, que parece absurdo que seu pai não tenha sentido nada por ela.
- Pois eu acho que você também é muito bonita, mamãe. Mais bonita do que Carla. E que se papai ama você, não importa que existam mulheres lindas no mundo.
De repente, ela nos abraçou chorando.
- Mais uma vez você tem razão, querida. Prometo que esta noite mesmo farei as pazes com seu pai.
- E com Carla? - perguntou Maria.
- Amanhã mesmo tratarei disso.
E foi assim que tudo voltou ao normal. Foi maravilhoso acordar na manhã seguinte e ouvir mamãe cantarolando novamente na cozinha, e ver que papai voltara a beijá-la. Naquela tarde, fomos todos juntos à casa de Carla, já que era domingo, e foi a maior alegria para nós quando as duas – Carla e mamãe – se abraçaram, sem nada dizerem, e todos saímos juntos para tomar sorvete.
Pedi à mamãe que não contasse nada à Carla sobre o segredo de Matilde, e ela piscou para mim, concordando. Deve ter pensado que não valia a pena estragar os sonhos de uma criança.
Para Matilde, tudo o que importava é que, finalmente, tinha minha companhia novamente. Jamais comentou o que tinha acontecido, e quando tentei, ela logo mudou de assunto, apontando uma enorme borboleta amarela que voava por ali, e prometendo, de olhos arregalados, que no dia seguinte me levaria a um lugar na floresta onde havia borboletas de todas as cores e tamanhos.
Mas à noite, não pude deixar de perguntar à mamãe se Matilde era realmente filha do tal Gregório. Ela encolheu os ombros, dizendo que Carla não confirmara nem negara a estória, e que ela não se sentira à vontade para fazer perguntas sobre a vida pessoal de sua amiga.
Naquelas férias eu aprendi a importância de ser discreta, lição que carreguei e carrego sempre para onde quer que eu vá, sem nunca interferir nos assuntos de outras pessoas ou fazer perguntas que possam deixar alguém embaraçado. E devo isso não somente à mamãe, mas à Matilde.

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