domingo, 10 de fevereiro de 2013

No Escuro da Floresta - Final







FINAL

Senti um choque percorrer todo o meu corpo. Eu olhava para ele, esperando que ele desmentisse aquele absurdo, e tive uma crise de riso. Não conseguia parar de rir. De repente, o riso foi se transformando em um choro convulsivo, e abracei-o.
- Pai, isso não é verdade, não pode ser...
- Achamos uma incrível coincidência que Maria tivesse voltado para o Brasil justamente agora, e que desejasse voltar à Vila Pequena. Porque eu e sua mãe já tínhamos decidido voltar, e íamos comunicar a vocês. Quando vocês nos convidaram.
- Mas... há quanto tempo vocês sabem disso?
- Há mais ou menos dois meses.
-Quanto tempo?...
- Segundo meu cardiologista, talvez seis meses. Um ano, quem sabe. Ou a qualquer momento.
       Pensei em tudo que meu pai estava dizendo; também eu, a a qualquer momento, ou daqui a seis     meses, ou em um ano, poderia estar morta. Saber quando vamos morrer não faz tanta diferença assim. Papai tinha sessenta e sete anos, e tinha uma doença grave. Mesmo assim, pessoas muito mais jovens e totalmente saudáveis morriam a cada segundo. Acalmei-me.
-         Maria já sabe?
-         Não, mas vou contar a ela hoje mesmo.
Naquele momento, nossos olhares se cruzaram como há muito tempo não acontecia, e senti-me muito próxima de meu pai.
Em nossa casa, após o jantar, papai e mamãe, de mãos dadas, contaram tudo à Maria. Sua reação foi exatamente a esperada: falou de especialistas que poderíamos procurar no exterior, e de tratamentos caríssimos que seu dinheiro poderia pagar. Mas papai convenceu-a de que já tinha consultado quatro dos melhores especialistas e que os  diagnósticos tinha sido unânimes, e que ele desejava ficar em Vila Pequena até que sua hora chegasse.
Ela chorou, revoltou-se, esbravejou por mais de uma hora. Até que papai se levantou do lugar onde estava e abriu os braços para ela, dizendo: “querida, o melhor que você pode fazer por mim neste momento, é ficar ao meu lado.” E Maria acomodou-se entre os braços dele.
Então, papai olhou para mim, e percebendo que Maria estava mais calma, pediu-nos que sentássemos novamente. O tempo todo ele me lançava olhares suplicantes, e compreendi que ele precisava de ajuda para contar a elas o que nós dois já sabíamos. Resolvi falar sobre o diário de Matilde, e ele completou a estória. Estávamos ambos apreensivos com a possível reação de mamãe, mas ela apenas segurou a mão dele por sobre a mesa, dizendo que estava tudo bem, e que o passado deveria permanecer onde estava: no passado. Além disso, afirmou que sempre desconfiara de alguma relação entre papai e Carla no passado, mas que mesmo assim, sabia que ambos eram pessoas de bem e que no momento em que se conheceram, Carla tornara-se sua amiga. Só não imaginava que Matilde fosse filha deles.
Passamos a noite conversando na cozinha, tomando chá e comendo biscoitos de chocolate caseiros que mamãe preparara. Éramos uma família unida novamente. Aquilo deixava-me segura.
Mas eu ainda estava intrigada: Matilde seria mesmo nossa irmã? Eu precisava de provas, mas não tinha como encontrá-las.
A casa de Carla permanecera fechada desde que ela morrera. Ninguém fora arrumar suas coisas, já que ela não tinha nenhum parente vivo conhecido. As pessoas de Vila Pequena eram sempre muito supersticiosas quanto à casas abandonadas de pessoas falecidas que eram localizadas junto à floresta, pois segundo as lendas locais, estas casas passavam a pertencer aos reinos elementais, e qualquer invasão poderia ser mal-interpretada. Portanto, a resposta poderia ainda estar lá; assim como Matilde tinha escrito um diário, Carla poderia muito bem ter escrito um.
Na manhã seguinte bem cedo, antes que minha familia acordasse, decidi tirar tudo a limpo.
A casa de Carla não era longe, e fui à pé. A névoa da manhã ainda não tinha se dissolvido, mas o céu estava claro e prometia um lindo dia. Após alguns minutos de caminhada, avistei a casa, agora dilapidada. Um sentimento muito grande de saudade misturada à culpa invadiu-me, e quase desisti de meu intento achando que estava invadindo a privacidade de Matilde e Carla. Será que, se a situação fosse inversa, Matilde teria invadido minha casa e remexido em minhas coisas? Ou teria respeitado meu passado? Mas eu não era como ela. Jamais seria.
Forcei a porta da frente, mas estava trancada. Percorri as janelas uma a uma, tentando forçar sua abertura, mas a madeira , apesar da pintura descascada, permanecia sólida, e as trancas de ferro estavam inalteradas. Dei a volta na casa, indo para na porta dos fundos, que era de ferro e vidro.Olhei à minha volta, e avistando uma grande pedra no chão, arremessei-a contra a porta. O vidro espatifou-se. Coloquei a mão por dentro com cuidado, e para meu alívio, vi que a porta estava trancada por dentro, mas que a chave estava na fechadura. Em poucos segundos, eu estava na cozinha de Carla.
As lembranças foram muito fortes então. Tive que sentar-me e chorar, para então prosseguir. Não sabia se estava fazendo a coisa certa, e desejei fortemente que alguém ou alguma coisa me enviasse um sinal mostrando-me se eu deveria ou não prosseguir.
Foi quando ouvi um ruído suave, como de um lápis caindo ao chão. Vinha do quarto de Matilde. Um arrepio percorreu-me a espinha, e meu coração batia tão forte que eu consegui ouvir-lhe as batidas. Tomei coragem e fui caminhando vagarosamente, afastando teias de aranha e pisando hesitantemente no chão empoeirado que antes tinha sido tão limpo. Percebi que as paredes estavam totalmente mofadas e, ao chegar na porta do quarto de Matilde, lamentei pelas lindas pinturas das paredes, que agora estavam quase apagadas.
De repente, algo se mexeu entre as cobertas da cama; assustei-me e senti meu corpo gelar, mas permaneci onde estava, e percebi que havia o contorno de um corpo por sob as cobertas empoeiradas. Soltei um grito ao perceber que uma mão havia saído de sob as cobertas, e vagarosamente, puxava-as a fim de revelar um rosto. Eu não sabia se estava pronta para ver o que estava para se mostrar a mim.
Não sei se devido ao medo ou à curiosidade, permaneci onde estava. Para minha surpresa, um rosto de criança surgiu por entre as cobertas sujas. Imagino minha cara de medo e surpresa ao olhar para aquela criança, mas ela – era uma menina – apenas sorriu como se estivesse esperando por mim, por aquele momento. Murmurei:
- Quem é você, e o que está fazendo aqui?
Ela afastou as cobertas e se levantou, ficando parada diante de mim.Disse:
- Não me reconhece?
Boquiaberta, percorri com os olhos o cabelo negro, cortado reto. Apesar da penumbra, pude perceber os olhos verdes e o jeito confiante de ser. Eu quis correr até ela e tomá-la em meus braços, eu ria e chorava ao mesmo tempo ao reconhecer Matilde, após tantos anos, e ela era exatamente como no dia em que nos conhecemos. Eu, agora uma mulher adulta e madura, estava diante da criatura mais fascinante que conhecera em toda a minha vida. Fiz menção de aproximar-me, mas ela ergueu a mão, dizendo:
- Por favor, fique onde está. Não chegue mais perto, ou eu desaparecerei. Sabe, não foi fácil me materializar deste jeito para que você pudesse me ver. E não tenho muito tempo. A atmosfera daqui é pesada demais para mim.
- Matilde, você está viva! Mas como?!...
- Ssshh... não faça perguntas. Só ouça o que eu tenho a lhe dizer.
Ela ergueu a mão novamente, e a janela do quarto se abriu, deixando entrar a luz da manhã e também um pouco de neblina. Senti um calafrio.
Como numa tela de cinema, uma estranha e magnífica paisagem descortinou-se na moldura da janela aberta. Eu via a mim mesma e também muitas outras pessoas, algumas conhecidas, outras não; eu via um lugar maravilhoso, onde as pessoas iam em busca de cura para seus males espirituais e emocionais. Era estranho, ver a mim mesma projetada numa tela, executando tarefas que eu nunca executara antes, num lugar totalmente desconhecido.
Tratava-se de um prédio branco de dois andares, com uma torre arredondada ao sul. As janelas eram amplas, e a entrada para o prédio dava-se através de uma varanda com colunas brancas, por onde subiam roseiras cor-de-chá. À volta do prédio, um maravilhoso gramado estendia-se, e pessoas passeavam por ele sob o sol da manhã. Algumas descansavam sob as árvores, sentadas em cadeiras de vime, outras balançavam-se em redes de algodão crú. Eu me via sentada em meio a um grupo de pessoas, e parecia estar dando uma palestra.
- Noêmia, você se esqueceu de tudo o que aprendeu aqui. Deixou-se levar novamente por seu mundo materialista e limitado. Não cumpriu sua missão, não levou o que aprendeu para transmitir a outras pessoas.
-Eu tentei, Matilde. Mas ninguém quis me ouvir.
- Não é verdade. O importante não é quantas pessoas lhe ouçam, pois mesmo que você fale à milhões e apenas uma meia dúzia escute e compreenda, valerá à pena. Você precisa continuar o que começou. Você tem o dever de ajudar a fazer deste mundo um lugar melhor, antes que seja tarde. É preciso que as pessoas acreditem na magia para que ela continue existindo. Vila Pequena é um lugar especial. Aqui a magia é parte do dia a dia das pessoas. A vinda de vocês para cá não foi por um acaso. O encontro de seu pai e minha mãe, que me fizeram nascer, não foi por um acaso. Eles foram escolhidos. Vocês foram escolhidos.
- Mas meu pai... nosso pai agora está muito doente, e está morrendo...
- Bem, todos nós morremos um dia. Mas você sabe que a morte é apenas uma passagem. Ninguém deixa de existir. Ele vai continuar existindo em nossa dimensão, e será um mensageiro entre o mundo de vocês e o nosso. E você, Noêmia, será o contato.
Mal pude crer no que estava acontecendo.
- Você, Noêmia, vai ter um filho. Este menino tomará seu lugar quando for sua hora de vir para onde estou. Então, seu pai poderá evoluir para uma outra dimensão, e você tomará o seu lugar.
- Mas como vou ter um filho se nem sequer tenho um marido, um namorado?
-Daqui a pouco, quando você sair daqui, terá uma linda surpresa. Mas não me interrompa mais, deixe-me falar.
Matilde começou a ficar transparente. Eu podia ver a parede por trás dela.
- Você vai ficar em Vila Pequena, e vai fundar a Vila Holística. Lina e Maria podem ajudar. Lina com seu trabalho, e Maria, com seu dinheiro. Seu trabalho será receber as pessoas , ouvir seus problemas e decidir quais delas estão prontas para conhecer a verdade. Verá que não serão muitas, mas mesmo que consiga encontrar apenas duas ou três, será o suficiente.
- A Vila Holística será um tipo de Clínica de terapia?
-Sim. Você vai ajudar a aliviar as dores e sofrimentos humanos. Também vai ensinar as pessoas a serem responsáveis por seus próprios atos e pelo que acontece em suas vidas. Elas tomarão consciência de que tudo o que as cerca é fruto de seus pensamentos;  assim, mudando a direção deles,  mudarão também o mundo que as cerca. Isso se chama consciência global.
Muitas vezes você terá a impressão de que todo o seu trabalho está sendo inútil, mas nestas horas, você pode estar certa de que isso não é verdade. Qualquer resultado, mesmo que pequeno, contribuirá para o resultado final.
Existem outros lugares no mundo como Vila Pequena, onde está sendo feito o mesmo trabalho. Mas o fruto deste trabalho só será conhecido daqui há muitos e muitos anos. Mesmo assim, se ele não for realizado, será o fim do planeta, o fim da raça humana. No final, todos vocês se encontrarão e recomeçarão um novo planeta. Será como uma flor emergindo do caos. Agora vá.
Eu estava totalmente atordoada com tudo que vira e ouvira. Tinha muitas perguntas a fazer, minha cabeça estava cheia de dúvidas. Mas Matilde simplesmente desapareceu, e a projeção na janela também sumiu.
Ainda meio-tonta, saí da casa e segui pela lateral da casa. Parecia que estava em uma espécie de transe.
Ao erguer os olhos, Narciso estava diante de mim.
Instintivamente,  cobri a boca com as mãos para evitar um grito. Pensei que talvez ele também fosse uma materialização, como Matilde, mas Narciso parecia tão sólido quanto eu, e me sorria. Ver novamente aqueles olhos azuis, naquele rosto maravilhoso, fez minhas pernas tremerem. Ele apareceu-me jovem, como quando nos conhecemos. Rapidamente, recapitulei muitas das cenas que vivera com ele, inclusive uma na qual eu pedia que ele esperasse que eu crescesse para casar-se comigo.
Ele parecia partilhar dos mesmos pensamentos. Estendeu-me as mãos sorrindo, e disse:
- Olá, menininha.
Não pude responder, apenas deixei-me mergulhar naqueles braços que se estendiam para mim, e fechei os olhos. Tudo parecia fazer sentido, tudo se encaixava, e eu me sentia como uma peregrina que, após uma longa e cansativa viagem, estava em casa novamente.
Quando abri os olhos, nós estávamos em um quarto espaçoso, cheio de vasos de plantas muito bonitas e floridas. Cortinas azuis esvoaçavam nas janelas abertas, de onde entrava uma brisa morna e perfumada. O chão de mármore rosado era coberto de folhas secas, e bem no meio do quarto, estava uma grande cama, e ao lado desta, uma mesa onde, numa bandeja, encontrava-se uma jarra, duas taças, algumas frutas , pão e doces.
Uma música suave começou a tocar, e deixei-me ser conduzida por ele até a cama. Nós nos olhávamos o tempo todo, e cada parte de meu corpo que era tocada por ele vibrava intensamente. Ele aproximou seu rosto do meu, e senti sua respiração inebriante segundos antes de nossos lábios se tocarem. Senti a maciez de seu rosto, e percorri com os dedos a textura de seus cabelos.
Nós quase não falávamos, pois não havia muito a se dizer. Além disso, tudo o que queríamos que o outro soubesse era transmitido através do pensamento.
Ficamos muito tempo nos abraçando, nos beijando e nos tocando docemente. Até que ele finalmente começou a despir meu vestido, e eu , atrevida, desamarrei o cinto de sua túnica, e ambos deixamos que nossos corpos nus se tocassem pela primeira vez.
O que se seguiu é inesquecível e impossível de ser expresso em palavras. Fizemos amor repetidamente, e a cada vez o prazer e a emoção eram maiores.
Finalmente, ficamos perdidos nos braços um do outro. O sono se aproximava, mas eu temia que ele pudesse desaparecer caso eu dormisse. Agarrada ao seu tronco, ergui meus olhos para o seu rosto, e dei com os olhos dele presos nos meus.
Compreendi que aquela seria a única vez. Adormeci, sabendo que nunca mais me entregaria a outro homem.
Ele pareceu perceber minha tristeza, e durante meu sono, procurou-me novamente e disse que nós estávamos destinados um ao outro. Reencontrarmo-nos novamente estava em nossos destinos, mesmo que isso viesse a acontecer depois de algumas vidas. E me fez lembrar que o tempo é um conceito muito abstrato e variável. O que para  este mundo onde vivemos parecem ser anos, na verdade, não passam de alguns dias no coração do Universo.
Papai morreu dois meses depois.
Logo depois do funeral, sentadas à mesa da cozinha, resolvi fazer um café forte e contar à mamãe e Maria o que tinha acontecido.
Contei-lhes também sobre minha gravidez.
Elas ouviam tudo com lágrimas de dor e alegria nos olhos, e tomamos nossas xícaras de café decididas a recomeçar nossas vidas juntas, em Vila Pequena.
Hoje, sentada à minha escrivaninha na Vila Holística, vejo meu filho Jonas, com três anos de idade, brincar sobre uma esteira no chão, enquanto revivo toda a nossa história desde que chegamos aqui. Sinto que estamos cumprindo nossa missão, mas ainda existe muito a ser feito.
Espero que Matilde esteja certa, e que ainda haja tempo.




                                                                             Y


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