domingo, 10 de fevereiro de 2013

No Escuro da Floresta - Capítulo XIII






Capítulo XIII

No dia seguinte, fomos conversar com mamãe e papai sobre nossa volta à Vila Pequena. Cancelei todas as minhas consultas por tempo indeterminado, passando meus poucos pacientes para um colega, e pedi demissão da faculdade onde lecionava.
Uma semana depois, estávamos novamente os quatro – só que pessoas diferentes- parados em frente ao chalé. Mamãe, agora uma mulher de sessenta anos, e papai, um senhor aposentado de sessenta e sete anos. Eu e Maria, irmãs novamente, mas mulheres.
Foi-me dada a honra de abrir a porta da sala. Minhas mãos tremiam ao girar a chave, enquanto ecos de vozes , antes tão familiares, e agora, fantasmagóricas, ecoavam em minha mente.Num relance, vi o rosto triste de meu querido Narciso, exatamente como ele costumava ser. Percebi que há muitos anos não conseguia mais lembrar-me do rosto dele. Ouvi o riso alegre de Carla, a voz rouca e misteriosa de Matilde,  vi as pessoas que frequentavam nossa casa e com quem ficávamos até tarde no jardim, jogando conversa fora, comendo, bebendo e ouvindo música. As crianças daquela época eram agora adultos; jovens, tinham envelhecido, e velhos, morrido. Será?... Ali era Vila Pequena, e tudo era possível.
Entramos em silêncio, colocando nossas malas no chão. Tudo estava exatamente como havíamos deixado. Nem parecia que tínhamos saído.
Quando percebemos, todos estávamos chorando. Nos abraçamos e deixamo-nos ficar ali, no meio daquela sala tão querida, novamente uma família.
Na manhã seguinte, fomos todos juntos à cidade fazer compras. Tudo continuava como antes. Vi novamente a feira onde encontrara Carla e Matilde pela primeira vez. Na barraca de tomates estava “seu” João, agora encurvado pelo peso dos anos. Corri até ele, muda de espanto e alegria.
-Lembra de mim, “seu” João?
Ele apertou os olhos e me olhou com os olhos da memória, procurando por minha imagem de muitos anos atrás; finalmente sorriu e estendeu-me as mãos:
- Mas é claro! A pequena Noêmia!
Segurei suas mãos enrugadas através da barraca de tomates e apertei-as, mal acreditando que eram reais. Lágrimas vieram-me aos olhos, e ele imediatamente soube por que.
-Não chore, menina, não chore...
Nisso, papai e mamãe chegaram, seguidos de Maria. Num instante, estávamos rodeados de pessoas amigas, pois Vila Pequena era assim: amigos eram amigos. Não importava a passagem dos anos. Tivemos de ser reapresentados aos mais jovens. Ficamos sabendo dos que tinham deixado de viver desde que partíramos- entre eles, Cecília, a ex-proprietária de nosso chalé. Mas o mesmo clima de acolhimento de antes estava presente no ar, nos olhares, nos risos.
Fiquei surpreendida quando vi Dona Virgínia, pois ela parecia não ter envelhecido quase nada, a não ser pelos cabelos, ainda presos num coque como de costume, só que agora quase totalmente brancos. Mas conservava o porte altivo e a pele quase sem rugas.
Eu estava em casa.
Depois de algumas horas de conversas, fomos caminhar pela cidade. Foi um tanto melancólico , passar pela lojinha de Carla e ver que se transformara numa loja de ferragens; também foi triste saber que o Tom, da loja de tintas, falecera , e que seu filho assumira os negócios. Sua filha Júlia, uma das melhores amigas de Maria, tinha ido embora da cidade.
Mas Vila Pequena era cheia de surpresas, e apenas ficamos um pouco estupefatos quando vimos, caminhando pelas ruas apoiada em sua bengala, a Velha Anna. Ela nos olhou e nos cumprimentou com um leve aceno de cabeça. Parecia satisfeita em nos rever. Depois, seguiu seu caminho.
Fomos convidados para almoçar em casa de amigos de papai e mamãe. E também jantamos em casa de amigos. Todos estavam nos acolhendo tão bem que parecia que nunca tínhamos ido embora. Lembrei-me de quando voltáramos para o apartamento após retornarmos de Vila Pequena: os vizinhos continuaram a nos ignorar, como faziam antes de nos mudarmos, ou nos cumprimentavam friamente no elevador.
No outro dia, levantei-me mais cedo porque queria dar uma volta sozinha. Tinha vontade de estar novamente entre as árvores da floresta, e queria, principalmente, rever a cabana de Narciso. A presença dele em minha vida tinha sido tão breve e ao mesmo tempo, tão mágica que eu ainda me perguntava se ele não teria sido fruto de minha imaginação. Sua estória fantástica ainda dava voltas em minha cabeça quando eu pensava nela.
Enquanto caminhava, eu fingia que tinha ainda nove anos de idade, e que Matilde estava logo atrás de mim. Sua presença era tão forte, devido à minha imaginação, que em determinado momento eu realmente senti que havia alguém atrás de mim. Mas quando me virei, vi apenas pássaros num galho de árvore próximo. Uma névoa fina cobria parcialmente o solo da floresta. De repente, meu coração deu um pulo: o velho carvalho; a curva; a casa de Narciso estava próxima.
Com grande emoção, vislumbrei-a entre os galhos do carvalho. Corri, pois queria estar lá o mais rápido possível, para reviver as emoções dos momentos que passara lá – tanto na realidade como em sonho.
A casa estava abandonada. A porta da frente tinha sido arrombada, e encontrava-se entreaberta. Ninguém mais ia cuidar da cabana, e o mato crescera bastante. O telhado estava estragado em alguns lugares, e esquilos corriam e brincavam sobre ele. Senti como se fossem boas vindas. Bem devagar, subi as escadas da varanda e olhei para dentro. Sobre a mesa da sala ainda estava a caneca de malte. Empurrei a porta, que rangeu, e entrei.
Raios de sol entravam pelos buracos do telhado, e havia bastante palha seca pelo chão. Uma coruja dormia numa das vigas. Ao me ouvir entrar, arregalou os olhos e começou a fitar-me, desconfiada. Mas logo percebeu que eu não estava ali para importuná-la, e voltou a encolher-se e dormir. No pequeno quarto de dormir, ratos do campo faziam seus ninhos sobre o velho colchão de palha. Em um baú de madeira, estavam dobrados ainda os cobertores e suéteres com os quais as pessoas da cidade tinham presenteado Narciso quando ele “voltara”. Peguei um deles, sacudindo-o no ar. Aproximei-o de meu rosto e respirei fundo, tentando sentir o cheiro amadeirado que emanava de Narciso.
Foi quando senti um forte calafrio na espinha, e tive certeza de que não estava sozinha ali. Virei a cabeça para a direita bem devagar, e pude ver com o canto do olho uma luz azulada que desaparecera rapidamente antes que eu pudesse realmente olhar para ela. Ao mesmo tempo, a porta da entrada bateu com um estrondo, assustando não só a mim mas também as criaturinhas que habitavam o lugar. Mas não havia vento.
Corri até a porta e abri-a rapidamente, tentando ver quem ou o que a tinha fechado. Mas diante de mim, apenas a floresta silenciosa.
Estar ali era como voltar a ser criança novamente. Sentir a presença de coisas mágicas que eu não sabia explicar, e que deveriam permanecer sem explicação, como se fossem fatos normais e corriqueiros. Tudo aquilo era parte de Vila Pequena, e não deveria ser desvendado.
Sentei-me no degrau mais alto da varanda, tendo ainda nas mãos, o suéter de Narciso. Deixei que as lembranças se aproximassem sem lutar contra elas pela primeira vez em anos. E surpresa, compreendi que não doíam mais. Eram apenas lembranças. Coisas que eu tinha vivido, que fizeram parte de mim, mas que agora podiam ser doces. Por que eu determinara que deveriam ser tristes? Por que todos nós fugíramos delas, abrigando-nos em nossos castelos de concreto, quando poderíamos ter sido bem mais felizes se tivéssemos deixado que elas fizessem parte de nossas vidas, entrassem de vez em quando em nossas salas para um chá, e depois saíssem? Se tudo – passado, presente e futuro – acontecia simultaneamente no espaço quântico, por que chorar pelo que tinha sido, se ele continuava a ser em outro lugar que era, ao mesmo tempo, tão perto daqui?
Achei aqueles pensamentos loucos. Mas eram os que faziam sentido naquele momento.
Fiquei um bom tempo sentada ali, deixando que a paz daquele momento me envolvesse.
Então, resolvi que era hora de voltar para casa. Ao erguer-me, uma das tábuas soltas da escada levantou parcialmente com meu peso, rangendo e chamando minha atenção. Havia algo sob aquelas tábuas; o que seria? Parecia um livro. Um livro de capa vermelho-escura, fechado com um cadeado.
Agachei-me e levantei a tábua com uma das mãos.
O livro parecia inteiro, apesar de coberto de poeira. A dura capa de couro pintada , que cobria inclusive as lombadas, pareciam ter  sido capaz de protegê-lo dos efeitos da umidade.
Mas eu não conseguiria abrir o cadeado sem uma chave de fenda ou um alicate. Comecei a virar o livro de um lado para o outro nas mãos, tentando ver se havia alguma brecha por onde eu pudesse, quem sabe, enfiar a ponta da chave e forçar a abertura.
Mal pude acreditar, e meu coração quase saiu pela boca ao perceber, contra a luz, um nome arranhado no couro vermelho: “Matilde.”
Aquele era o diário de Matilde! E eu voltara àquela cidade anos depois para descobri-lo! Senti que lágrimas grossas e quentes desciam pelo meu rosto. A emoção de segurar aquele diário era tão forte que eu mal conseguia respirar, o ar sendo bruscamente levado para dentro e para fora de meu corpo em golfadas entrecortadas pelo choro. Senti como se ela o tivesse guardado ali para que eu o encontrasse.
Após recuperar-me, abracei o diário e fui andando de volta para casa. Mal enxergava a paisagem à minha volta, pois só tinha em mente abrir o diário.
Quando cheguei em casa havia um bilhete de mamãe sobre a mesa, dizendo que todos tinham ido a um piquenique – era domingo- próximo ao riacho, e que eu deveria juntar-me a eles assim que pudesse. Mas eu nem pensava em comer ou socializar-me naquela hora. Achei até muito bom que não houvesse ninguém em casa, assim, eu poderia ficar sozinha com o diário de Matilde.
Fui até a área de serviço e vasculhei as gavetas da velha mesa de madeira em busca de uma chave de fenda ou qualquer coisa pontuda. Finalmente, achei o que precisava.
Inseri a ponta da chave de fenda e forcei o cadeado. Ele estava enferrujado, e não era muito forte, tratando-se de um pequeno cadeado de ferro. Na segunda tentativa, ele se quebrou com um leve estalo e caiu no chão.
Abri cuidadosamente as páginas, que estavam um pouco úmidas e colavam-se umas às outras, mas se as deixasse ao sol por alguns minutos logo seria possível folheá-las sem correr o risco de rasgá-las. Não queria perder aquela preciosidade. Eu sabia que não deveria haver muita coisa no diário de uma menina de cidade de interior, mas tratando-se de Matilde...
Sentei-me no sofá da sala com o diário e uma xícara de café. Precisava controlar minha ansiedade. Respirei fundo e comecei a leitura.
O diário começara a ser escrito exatos seis meses antes de nossa chegada em Vila Pequena. Podia reconhecer a caligrafia esticada, levemente inclinada para a esquerda, de minha amiga . O caminhar impreciso da caligrafia de uma criança, mas ao mesmo tempo, de alguém que já definira sua personalidade.
Começava falando de coisas corriqueiras da escola. Provas, amigos, professores. O aniversário de uma das crianças. Alguns sonhos. Mencionava a visão de fadas. Mas como se elas fossem algo corriqueiro, que não merecesse muita atenção. A quem lesse, dava a impressão de tratarem-se das fantasias de uma menina, mas não para alguém que tivesse convivido com ela como eu, e visto, como ela viu, as coisas que eu vi. Eu sabia que Matilde não mentia, se não para os outros, muito menos para si mesma.
Havia também alguns desenhos, de paisagens, flores, criaturas encantadas. Ela não era tão habilidosa quanto Carla. Olhando suas figuras,achei que, mesmo se tivesse tido a oportunidade de aprender, Matilde jamais teria conseguido desenhar ou pintar bem.
Pulei algumas páginas, até chegar no dia em que nos conhecemos. Ela falava de nós com carinho, e dizia que eu seria sua grande amiga, mas que “a outra” (Maria) tinha o nariz meio-empinado. Ri, ao imaginar Matilde dizendo aquilo.
Continuei lendo, até chegar nos momentos em que ela contava sobre nossos passeios e brincadeiras – coisas que eu nem sequer me lembrava mais , e que tinham sido ressuscitadas através das narrativas do diário- com todos os detalhes.
Ri e chorei, recordando nossas festinhas, passeios, brincadeiras e incurssões na floresta. Li o que ela escrevera sobre a noite em que me contara seu segredo.
Avidamente, continuei  virando as páginas, até que cheguei ao seguinte trecho, escrito alguns dias após aquela noite, a 'noite do segrêdo':
 “hoje acabei escutando a conversa de mamãe e Pedro sem querer, enquanto eles estavam na cozinha e eu , sentada sob a janela. Eles não sabiam que eu estava ali, do lado de fora. Ele tinha ido lá em casa fazer um conserto, e enquanto ele trabalhava eles conversavam, e descobri que “seu” Pedro e mamãe já se conheciam. Quero dizer, antes de ele vir morar em Vila Pequena com a sua família. Eles falavam de algo que tinha acontecido entre eles uns dez anos antes. Tinham sido namorados, por pouco tempo. Não sei como, já que se Maria tem doze anos, então isso foi depois que ele e Lina se casaram. Maria tinha dois anos. Ele perguntava a mamãe uma coisa muito estranha: se ele era meu pai. Eu quase dei risada, já que mamãe sempre disse que eu sou filha de um 'fado'.  Mas ela pediu para ele ir embora, não respondeu, quase colocou ele para fora de casa. Disse que se ele insistisse no assunto, ela iria embora comigo para sempre. Saí correndo quando percebi que eles iam sair de casa, por isso não consegui ouvir mais.”
Gelei, literalmente, e deixei o diário cair sobre o tapete. Ao abaixar-me para pegá-lo, acabei derramando o café. Aquilo poderia significar que Matilde era nossa irmã?
Depois de limpar tudo,  continuei a leitura.
Num trecho mais adiante, ela escrevera sobre a tarde em que Virgínia nos visitara. Disse ter ido embora porque sabia que Virgínia não gostava de sua mãe. Também contou, em seu diário, que tinha visto mamãe parada do lado de fora da casa enquanto Carla e papai estavam na cozinha, então ela correu até mamãe falando bem alto, “antes que ela escutasse alguma maluquice.”
Depois, ela mencionava a  volta de Narciso, a festa de aniversário de Maria, sua intenção de ir embora. Não escrevera nada sobre Carla ir junto com ela, mas escreveu muitas páginas sobre como ela achava que seria seu encontro com sua família de   fadas. Tinha a imaginação muito fértil.
Algumas páginas depois, ela falava sobre uma briga que tinha tido com Carla. Achei estranho, pois ela jamais mencionara aquela briga comigo. Descobri que Matilde podia ser uma menina bastante reservada: “ Hoje eu e mamãe brigamos. Cheguei em casa e vi “seu” Pedro aqui de novo, e eu não gostei. Não sei bem por que, mas eu disse para ela, depois que ele foi embora, que se ela não parasse de recebê-lo, eu ia fugir para sempre. Acho que é errado, o marido de outra mulher visitar minha mãe. Ela disse que não tinha que dar explicações a mim. Acho que vou ter mesmo que fugir.” E, no mesmo dia, à noite: “ mamãe me pediu desculpas. Disse que eu não tenho que me preocupar, pois logo vamos as duas embora daqui. Acho que ela vai comigo, e  então nós – eu , ela e papai – poderemos ser uma família!”
Chorei ao ler aquilo. Matilde realmente acreditava em sua fantasia de ser metade fada. Mas eu, agora uma mulher adulta, compreendi que tudo tinha sido inventado por Carla apenas para colorir um pouco a vida de sua filha.Só que ela não esperava que a fantasia fosse solidificar-se tanto no coração de Matilde. Mas qual seria o terrível passado que Carla tentou esconder da filha? Continuei lendo.

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