domingo, 10 de fevereiro de 2013

No Escuro da Floresta - Capítulo XII






Capítulo XII

Viver em Vila Pequena não era mais tão bom. Presenciamos, de perto, como Carla foi enlouquecendo dia após dia, até precisar ser internada em uma clínica de repouso numa cidade próxima. Meses depois, recebemos a notícia de que ela tinha falecido.
O tempo todo, eu soubera que Matilde não voltaria. Ela estava pronta. Estivera pronta o tempo todo, e só tinha adiado sua ida devido à minha doença. Mais uma prova da amiga fiel que ela tinha sido. Mas também provou que tinha palavra, ao partir e resolver não voltar mais.
Após a morte de Carla, nós decidimos voltar para a cidade. Era muito triste, ter de passar por sua casa todos os dias e saber que ela nunca mais apareceria à janela com seu lindo sorriso para nos cumprimentar; era terrível saber que eu nunca mais veria minha amiga Matilde.
A Delicatéssen de Carla permaneceu de portas fechadas por muito tempo, até que alguém resolveu alugá-la e abrir uma loja de ferragens.
Nossa última manhã no chalé foi muito triste. O ritual de fechar as janelas, vendo cada cômodo escurecer, e tomarmos nosso último café da manhã na mesa da cozinha, e fecharmos, pela última vez, a porta da sala, foi traumatizante para todos nós.
Enquanto o carro se afastava, olhei nosso chalé, que parecia mais triste e abandonado à medida que nos distanciávamos dele, e fortes lembranças vieram à minha mente: lembranças da nossa chegada em Vila Pequena, e da primeira vez que vira Matilde; lembranças das festas, das noites de Natal, de Narciso e de Carla. Eram lembranças felizes, mas que jamais voltariam a ser reais.
Logo, a estrada no meio da floresta deu lugar a uma rodovia movimentada. Nosso sonho tinha ficado para trás.
Readaptarmo-nos à cidade também foi bastante traumático. Eu acordava todos os dias e, por alguns instantes, achava que ao abrir os olhos veria os ramos do nosso cedro através da fresta da cortina. Pensava ouvir o canto de um pássaro, mas logo o ruído zangado de um motor de carro me trazia de volta à realidade, e eu abria os olhos para descobrir que estava de volta ao nosso apartamento da cidade. Nós o tínhamos reformado completamente, trocamos todos os móveis e as cores das paredes, mas mesmo assim, eu não me sentia em casa. Acho que ninguém se sentia em casa. Mas mudar para uma outra cidade seria muito difícil, pois papai conseguira ser readmitido em sua antiga firma, e para um homem na sua idade, não seria fácil conseguir trabalho em outro lugar. Só o tinha conseguido porque além de ser competente, era amigo pessoal do dono da emprêsa.
O chalé não tinha sido vendido. Não tivéramos coragem de fazê-lo. Quem sabe um dia tivéssemos coragem, num belo fim de semana, dali a muito tempo, de arrumar as malas e irmos passar as férias por lá novamente?
Mas isso só aconteceria dali a muitos, muitos anos.
Quando tinha vinte e três anos, Maria casou-se com um rico industrial.
Logo depois de retornamos à cidade, Maria foi se transformando pouco a pouco da irmã carinhosa e amiga, em uma mulher fria e distante. Foi como se eu tivesse perdido minha irmã. Seu mundo se resumia à festas, amigos chatos e petulantes e roupas caras. Alguns meses após o casamento, ela e o marido mudaram-se para os Estados Unidos, e nossos encontros passaram a ser limitados aos períodos de férias, quando ela passava brevemente por aqui. Também trocávamos alguns e-mails vazios, apenas por educação.
Eu me formara em psicologia e lecionava em uma universidade, além de manter um consultório particular. No início, a psicologia era para mim como uma missão. Enquanto ouvia os problemas alheios e pensava sobre eles, lembrava-me de tudo o que vira e ouvira nos tempos de meu desaparecimento, e o quanto tudo aquilo que aprendera estava distante dos problemas que as pessoas me apresentavam. Falavam de casamentos rompidos, traumas de infância, traições, depressões, desajustes. Eu ouvia e tentava encaixar suas experiâncias de vida com tudo o que aprendera, tentando mostrar-lhes que eles tinham o poder de mudar suas situações. Mas a maioria, como vim a perceber, queriam apenas alguém que os ouvisse , sem a menos intenção de mudar, achando que todos os seus problemas vinham de fora, dos “outros”, e que eles eram apenas vítimas. Quando eu tentava conduzi-los de volta ao que, ao meu ver, era seu verdadeiro caminho, eles cancelavam as consultas e procuravam um psicólogo mais “tradicional.”
Não posso dizer que não obtive nenhum resultado; algumas pessoas pareciam realmente prontas a ouvir e entender, e dispostas a mudar.  A estas eu conseguia ajudar. Mas, a grande maioria estava presa ao habitual conceito de auto-piedade. Aos poucos, fui me decepcionando com minha profissão. Aquela mocinha recém-formada que achava que poderia mudar o mundo foi morrendo aos poucos, e se transformou em uma mulher meio-amarga, e uma profissional realmente “tradicional.”
Quanto à mamãe, ela continuou escrevendo artigos para revistas femininas, mas nunca mais conseguiu concluir um livro. Dizia que, por muito tempo, tinha vivido num mundo irreal, de ficção, e que não conseguiria criar mais nada além daquilo, ao mesmo tempo que escrever sobre o que tinha vivido parecia-lhe uma profanação.
Papai trabalhou durante anos na antiga firma, onde se aposentou.
Os anos passaram para todos nós. Nossas vidas mudaram. Nós mudamos. Descobrimos e perdemos a magia de viver. Não que fôssemos infelizes – mas chegáramos muito perto de sermos completamente felizes, e perdemos tudo.
Passei a morar sozinha, após um casamento conturbado que durou apenas um ano .Tive alguns namorados, alguns duraram, outros não. Era difícil chegar em casa todas as noites e deparar com um apartamento vazio, sem aconchego, decorado apenas com o essencial. Também era difícil olhar-me no espelho todas as manhãs e ver, a cada dia, uma pequena ruga que surgia sobre minha pele. Quase imperceptível, mas estava lá, para dizer-me que minha vida estava passando e que, aos trinta e dois anos, eu não sabia ainda o que fazer com ela.
Aos poucos, deixamos de falar sobre Vila Pequena , sobre Matilde ou sobre o que vivemos lá.  No início, foi porque a dor era tão forte que evitávamos tocar no assunto. Depois, foi porque o tempo passara e curara as feridas, e não fazia sentido falar no passado. Mas ele estava lá.
Numa tarde de sábado, enquanto assistia TV enrolada em um cobertor, observando de vez em quando a chuva torrencial que caía lá fora e deixava tudo ainda mais cinzento, o telefone tocou.
Era Maria. Achei estranho, pois ela jamais me ligava. Apenas mandava e-mails breves e frios, que iam se tornando cada vez mais raros, e quando telefonava, era para papai e mamãe. Notei que ela estava chorando. Sua voz era hesitante, e por alguns momentos, pude reconhecer minha antiga irmã.
-Maria? O que aconteceu?
Ela hesitou por um minuto, e após fungar algumas vezes, respondeu:
- Eu estou me divorciando.
- Oh, sinto muito...
Eu dissera a única coisa que pensava que faria sentido, já que mal conhecia o marido de minha irmã. Nem sabia sequer se ainda conhecia minha irmã.
- Eu estou voltando para o Brasil. Chego depois de amanhã.
- Bem, Maria... eu... sinto muitíssimo. Quer que eu vá buscá-la no aeroporto?
- Sim, Noêmia. Por favor. E não conte nada a papai e mamãe ainda. Eu o farei quando chegar.
Já que não havia mais nada a dizermos uma a outra, após informar-me sobre o horário do vôo, desligamos. Já fazia bastante tempo desde que eu vira Maria pela última vez. Meus pais tinha ido passar seu aniversário com ela nos Estados Unidos há alguns meses atrás, e trouxeram algumas fotos. Inventei uma desculpa para não ter que ir, pois não gostava de meu cunhado e nem do mundo no qual eles viviam. E parecia-me que ele também não gostava de mim.
Resolvi dar uma outra olhada nas fotos que meus pais trouxeram, pois mal tinha olhado para elas.
Uma mulher alta, esguia, ricamente vestida e bem-maquiada, uma perfeita estranha, olhava para mim. O ambiente que a cercava era luxuoso, e as pessoas à sua volta portavam sorrisos estudados .  A mulher tentava demonstrar felicidade através de poses bem-ensaiadas, sorrisos de plástico, roupas caras e abraços frios que tinham sido dados apenas para aparecer nas fotografias.
Em uma das fotos, uma Maria tenta aparentar surpresa ao receber um grande buquê de rosas vermelhas das mãos de seu marido, cujo rosto é totalmente sem-expressão. Depois, ambos aparecem abraçados , enquanto ela exibe um caro anel.
Pensei naquelas revistas que retratam a vida de pessoas famosas, como se elas fossem perfeitas e nunca fizessem suas necessidades fisiológicas básicas, como todos os mortais. Senti muita pena de minha irmã. Mas também senti muita pena de mim mesma, pois minha vida não era muito menos patética que a dela.
A única diferença era o cenário; ela vivia em um palacete, e eu, num pequeno apartamento escuro e mal-decorado. E é claro, eu não tinha as mesmas roupas glamourosas.
Quando ela chegou, levei-a para meu apartamento e acomodei-a no quarto de hóspedes. Maria olhou em volta, como a perguntar-se como eu conseguia viver tão mal. Realmente, aquela figura alta, esguia e elegante , de pé no meio de meu acanhado apartamento, estava totalmente deslocada. Apesar das olheiras que apareciam, mesmo sob a fina camada de base e pó,  sem falar dos quilos que ela parecia ter perdido desde a ocasião daquelas fotos, Maria estava muito bela.
Ela tomou uma chuveirada, e surgiu envolta em um robe de veludo branco com debruns em cetim rosa. Os cabelos, soltos e molhados, estavam escovados para trás, deixando aparente seu rosto agora sem maquiagem, mas cuja pele bem-tratada conservava muito de seu frescor. Maria tinha então 35 anos, mas parecia mais jovem.
Ela me contou do motivo de seu divórcio; o motivo pelo qual a maioria dos casais se divorciam: outra mulher. Uma de suas amigas. E já vinha acontecendo há anos, até que um dia ela recebera um telefonema anônimo dando-lhe todas as coordenadas para que o seguisse, o que ela o fez, e acabou flagrando os dois quando estavam para entrar em um hotel afastado da cidade. Tentaram “explicar” tudo, mas Maria não quis ouvir – nem precisava. Voltou para casa, e horas depois, seu marido comunicava-lhe que queria o divórcio: não conseguia viver com uma mulher , segundo ele, “histérica e não-compreensiva.”
A fim de evitar escândalos, ele deixou-a financeiramente muito bem-amparada. Se não desejasse, Maria não precisaria mais trabalhar pelo resto de sua vida.
Após o jantar ( que ela fez questão de encomendar por telefone em um restaurante elegante) ela estendeu-se languidamente em meu sofá, acendendo um cigarro tão longo e elegante quanto ela própria, mas apagando-o logo em seguida, após duas ou três tragadas. Eu apenas olhava para ela, sentada do outro lado da sala, em minha velha e desbotada poltrona predileta. Estudava aquela criatura – minha irmã – tentando vislumbrar algum sinal da Maria que eu conhecera há anos atrás.
Eu mesma ainda era bonita. Mas minha beleza estava apagada, escondida sob o eterno rabo de cavalo,terninhos ou saias retas, sapatos deselegantes de saltos baixos, blusas clássicas sempre brancas ou beges. E nunca usava maquiagem – apenas um batom incolor. Eu tinha ganho alguns quilos, mas ainda não poderia ser considerada gorda. Parecia-me com qualquer mulher mediana de trinta e dois anos, mal-amada, destas que se encontram aos montes em ônibus, filas de bancos e calçadas lotadas. Mas por dentro, eu e ela não éramos muito diferentes. Mas teria restado alguma coisa do que fôramos? Após olhar em volta por alguns instantes, e percebi, tentando comparar as paredes que a cercavam com o lugar de onde ela recentemente tinha vindo, ela falou:
- Tenho pensado muito ultimamente...
- Em?...
- Você ainda se lembra daquela vez que você desapareceu por meses a fio em Vila Pequena, e do que você nos contou quando voltou de sua... viagem?
Um calafrio percorreu minha espinha. Há anos não pensava mais naquele episódio.
-Claro. Procuro não pensar muito, afinal já faz tanto tempo. Por que?
- Estive pensando numa das coisas que você disse, sobre todos estarmos ligados, e sobre sermos os responsáveis por tudo o que acontece em nossas vidas. Responsáveis por nossas escolhas, boas ou más. Isso tem martelado minha cabeça. Chego a sonhar com aquele dia. Sonhos recorrentes. Há muito tempo eu não lembrava de meus sonhos.
Ela se levantou, acendeu outro cigarro e começou a andar de um lado para o outro. Seu perfume suave se desprendia de seu corpo e se espalhava pela sala.
- Eu me lembro de tudo aquilo, mas não sei exatamente o que aconteceu. Às vezes acho que foi tudo um sonho, ou imaginação. De que fiquei perdida na floresta, alguém me encontrou e me deu alguma droga para beber, e tive alucinações.
Ela ajoelhou-se em minha frente, fitando-me nos olhos:
- Noêmia, a única ocasião em que fui realmente feliz foi quando morávamos em Vila Pequena. Não deixe que o tempo apague aqueles momentos. Tudo foi real, eu sei. O que você viveu foi real. Éramos tão... verdadeiros.
Esta última palavra escapou-lhe dos lábios com uma certa amargura. Instintivamente, deslizei uma mão hesitante bem de leve sobre uma mecha de seus cabelos. Ela sorriu. Ali, ajoelhada diante de mim, pereceu-me que minha irmã voltara.
-Maria, nós nos afastamos tanto! Gostaria muito que tudo tivesse sido diferente.
- Eu também, mas... e se tudo não foi exatamente como deveria ter sido?
-Como assim?
-Tudo que passamos; nossa ida para Vila Pequena, o reaparecimento de Narciso e a maneira como vocês ficaram amigos; a morte dele, o seu desaparecimento, o de Matilde, a morte de Carla, que nos fez voltar para cá. E nos transformarmos no que somos hoje. Deve haver algum plano! Não é possível que eu tenha passado todos esses anos de minha vida vivendo inutilmente, levando uma existência totalmente vazia e sem-graça, fingindo que era feliz, que era amada, e pior, que amava meu marido... eu nunca amei meu marido. Talvez por isso ele tenha me traído.
Ela foi sentar-se no sofá. Esmagou o cigarro que estava no cinzeiro. Perguntei:
-Você acha que tudo isso faz parte de algum plano?
Ela balançou a cabeça.
-Olhe, Maria, eu sei que é sempre difícil passar por um divórcio. Já passei por um. A gente fica meio-perdida, tentando achar um sentido, tentando não nos sentirmos tão fracassadas. E até nos culpamos por tudo, muitas vezes. Mas daí a tentar ver uma conexão com algo que aconteceu quando éramos crianças, eu sinceramente...
- Não seja cínica! Noêmia, não seja como eu fui. Sempre achei que você era a mais inteligente de nós duas. Você viveu aquelas coisas! Você passou por tudo aquilo. Foi real! E para quê?
- Eu não estou entendendo, Maria. O que você está tentando me dizer? Por que voltou?
- Porque eu acho que é hora de voltarmos para Vila Pequena. Temos que continuar o que começamos lá.
- Nós já acabamos lá! Pelo amor de Deus, Maria, são vinte anos! Foi há vinte anos atrás! Eu era uma criança quando fomos morar lá, e você uma pré-adolescente, e quando saímos de lá foi porque algo terrível tinha acontecido. Nenhum de nós suportou permanecer lá depois que Matilde desapareceu e Carla morreu louca. É para lá que você quer voltar?
- Precisamos voltar!
-Volte você! Mamãe, papai e eu não temos mais nada a fazer por lá.
- Então por que ninguém vendeu o chalé?
Percebi que estávamos aos gritos. Afinal, por que papai e mamãe não tinham vendido o chalé, e ainda pagavam para que ele fosse permanentemente limpo e arejado, mantido em boas condições? De repente, uma imensa curiosidade tomou conta de mim: como estaria Vila Pequena após tantos anos?
Talvez eu voltasse lá apenas para perceber que tudo não tinha passado de um sonho.  Afinal, era assim que eu me sentia quando, raramente, pensava em Vila Pequena. Já tinha inventado uma teoria sobre meu desaparecimento naqueles seis meses: eu tinha ficado vagando pela floresta e tinha me alimentado de algum fruto alucinógeno. Narciso era apenas alguém parecido com aquele que desaparecera trinta anos antes. Matilde havia se perdido na floresta e morrido. As fadas eram apenas pirilampos enormes. E todo o resto eram lendas para atrair turistas.
- Noêmia, quando viemos de Vila Pequena para viver novamente na cidade, eu resolvi que construiria um mundo real e palpável à minha volta. Por isso, criei aquela vida materialista sem-sentido. Achava que assim estaria segura, pois se  coisas terríveis podiam acontecer em um lugar onde tudo deveria ser como  num conto de fadas, então a realidade era um lugar bem mais seguro. Mas eu estava errada. Coisas terríveis podem acontecer em qualquer lugar. Não existe algo como um lugar seguro. Temos que nos arriscar. Ficar aqui neste apartamento cinzento não vai impedir que você sofra.
O que ela disse caiu sobre meu rosto como um bofetão. Lágrimas escorriam pelas minhas faces, contra a minha vontade. A pessoa que eu pensava que eu era caiu por terra.

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