domingo, 10 de fevereiro de 2013

No Escuro da Floresta - capítulo XIV





Capítulo XIV

Passei novamente por alguns acontecimentos corriqueiros, como festinhas de aniversário, compras e passeios. Até que cheguei ao ponto do meu desaparecimento.
Logo após ler sobre meu desaparecimento, percebi que algumas páginas tinham sido arrancadas. Achei que talvez Matilde tivesse escrito alguma coisa da qual se arrependera. Depois, o diário continuava, as idéias interrompidas pelas páginas arrancadas, mas ainda claras.
Ela escrevera que eu havia sumido na floresta, quando ela é quem deveria ter ido em meu lugar. Tentava expressar seu desespero pelo meu misterioso sumiço de maneira controlada, pois ela estava entre a aflição de não saber ao certo o que me acontecera e ao mesmo tempo, tentava consolar a si mesma, dizendo que eu estaria “em boas mãos”, e que “eles” tomariam conta de mim. Pela quantidade de páginas escritas naquele período, concluí que ela passava quase todo o seu tempo pensando em mim. Até que comunicara a sua decisão de sair à minha procura:
“Eu vou procurar Noêmia. Terei que me separar de você por um tempo, querido diário. Mas você ficará bem em seu esconderijo. Eu acho que sou responsável por ela, afinal eu a apresentei às fadas, eu contei a ela sobre meu segredo. Preciso encontrar minha irmã.”
Senti como se as batidas de meu coração tivessem sido interrompidas por alguns instantes. Depois, elas voltaram, mais fortes do que nunca. Reli a última frase: “  Preciso encontrar minha irmã.” De certo modo, eu achei que descobrira o porquê das páginas arrancadas; só que Matilde, por  pressa ou distração, esquecera-se de excluir aquela última frase. Depois, havia mais algumas páginas escritas, sem nada de muito especial – para quem não sabia ler nas entrelinhas ou para quem não tivesse conhecido Matilde o suficiente para notar que ela, escrevendo sobre coisas mais corriqueiras, estava na verdade tentando disfarçar um assunto no qual não se atreveria a tocar novamente. O mesmo que a tinha feito arrancar as páginas.
Fiquei pensando no quanto deveria ter sido difícil para ela guardar aquele segredo, e tentei imaginar exatamente quando ela o descobrira. Houve menção anterior, mas apenas como uma desconfiança, e provavelmente, Matilde não tinha arrancado também aquelas páginas por mera distração. Eu a conhecera o suficiente para ter certeza daquilo, pois ela jamais se intrometia em assuntos que não lhe diziam respeito, e jamais revelava segredos alheios. Nem mesmo para seu diário, se acreditasse que poderia haver a menor hipótese de ele ser encontrado por outra pessoa. Por isso mesmo, antes de partir em minha procura, ela arrancara as páginas. Mas com certeza, o fizera apressadamente, esquecendo-se de algumas.
Fechei o diário e fiquei pensando no que deveria fazer. Meu estômago roncou, e percebi que metade do dia já tinha passado e que eu não comia há muitas horas.
Ainda perturbada, fui para a cozinha preparar um sanduíche, o que fiz automaticamente. Nem percebi que o dia já estava terminando, e sentada à mesa da cozinha, dando a última mordida em meu sanduíche, de repente percebi que já escurecia.
Ouvi a porta da frente se abrir e se fechar, e as vozes alegres de meus pais e de Maria, que chegavam do piquenique. Rapidamente, escondi o diário o melhor que pude sob o casaco. Ainda não sabia o que faria dele ou das informações que ele continha.
Ficamos todos na cozinha durante algum tempo, eu escutando as estórias sobre Vila Pequena que eles me contavam com entusiasmo.
Mamãe comentou que eu estava muito pensativa, e perguntou-me se tinha acontecido alguma coisa; respondi:
-Não, está tudo bem. Eu estive na cabana de Narciso.
Ela suspirou.
-Entendo... você deve estar cheia de lembranças, não é?
-Sim, claro. Mas nada doloroso, apenas lembranças. Um pouco de saudade...
- Ele era boa pessoa, disse papai.
Maria comentou:
- Eu não tive muito contato com ele, mas eu também acho que ele era um cara legal. Mas que estória a dele, não?
Todos concordamos e encerramos o assunto com um longo suspiro em uníssono. Acho que evitávamos certos assuntos por medo de parecermos ridículos.
Mas o que realmente ocupava minha cabeça naquele momento, era o diário de Matilde. E o que eu tinha descoberto nele. Eu olhava para papai e tentava entender como ele conseguira viver todos aqueles anos com aquele segredo. Um misto de pena e ressentimento tomaram conta de mim. Como ele podia ter ignorado Matilde daquele jeito? Se ela era a filha dele?
Mamãe e Maria foram dormir, e papai foi sentar-se na varanda dos fundos. Eu continuei na cozinha, envolvida pelo silêncio da casa, quebrado apenas pelo cricrilar dos grilos e o ocasional pio de uma coruja .
Eu precisava falar com papai.
Sentei-me ao lado dele na varanda. Ficamos olhando a floresta por algum tempo em silêncio. O céu estava totalmente estrelado, pois era uma noite sem luar. Pensei no que Matilde faria se estivesse no meu lugar. Ela provavelmente não faria perguntas. Seguraria a mão de papai em mudo entendimento e perdão. Não julgaria ou emitiria nenhum tipo de acusação.
Foi o que fiz. Segurei a mão de papai. Tentei não dizer nada. Senti o quanto as mãos dele estavam mais enrugadas, e de repente as lágrimas começaram a cair, primeiro bem devagar, depois copiosamente.
Ele me olhou espantado, envolvendo-me em um abraço:
-Hei, o que está acontecendo, querida?
Eu não conseguia falar.
- Sabe, você para mim é como se fosse a mesma menininha de anos atrás. Ainda mais agora, que estamos neste lugar onde passamos tantos anos felizes, doces, cheios de magia. É muito emocionante para mim também, estarmos todos aqui. Reviver memórias, ressuscitar o passado...
- Descobrir segredos...
- Segredos? Que segredos?
Encarei-o:
- Hoje aconteceu uma coisa fantástica enquanto eu estava na cabana de Narciso. Achei o diário de Matilde sob umas tábuas do piso da varanda. Foi por um acaso, eu nem me lembrava mais que ela escrevia um diário. Uma vez ela nos contou, a mim e a Maria. Mas isso foi há tanto, tanto tempo... nunca mais pensei nisso, e de repente, lá estava ele.
Enquanto eu falava, o rosto de papai assumia um ar grave e preocupado.
- Onde está o diário? - perguntou.
- Aqui.
Estendi-o para ele.
- Tem algumas coisas de criança... mas ela diz que você e Carla já se conheciam antes de nos mudarmos para cá.
O olhar de papai estava fixo no meu, enquanto ele segurava o diário contra o peito. Continuei falando, estudando as feições dele. Contei tudo o que Matilde dizia no diário sobre sermos irmãs. Papai levantou-se e caminhou até o início da floresta, e ficou parado de costas para mim, fitando a vasta escuridão da mata. Passava as mãos nervosamente pelos cabelos. De repente, vi-o cair de joelhos no chão, e corri até ele, que soluçava fortemente.
Ajoelhei-me ao lado dele, e compreendi que ele não sabia de nada.
Perguntei:
- Você não tinha certeza, não é mesmo? Chegou a desconfiar que Matilde fosse sua filha, mas Carla deve ter negado tudo. Foi isso o que aconteceu?
Ele concordou com um aceno de cabeça.
- Eu a conheci numa viagem de negócios. Tivemos um caso passageiro. Sua mãe e eu... nosso casamento estava passando por uma crise. Eu e Carla tivemos um relacionamento sem-importância, que durou apenas alguns dias. Depois que voltei para casa, nunca mais nos vimos, até aquele dia em Vila Pequena, quando chegamos.
-Bem que eu percebi que você não tirava os olhos dela quando nos conhecemos na feira. Mas achei que fosse porque ela era tão bonita...
-É verdade... mas eu nunca a amei. Eu passei a ir à casa dela quase todos os dias, pois desconfiava que Matilde fosse minha filha. Mas ela sempre negava. E me mandava embora, pois não queria que Lina desconfiasse de nada. Deixava bem claro que eu não tinha sido importante para ela, e que não pretendia levar o caso adiante. Eu... confesso que fiquei perturbado ao revê-la, mas com o tempo compreendi que tinha realmente acabado, ou melhor, nem sequer começara. Até que Virgínia foi falar com Lina sobre minhas visitas à Carla, e ela começou a pensar que estivéssemos tendo um caso. Mas não estávamos, filha, eu juro.
-Papai, eu acredito em você; não precisa se justificar para mim.
- Um dia Carla disse que se eu não parasse de insistir sobre a paternidade de Matilde, ela iria embora da cidade com a menina. E jurou que ela não era minha filha, mas negou-se veementemente a dizer quem era o pai de Matilde. Logo depois você adoeceu... depois houve a morte de Narciso, seguido do seu desaparecimento e do desaparecimento de Matilde. Vimos Carla definhar a cada dia. Sentimos que, se Matilde não reaparecesse, ela poderia enlouquecer de dor. Mais uma vez insisti, perguntando sobre o pai de Matilde, e  ela teve uma crise nervosa. Resolvi não insistir mais no assunto naquele momento.
Depois que você reapareceu, sem Matilde, ela compreendeu que nunca mais reveria a filha. O resto você já sabe.
- Mas... existem algumas páginas do diário que foram arrancadas, e acho que nelas está o desfecho deste segredo.
Ele segurou minhas mãos e pediu-me que deixasse o diário com ele. Concordei. Fui dormir, e ele ficou sentado na varanda lendo o diário.
Na manhã seguinte compreendi que mamãe não sabia de nada, ao ouvi-la cantando na cozinha enquanto preparava o café da manhã. Ouvir aqueles sons novamente, de canto, colheres sendo colocadas nos pires, e o cheiro de café fresco novamente envolvendo toda a casa, fez com que a sensação de ser criança novamente tomasse conta de mim. Deixei-me ficar por mais alguns minutos de olhos fechados. Quando olhei para Maria, ela ainda dormia profundamente.
Levantei-me e ainda de camisola sentei-me à mesa do café. Papai estava sentado no degrau da porta da cozinha,  e tinha olheiras profundas. Mamãe levou-lhe uma xícara de café, dizendo:
- Nossa, que cara horrível! Também, não dormiu a noite toda, virando de um lado para o outro.
- Acho que estranhei o colchão. Não me sinto muito bem.
Ela pareceu preocupada.
- Devemos ir ao médico?
- Não, é apenas um cansaço. Logo passa. Noêmia, que tal darmos uma volta à pé?
- Ora, deixa eu ver se entendi: você diz que está cansado e chama Noêmia para caminhar? E ainda por cima, não me inclui?
-Ora, querida, você precisa estar aqui para quando Maria acordar. Acho que uma caminhada vai me fazer bem.
Fui até o quarto, vesti umas bermudas e um par de tênis. Maria ainda estava totalmente apagada.
Saímos de braços dados, e fomos até a cabana de Narciso. Papai disse-me que queria “dar uma olhada” nela. Chegando lá, mostrei-lhe onde tinha encontrado o diário. Ele parecia bastante emocionado. Pediu-me que não contasse nada à mamãe por enquanto, pois ele mesmo queria fazê-lo. O que estava no diário, para ele, era o suficiente; Matilde era mesmo sua filha.
- Mas papai... você acha sensato, após todos estes anos, desenterrar o passado desse jeito? Por que não deixa as coisas como estão? Para que contar tudo para mamãe, se Carla está morta, Matilde está... está... bem, não sei exatamente, mas  tudo isso pertence ao passado, para que remexer ?  Não sabemos qual a reação de mamãe ao descobrir que você escondeu este segredo dela durante todos estes anos, mas pelo pouco que a conheço, acredito que não vai ser nada boa.
Ele pareceu pensar por um tempo, depois respondeu:
- É que eu não quero morrer sabendo que deixei sua mãe continuar vivendo em uma mentira.
- Como assim, morrer? Você ainda tem muito tempo, é novo, ainda, e...
- Filha, eu estou morrendo.



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