domingo, 10 de fevereiro de 2013

No Escuro da Floresta - Capítulo XI






Capítulo XI

Eu estava feliz. Tinha certeza que seria impossível sentir tanta felicidade se voltasse para o mundo de onde eu vinha. Tudo parecia agora muito certo e natural. Mas alguma coisa dentro de mim ainda incomodava. Uma coisinha de nada, um pensamento que tentava aparecer e eu prontamente sufocava, amassava-o bem no fundo de minha cabeça, para que ele permanecesse fora de combate durante mais algum tempo. Mas no fundo eu sabia que em algum momento, teria de deixar que esse pensamento aflorasse com toda a sua força e então, decidir o que fazer a respeito dele.
Eu me sentia atemporal. Não era apenas Noêmia, a garotinha de quase treze anos de idade que estava no segundo ano do segundo grau. Eu era um ser humano pleno, com todas as capacidades inatas dentro de mim como se fossem lápis de cor que eu pudesse escolher quando e onde usar, capaz de ser qualquer coisa na qual eu desejasse me transformar, pintando minha realidade como bem a desejasse. Eu tinha um poder. Eu me sentia muito madura, muito poderosa.
Acordei na manhã seguinte ouvindo os pássaros cantarem nas árvores e o barulho do rio correndo. Um raio de sol aquecia minhas costas. Foi quando ouvi a pergunta pela segunda vez, e respondi novamente que sim, desejava continuar. Ergui-me no antebraço e observei a clareira: raios de sol passavam pelas frestas das copas das árvores como se fossem lâminas, levantando das folhas secas que forravam o chão onde eu adormecera um vapor denso que fluía suavemente em direção ao céu.Percebi que esse vapor também brotava de minhas mãos, de meus cabelos, de todo o meu corpo, e que seguia o mesmo rumo. Mais uma vez, o sentimento de estar conectada com tudo à minha volta.
Ao erguer-me, meu corpo estava tão leve que o impulso que usei para levantar do chão quase me fez voar. Foi então que percebi que podia fazê-lo. E imediatamente, vi-me passando as copas de árvores numa velocidade incrível, mas bastou desejar seguir mais lentamente e consegui controlar a velocidade. Voei por sobre a cidade, os telhados das casas que também emitiam seu vapor manhã adentro, e vi as pessoas caminhando lá embaixo, e de cada uma delas emanavam luzes que as rodeavam, de diferentes cores, e percebi que as luzes eram campos de energia. Estes campos de energia se expandiam, tocando uns aos outros, não importando a distância que as pessoas se achavam umas das outras.
Também todos os animais, mesmo os insetos, emitiam um campo energético colorido que tocava os campos dos seres humanos e de outros animais. Percebi que qualquer coisa que acontecesse a qualquer um daqueles seres vivos, repercutiria também em todos os outros.
Voei para mais longe, sobre cidades que eu não conhecia, mas das quais tinha ouvido falar. Cidades onde havia guerras, preconceitos e domínio de uma classe de pessoas sobre as outras. Desta vez, as cores emanadas dos seres vivos eram cinzentas, ou marrons, algumas vezes chegando quase ao negro, ou então de um vermelho feio e sujo. Mesmo as pessoas cujas cores eram ainda suaves e bonitas no centro próximo a seus corpos, eram afetadas pelas energias pesadas emanadas das outras pessoas. Violência gerando mais violência; tristeza gerando mais tristeza; pensamentos ruins gerando mais miséria e desespero.
Desejei deixar aqueles lugares horríveis, e vi-me novamente na clareira. Novamente ouvi a pergunta, pela terceira vez, e respondi que desejava ficar. Pensei novamente em Narciso, e senti que alguém tocava meu ombro de leve. Era ele, é claro.
 Trocando pensamentos, perguntei-lhe sobre como era estar morto. Ele disse que não era , em teoria, muito diferente de estar vivo, só que bem melhor. Perguntei se todas aquelas pessoas que se encontravam ali estavam mortas; ele disse que não. Algumas eram o que considerávamos “fadas”, outras eram “Anjos”. Aquele lugar onde nos encontrávamos era uma outra dimensão, paralela à dimensão em que eu vivia, o que significava que, apesar de estarem bem próximas, as duas dimensões eram normalmente invisíveis uma à outra. Apenas se faziam visíveis quando alguém cruzava uma espécie de portal ( este é o melhor termo que consegui para descrever o que ele me disse). Pela quinta vez, ele me perguntou se eu desejava ficar, e eu disse que sim.
Ele me olhou bem fundo na alma, e de repente , o pensamento que eu tentava a todo custo conter, aflorou como uma explosão.
Eu poderia “morrer” para as pessoas que deixara para trás, e eles, para mim; eu poderia desejar voltar mais tarde, e descobrir que o tempo havia passado para eles de forma diferente do que passara para mim; eu poderia estar abrindo mão de uma experiência que eu precisava viver, como se estivesse abortando um projeto muito maior que meus interesses pessoais.
Narciso mostrou-me o lugar onde ele estava agora , e para o qual deveria voltar: não se parecia em nada com o lugar onde nos encontrávamos; pelo contrário: era escuro e melancólico, e ele deveria permanecer lá por muito tempo ainda, até resgatar seu suicídio. Deveria ainda ajudar outras pessoas, impedindo que elas fizessem o mesmo que ele, ou se não o conseguisse, ajudando-as a reparar seus erros.
“Mas,” eu pensei, “se é assim, por que não me obrigam a voltar, simplesmente? Não deveriam deixar que a escolha fosse minha”. Ele sorriu tristemente.
“Há muito tempo atrás, esta escolha foi dada a mim; no último instante, ou seja, na nona vez, decidi que deveria voltar. O resto, você já sabe. Se eu tivesse permanecido aqui, se tivesse conseguido esquecer totalmente o que tinha deixado para trás, tudo seria muito diferente agora, para mim. Mas eu quis voltar, porque precisava terminar minha estória. Ninguém é colocado onde está por um acaso. Mas, se uma escolha nos é dada, temos que ter certeza sobre o que realmente desejamos. Mas, se me permite uma opinião, Menininha, você ainda não está pronta para ficar aqui. Eu sei, pois também não estava. Ouça o que eu digo: você deseja realmente nunca mais ver seus pais ou sua irmã? Ou Matilde?”
Pensei no que ele estava me dizendo. Depois de algum tempo, ele continuou:
“ Você precisa viver muitas coisas do outro lado. Agora que já sabe de tantas coisas, você está em grande vantagem. Quem sabe, pode ajudar a esclarecer as outras pessoas sobre todas as coisas que aprendeu aqui? Mas não ligue se disserem que você é louca, pois provavelmente, é o que vai acontecer, se você tentar impor-lhes o que aprendeu; somente diga o que sabe se alguém lhe perguntar e se você perceber que a pergunta é sincera.”
Notei que ele falava como se já tivesse certeza de minha escolha .No fundo, eu mesma já sabia qual seria a minha resposta quando me perguntassem pela sexta vez.
Uma linda jovem aproximou-se de nós, e entendi que era Fryeda. Entendi também que ela era uma espécie de “mentora” para Narciso. E que ele estava voltando para o lugar onde, pelo menos temporariamente, pertencia.
E que eu deveria fazer o mesmo.

Quando vim a mim, encontrava-me sentada em uma pedra, à beira da estrada. Amanhecia, e ainda um pouco confusa, pensei que Narciso, na ocasião de seu reaparecimento, também sentira-se assim. Eu estava um pouco tonta e  enjoada, e minha cabeça doía.
Tentei levantar-me, mas tudo rodou à minha volta, e tive que sentar novamente. Achei melhor esperar um pouco até me readaptar à atmosfera. Ao mesmo tempo, sentia uma grande melancolia dentro de mim. Parecia que meus sentidos haviam se embrutecido, e que o mundo era como uma bolacha sem-sal, plana, sem-graça , e que os sons e as cores , ao invés de emanarem e se expandirem, iam apenas alguns centímetros à minha frente e ricocheteavam de volta para mim, com um estampido seco, sem profundidade.
Tudo aquilo, e mais a triste certeza de que jamais voltaria a ver meu amigo novamente.
Eu estava vivendo uma verdadeira ressaca emocional.
Ouvi passos. Pés pisando levemente o cascalho do caminho. Ergui os olhos, e dei com minha mãe, enrolada em seu velho roupão, ainda despenteada. Parecia muito mais magra do que eu me lembrava, e havia círculos escuros sob seus olhos. Ela estancou no caminho, ao me ver. Ficamos nos olhando por alguns instantes, até que, ao mesmo tempo, corremos em direção uma à outra, ela gritando de alegria, e eu, chorando de cansaço. Quando nos abraçamos, éramos ambas como caixas de som que emitiam soluços, gritos abafados, e risos entrecortados pelo chôro.
Falar, ouvir novamente minha própria voz, também foi difícil; ela saiu um pouco rouca e imprecisa:
-         Quanto tempo?
-         Quase seis meses.
Mal pude acreditar no que ouvira. Mas poderia ter sido bem pior, e fiquei alegre por ainda encontrar minha família.
Quando cheguei em casa, as reações emocionais de papai e Maria foram semelhantes às de mamãe; ela entrou em casa me puxando pela mão, gritando: “Pedro! Maria! Venham ver quem está aqui!”
Minha própria casa me parecia bem menor do que antes. Sabia que ia demorar um pouco, até que me acostumasse a tudo novamente.
Depois dos abraços e de muitas lágrimas de alegria, enquanto mamãe preparava para todos um lauto café da manhã, tentei contar mais ou menos tudo o que tinha visto e aprendido, mas poucas vezes consegui encontrar as palavras certas. Mesmo assim, pude dar-lhes uma vaga ideia de onde tinha estado, o que tinha feito e quase todas as coisas que tinha visto. Falei sobre o reencontro com Narciso. Todos choramos. Todos rimos.
Tomamos o nosso café da manhã. De repente, Maria ergueu as sobrancelhas, parecendo lembrar-se de algo importante, e vi quando uma sombra passou por seu rosto. Papai e mamãe pareceram ter se lembrado também da mesma coisa. Papai disse:
-Devemos avisar Carla.
Mal disse isso, a própria Carla surgiu à porta da nossa cozinha. Estava muito magra, parecia ter envelhecido alguns anos, e seus lindos cabelos negros estavam ficando grisalhos. Mesmo assim, continuava bela. Quando me viu, levou a mão à boca, contendo um grito de surpresa, e veio até mim, me abraçando. Logo perguntou:
- E Matilde? Você esteve com ela?
Olhei para minha família, e eles baixaram a cabeça. Mamãe respondeu:
- Não, querida. Matilde não voltou com Noêmia.
Levei alguns segundos para entender o que estava acontecendo. Carla perdeu os sentidos, e antes que papai pudesse chegar até ela, ela desabou no chão da cozinha.
- Onde está Matilde? - gritei.
- Ela... depois que você desapareceu, mais ou menos um mês depois, ela também sumiu. Deixou um bilhete, dizendo que ia buscar você – Maria respondeu.
- Mas...eu não estive com ela, eu não a vi...  e ninguém me falou dela, nem Narciso...eu não sabia o que estava acontecendo aqui. Mamãe!
Corri para ela, abraçando-a. Neste momento, Carla voltava a si. Papai a tinha levado para o sofá da sala, e ela estava muito pálida.
Maria explicou-me que, após o sumiço de Matilde, Carla tinha ido várias vezes à floresta e pedido que “eles” a levassem também, mas nada aconteceu; pedira que lhe devolvessem Matilde, mas o pai de Matilde apareceu e lhe disse que ela sabia que um dia aquilo iria acontecer. Ele a tinha avisado, desde que a menina nascera. E que não poderiam levá-la junto com eles, pois não havia lugar para ela. E que Matilde tinha escolhido ficar por lá por livre e espontânea vontade.
Eu sabia que ela ainda teria que responder “sim” à pergunta dez vezes; eu demorara seis meses para responder apenas cinco das perguntas, e ela talvez ainda não tivesse respondido todas. Eu queria que ela voltasse. Disse à Carla que ela voltaria.
Mas dois anos se passaram, e ela não voltou.



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