domingo, 10 de fevereiro de 2013

No Escuro da Floresta - Capítulo X





Capítulo X

 Acordei três dias depois numa cama de hospital, para deparar com os rostos aflitos de meu pai e   minha mãe. Ambos choravam abraçados, e pareciam felizes por eu ter acordado.
Sentia-me bem melhor. A febre baixara, a garganta estava apenas um pouco ressecada. O médico entrou no quarto, examinou-me e disse-me sorrindo que, mais alguns dias, eu estaria em minha casa novamente. Mas antes precisava fazer alguns exames para ver se descobriam a causa de meu “surto”. Mas, na verdade, mesmo após vários exames, ninguém conseguiu chegar a uma conclusão sobre o quê eu tivera. Ficou entendido que eu tinha tido uma “gripe muito forte”, mas que não chegara a ser pneumonia, e anos depois, quando se referiam àquele meu episódio,  falavam sobre “a doença de Noêmia.”
Senti-me muito importante naquela semana. Meus colegas de colégio foram visitar-me. Levaram frutas e doces. Até mesmo Julia, a professora. E Virgínia, Sr. João, Carla, Matilde,  todos os nossos vizinhos passaram por lá e ficaram um pouco, nem que por alguns minutos. Os colegas de Matilde também foram, e parece que me enxergavam de verdade pela primeira vez. E foi através de um deles que eu fiquei sabendo do que tinha acontecido.
Estávamos – eu, Matilde, Maria e Glauco, seu amigo- conversando no quarto de hospital. Eu estava sentada na cama, jogando memória com eles, quando Matilde virou, entre as cartas, a figura de um velho. Prontamente – ela tinha excelente memória -  Matilde pegou a carta correspondente. Já ia continuar jogando, quando Glauco Disse: “ Nossa! Até parece a cara do velho Narciso.”
Maria e Matilde fuzilaram-no com o olhar, e ele murmurou: “oops...” Minha cabeça deu um giro.
- O que ele quer dizer com “Velho Narciso?”
Elas se entreolharam. Eu Sacudi o lençol e fiz todas as cartas voarem pelos ares: “Respondam!”
Elas pareceram confusas. Maria começou a falar, enquanto Matilde praticamente arrastava Glauco porta afora.
- Narciso amanheceu velho.
- Como assim? Ele disse que voltaria para as fadas... ele não envelheceu...
- Ninguém sabe. Ele simplesmente envelheceu todos esses anos de uma vez só. Do dia para a noite.
- E onde ele está agora, Maria?
Eu estava chorando, e Maria aproximou-se, passando o braço à minha volta.
- Ele está em sua casa. Mas parece um velho.Ele é um velho agora. Nem trabalha mais com papai.
- Quero ver Narciso.
- Você não pode sair daqui agora.
- Mas eu quero!
- Calma... vou pedir a ele que venha aqui. Mas não sei se ele vai concordar.
Naquele momento, papai e mamãe entraram no quarto. Estancaram à porta, ao perceberem que eu já sabia de tudo. Papai disse:
- Não se preocupe, querida. Eu trarei Narciso aqui. Mas você tem certeza que está preparada para vê-lo?
- Sim, eu estou.
E horas depois, entrava em meu quarto, trazido por papai, um velho senhor de cabelos brancos. Tinha a cabeça inclinada para o chão, mas quando ele parou diante de minha cama e ergueu os olhos para mim, as rugas que se formaram nos cantos de seus olhos quando ele sorriu não deixaram nenhuma dúvida: era Narciso.
- Mas por que isso aconteceu, Narciso?
- Ah, menininha... o tempo passa mais rápido por aqui.
-Mas você vai voltar para seu povo, do mesmo jeito?
- Eles não me aceitarão mais. Só os jovens podem ir com eles.
- Mas as fadas não têm poderes que podem fazer você ficar jovem de novo?
Ele balançou a cabeça negativamente. Segurou minha mão por cima do lençol, apertando-a de leve.
- Espero que você fique boa logo.
Foi a última vez que vi meu amigo Narciso. Eu sabia que ele tinha tido alguma coisa a ver – tudo a ver- com a minha cura. 
Dias depois, quando saí do hospital, soube que ele tirara a própria vida.Sua casa foi trancada para sempre, e jogaram a chave dentro do lago.
Nunca mais tive coragem de voltar lá.
     Eu nunca ouvira falar em suicídio antes, e nem conseguia conceber a idéia de uma pessoa sentir-         se tão miseravelmente triste ou desesperada a ponto de matar a si própria. Fiquei muitos dias taciturna e solitária, e nem mesmo Matilde conseguia chegar até mim. Mamãe levou-me a um médico, que assegurou-lhe que eu estava bem de saúde, mas que o trauma ainda demoraria um pouco para passar. Aconselhou-a a levar-me a um psicólogo.
Mas uma noite, eu tive um sonho.
Era um lindo dia de sol, e eu caminhava pela floresta. Estava feliz, e ia em direção à casa de Narciso. Sabia que ele esperava por mim. Quando cheguei lá, ele veio abrir-me a porta. Estava jovem novamente, e passamos o dia conversando. Não consigo me lembrar sobre o que falamos, mas a presença dele era muito forte e palpável, e senti-me muito segura ao seu lado. Ele estava tranquilo e feliz como eu nunca vira antes. Se eu o tocasse, podia sentir o calor de sua pele, e se eu respirasse fundo, sentia o cheiro de  madeira em suas mãos. O som de sua voz era alto e claro, e tudo era muito real: o sol infiltrando-se pelas copas das árvores, os pássaros coloridos voando e pousando de galho em galho, o barulho do riacho que passava por ali, o calor do dia.
No final da tarde, ele preparou café – o cheiro do café era forte, e invadia toda a cabana – e nos sentamos nos degraus da varanda para tomar café em nossas canecas de malte e dividir uma fatia de bolo que estava sobre a mesa.
Eu queria ficar ali para sempre.
Mas ele disse que estava na hora de eu ir. Abraçou-me forte , e levou-me até a saída da floresta, em direção à estrada. Fui caminhando para minha casa. Já tinha dado alguns passos, quando virei-me para acenar-lhe. Mas vi somente a clareira vazia: Narciso e a cabana tinham desaparecido.
Mas acordei sentindo-me muito tranquila. Surpreendi a todos ao sentar-me para tomar o café da manhã, dizendo que queria ir à escola. Ninguém me contestou, ao contrário: parecia que eu estava tirando um enorme peso dos ombros de todo mundo.
Jamais contei a ninguém sobre meu sonho. Era um segredo só meu e de Narciso.
Dias depois, era véspera do aniversário de Matilde. A velha apreensão que me dominava tinha ido embora, já que ela me garantira que tinha desistido de ir embora com seu “pai”. Carla confirmara , mas não diante de Matilde, que a história toda era apenas faz-de-conta. Quando perguntei a papai o que ele achava que tinha visto naquela noite na floresta, ele mostrou-se pensativo e disse que talvez tivesse sido sua imaginação. Não tinha certeza, e achava melhor que todos esquecêssemos a história toda. Tentei retrucar, mencionando o que tinha acontecido a Narciso, mas ele encolheu os ombros e me disse que aquilo tudo era um mistério, e que assim permaneceria.
A festa de Matilde foi tão bonita quanto a de Maria.Senti muita falta de Narciso, mas procurei disfarçar para que minha amiga não ficasse triste, e brinquei, dancei e cantei como as outras pessoas. Mas só eu sabia que havia um buraco em meu coração. Era saudade.
Logo veio também o meu aniversário, seguido pelo de mamãe, Carla e papai. Um ano se passou. E mais um, e ainda outro. Tivemos três Natais maravilhosos, pois em Vila Pequena o Natal não era comemorado apenas em família; fazia-se uma grande festa na praça na noite do dia 24, e se chovesse, a festa era transferida para o ginásio da escola. Tudo parecia correr normalmente: éramos felizes, tínhamos muitos amigos, víamos as luzes na floresta ( mas nada comentávamos), e Matilde nunca mais falou em ir embora. Nossa amizade solidificara-se ainda mais, e estávamos quase sempre juntas. Mas Matilde tinha uma sabedoria nata, e devido à essa sabedoria, nossa amizade era como era: ela jamais invadia minha privacidade, nunca entrava sem bater, não ficava dentro de minha casa o dia todo – suas visitas eram feitas duas ou três vezes por semana, e eu agia da mesma forma.
 A vida corria fácil, tranquila, cheia de paz.
Maria estava namorando. Julio era um menino do último ano, de dezoito anos. Simpático, prestativo e alegre, era , como minha mãe dizia, “o genro que toda sogra pediu.”
Aos dezesseis anos,Maria transformara-se numa beldade de cabelos longos e olhos castanhos penetrantes. Todos comentavam o quanto ela estava realmente bonita, e choviam convites para sair.
Eu, aos doze anos de idade, também já mostrava traços de mulher.Os seios apontavam sob a camiseta , e logo tive que começar a usar sutiã. Meu rosto adquirira um formato mais maduro, e meus cabelos louros escureceram um pouco e os fios tornaram-se mais pesados.
Matilde parecia ter esticado, literalmente. Tornara-se muito alta e magra, justamente como Carla. Deixou os cabelos negros crescerem, e os usava, como a mãe, presos num rabo de cavalo a maior parte do tempo. Mas, quando os soltava, eles caíam como uma cascata negra sobre suas costas. Tinha os cabelos mais fortes, brilhantes e bonitos que alguém podia ter.
Carla tivera alguns “namoricos”. Homens que estavam de passagem pela cidade, fornecedores ou turistas. Mas nada durara muito tempo, e apesar de ser uma linda mulher, ela mesma dizia que tinha se acostumado a viver sozinha, e que além disso, tinha uma filha adolescente, o que lhe ocupava a mente o tempo quase todo.
O livro de mamãe finalmente saiu, e ela e papai viajaram para o lançamento. Apesar de estarmos em férias escolares, eu e Maria ficamos em casa, assistidas de vez em quando por Carla.Achamos melhor assim, já que a idéia de voltar ao nosso antigo apartamento na rua movimentada e poluída não nos agradava. Nem mesmo a oportunidade de rever velhos amigos foi argumento suficiente para que mamãe nos convencesse a ir. E achamos todos que, no final das contas, ela estaria mesmo muito ocupada para nos dar atenção.
Na primeira noite, Maria convidou uma amiga para passar a noite em nossa casa. Aproveitei para ligar para Matilde e pedir para passar a noite com ela.
Estava à caminho de sua casa, quando de repente senti uma vontade muito grande de voltar à casa de Narciso. Ele era agora uma doce lembrança, e eu mal conseguia discernir seu rosto. Sempre que pensava nele – e essas ocasiões foram se tornando cada vez mais espaçadas -  seus traços me vinham imprecisos, envoltos em fumaça. Mamãe dissera que era perfeitamente normal que esquecêssemos o rosto de alguém que não víamos há muito tempo.
Bem, naquele final de tarde, enquanto caminhava para a casa de Matilde, dei meia-volta de repente e entrei na floresta.
Começava a escurecer. No horizonte uma lua redonda começava a aparecer. O cheiro de mato  fresco trazia sensações agradáveis. Eu fazia de conta que tudo era normal, ou seja, que eu chegaria à casa de Narciso e ele estaria lá esperando por mim, como em meu antigo sonho. Eu caminhava com entusiasmo, seguindo pela trilha conhecida com confiança.
Num certo ponto , a trilha começou a ficar meio-coberta pelo mato, como se ninguém passasse por ali há muito tempo. Mesmo assim, o velho salgueiro apareceu, mostrando-me que eu estava na direção certa, e que a casa apareceria após a próxima curva. Já estava quase totalmente escuro, e vaga-lumes e corujas esvoaçavam por ali.Mas eu tinha uma lanterna na mochila. Pequenos morcegos passavam voando perto de minha cabeça, mas eu não tinha medo deles. Achava tudo muito mágico e bonito.
Quando cheguei ao final da trilha, ou seja, bem na curva, algo de estranho aconteceu: eu deveria ter avistado a casa de Narciso, mas ao invés disto, vi uma outra casa toda feita de madeira, com degraus de cipó que levavam a uma varanda cuja entrada era enfeitada por uma linda trepadeira florida. Havia luzes dentro da casa, luzes imprecisas e diáfanas que às vezes desapareciam para reaparecerem logo em seguida. Eu estava parada diante da casa observando tudo, pensando se talvez eu não tivesse esquecido de como era realmente a casa de Narciso; se eu me esquecera de seu rosto, possivelmente poderia ter me esquecido de sua casa, onde tinha ido poucas vezes.
Foi quando uma música suave, indescritível, pois não me lembro de ter ouvido nada parecido nem antes e nem depois daquele episódio, começou a tocar, vinda de dentro da casa. Meu coração pulava, mas apesar de estar com medo, era incapaz de dar meia-volta e voltar à trilha, seguindo para a segurança da casa de Matilde. Algo fazia com que eu ficasse ali, esperando para ver o que aconteceria em seguida. Olhei para o céu, e as estrelas pareciam bem maiores e mais brilhantes do que eu jamais vira. A lua, uma enorme bola de prata, estava bem acima do telhado da casa.
O vento soprou de leve, trazendo cheiros da floresta, cheiros que eu percebera antes, só que não tão intensos como agora. Eles vinham com o vento, e eu sabia destinguí-los um a um: cheiro da água do rio, de folhas de cidreira, de pedra, de terra, de flores, de besouros, de árvores – cada qual com um cheiro diferente, e cheiros que eu sabia de onde vinham e conseguia identificar perfeitamente, embora nunca tivesse prestado atenção a eles antes.
Eu ouvia sons vindos das moitas, e percebi que eram formigas, insetos, aranhas e grilos que andavam por ali. Tinha certeza de que algo tinha acontecido a todos os  órgãos dos meus sentidos, que estavam aguçadíssimos.
Toquei de leve numa folha de um arbusto próximo, e senti cada nervura, senti a vida que emanava dela, e senti uma estranha conexão entre ela e eu. Ela estava viva, não vegetativamente – no sentido figurado em que usamos esta palavra - , mas ela pulsava, havia um certo grau de inteligência naquela folha. E uma conexão entre ela e todas as outras folhas do arbusto. E também entre o arbusto e o chão de terra de onde ele brotava, sobre o  qual eu estava de pé naquele momento.Havia uma conexão entre todas as coisas, estivessem elas no céu ou na terra, viessem elas de qual elemento fosse. Esta conexão estava no ar, na água, era uma fonte de energia onipresente.
Eu perdi todo o medo, e quis entrar na casa.
Mal pensei nisso, vi-me dentro dela.
O que vi lá dentro é difícil de descrever. Se fecho os olhos, tudo me vêm nitidamente, mas quando procuro as palavras para relatar o que vi, dificilmente acho alguma que faça sentido. Mas mesmo assim, vou tentar:
A casa era semi-escura, mas quando eu olhava para qualquer lugar que fosse, ele se tornava iluminado e eu podia enxergar perfeitamente tudo o que se encontrava ali. Enquanto isso, todo o resto escurecia. Somente aquilo no qual eu focava minha atenção tornava-se iluminado.
Vi alguns seres estranhos, de cor esverdeada, parecendo ameaçadores e muito sujos. Seus olhos eram vermelhos e eles me causavam medo. No começo, fiquei olhando para eles estarrecida, de olhos arregalados, e alguns se aproximaram de onde eu estava, me rodeando. Eu sentia que a qualquer momento um deles poderia saltar sobre mim e me trucidar. Fechei os olhos com força, e quando finalmente os reabri, eles tinham desaparecido. Após algumas experiências parecidas, compreendi que quando algo não me agradava, bastava fechar os olhos ou desviar o olhar e tudo sumia.
Mas também avistei lindas criaturas, pessoas de incrível beleza, que sorriam para mim. Elas me falavam através do pensamento, mas o que me diziam é intraduzível em palavras. Só sei que muito do que me disseram ficou em minha alma, impresso, e que lembrei-me delas gradativamente em diferentes momentos de minha vida. E elas me deram coragem nos momentos difíceis, esclarecendo-me nos momentos de dúvida. O que posso mais-ou-menos traduzir é que, segundo o que me “disseram”, o mundo todo é como aquela casa: vivemos a realidade na qual nos focamos.
Em dado momento, senti que era suavemente puxada para o centro da sala. No meu pensamento, desejei que fosse Narciso quem estivesse me conduzindo, e para minha surpresa, quando me virei para olhar, dei com seu lindo sorriso. Ele me envolveu suavemente em seus braços e nós dançamos ao som da música. Parecíamos voar a alguns centímetros do chão. Eu estava feliz por revê-lo, e assim que tive este pensamento, ele o devolveu a mim, e compreendi que ele também estava feliz em me rever.
Depois, lembro-me vagamente de ter visto outras pessoas que eu parecia já ter conhecido, mas das quais não me lembro agora. Alguém me estendeu um copo de vidro vermelho com a borda dourada, que brilhava muito, e tomei naquele copo uma bebida maravilhosa, levemente embriagante, e sempre que ele estava se esvaziando, alguém voltava a enchê-lo. Sentia-me viva, desperta, e ao mesmo tempo, levemente embriagada pela realidade à qual não estava acostumada.
Minha família, Matilde , a escola e todos os fatos de minha vida pareciam distantes, imprecisos e sem-importância. Eu sabia que estava fazendo parte de algo maior, estava conhecendo uma realidade que não é acessível à maioria das pessoas, e desejava permanecer ali, aprender mais, conhecer mais coisas e mais pessoas.
Veio-me um pensamento: “tem certeza que deseja continuar?” e eu pensei : “sim, tenho.” Eu sabia, instintivamente, que aquela pergunta me seria feita dez vezes; se eu respondesse  “sim” às dez vezes, passaria a fazer parte daquele lugar definitivamente.

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