domingo, 10 de fevereiro de 2013

No Escuro da Floresta - capítulo VIII






NO ESCURO DA FLORESTA Capítulo VIII

Uma semana se passou, e a vida seguia seu curso normal. Maria e eu íamos à escola, mamãe escrevia seus artigos no computador ( estava muito entusiasmada com uma ideia para um novo livro), Narciso trabalhava na marcenaria de papai. Às vezes eles apareciam juntos para o almoço, e ele me olhava de um jeito diferente, que fazia com que eu me sentisse muito importante. Eu aprendera a não contar os segredos dos outros, por isso não comentara nem mesmo com Matilde a conversa que eu havia tido com ele na noite da festa. E ele sabia disso. Sabia também que, quando precisasse, poderia contar comigo.
O tempo passava mansamente em Vila Pequena, sem a correria da cidade. Mas os momentos eram tão deliciosos que pareciam voar. Eu achava que naquela cidadezinha a palavra “rotina” tinha sido banida. Havia sempre uma festa na casa de alguém, ou um festival na cidade, uma feira , um número musical. Para os adultos, havia o Bar da Neide, que oferecia música e boa comida, dois cinemas, a Delicatessen de Carla, os jogos de carta à noite, as pescarias nas noites de lua-cheia, etc...
Para os mais jovens, havia um grupo de teatro, as atividades extra oferecidas pela escola, bailes no clube no  final das tardes de sábado, um lindo rio na floresta para nadar , gincanas aos domingos, etc. Era uma vida calma, mas cheia de atividades – diferente da cidade, onde a vida era agitada e ao mesmo tempo, monótona e vazia. E, como meus pais sempre faziam questão de afirmar, as pessoas eram genuínas.
Seria devido à magia que pairava no ar?
Eu nunca me sentira tão bem-disposta. Acordar cedo para ir à escola nunca mais fora um problema. Fazia as lições de casa sem que mamãe tivesse que mandar, e se havia pratos na pia, eu e Maria os lavávamos antes que mamãe pedisse. Todos nós comentávamos o quão prazeroso tinha se tornado o trabalho e o lazer, e o fato de não nos sentirmos cansados como na cidade, ao final do dia. Ainda podíamos ficar até tarde da noite assistindo a bons filmes, ou ir à cidade comer uma pizza, ou qualquer outra atividade, e no dia seguinte, acordar cedo sentindo-nos muito bem-dispostos. O mesmo parecia se passar com as demais pessoas, mas quando comentávamos o assunto, elas não entendiam , dizendo que sempre se sentiam como nós passáramos a nos sentir.
O aniversário de Matilde estava se aproximando, e com ele, minha angústia. Eu observava os preparatórios que Carla fazia, os enfeites cuidadosamente trabalhados com suas mãos habilidosas, as receitas ( de família) de doces que as mulheres lhe mandavam, escritas em padaços de papel amarelados, parecendo muito antigos. E ninguém se dava ao trabalho de fazer uma cópia, mandando os originais, tal era a confiança que depositavam umas nas outras.
Um dia, na hora do almoço, papai estava sentado à mesa com Narciso, quando Carla e Matilde chegaram e começaram a conversar sobre os preparativos. Maria juntou-se a elas, oferecendo-se para fazer e imprimir os convites no computador.
Só eu parecia não estar gostando nada daquilo, e num momento de extremo desespero, saí correndo da sala e fui chorar no quintal dos fundos.
Logo depois, Narciso aproximou-se de mim. Ele sabia exatamente como eu estava me sentindo.
- Menininha, você não deveria se preocupar tanto.
- Mas ela nem liga! Logo estará bem longe de todos nós, e nem sequer se importa. Pensei que ela fosse minha amiga.
- E é... mas... você é amiga dela?
- É claro que eu sou!
- Pois então deve respeitar as decisões que ela tomar.
- Mesmo se o que ela decidir estiver errado? Mesmo se isso significar que ela vai embora para sempre?
- O que ela decidiu não é errado apenas porque vai de encontro ao que você gostaria que acontecesse, menininha.
Fiquei matutando sobre o que ele dissera, até que compreendi.
- Mas é certo fazer os outros que amam a gente, sofrerem?
- Eu mesmo, um dia, tomei esta decisão. Num passeio pela floresta, concordei em deixar este mundo e ir com Fryeda... ela era tão linda e ... mas depois de algum tempo, percebi que tudo o que eu queria estava realmente do outro lado, de onde eu tinha saído.Quando voltei, era tarde demais.
- Então? Você tomou a decisão errada!
- Sim, eu sei. Mas naquele momento, pareceu-me a decisão certa, e não importaria se alguém tivesse tentado me convencer do contrário. Muitas vezes a gente que fazer as próprias escolhas, mesmo que estejam erradas, contanto que sejam nossas.
- Mas você não é feliz...
Ele sorriu, aquele sorriso triste.
- Eu era, e nem sabia. Precisei perder tudo para descobrir isto.
- Bem, e de que adiantou? Descobrir fez com que você ficasse feliz de novo?
- Não, não fez. Mas se eu tiver uma outra chance de ser feliz, não vou jogá-la fora novamente.
Olhei para ele, e reparei que , nos últimos dias, seus cabelos negros tinham embranquecido um pouco junto às têmporas, e que havia algumas linhas suaves em volta de seus lindos olhos. Mas só serviam para torná-lo ainda mais lindo. Abracei-o, num impulso, e ele pareceu surpreso por um momento, para logo em seguida, corresponder meu abraço. Apesar de ser apenas uma criança, eu teria me casado com ele naquele momento, se ele tivesse me pedido. Lembrei-me de que os adultos, para brincarem conosco, e à guisa de elogio, às vezes diziam que iam “esperar a gente crescer” para se casarem conosco. Mais uma vez ele adivinhou meu pensamento, e sorriu de novo.
- É menininha, mas eu teria que esperar muito, muito tempo...
Corei. Ele voltou para a sala. Fiquei fazendo as contas mentalmente; eu tinha nove anos, e ele, trinta e três – ou sessenta e três. Se ele pudesse me esperar até eu fazer uns vinte anos, já daria para a gente se casar.Isso seria daqui a onze anos; quem sabe, se ele voltasse para as fadas por mais uns onze anos... estava perdida em meus pensamentos, quando dei com ele na porta da cozinha, olhando para mim e rindo, parecendo divertido. Eu sabia que ele adivinhava meus pensamentos, e corei. Narciso acenou-me e piscou, e depois entrou no carro com papai, para voltarem ao trabalho.
Tinha uma coisa que eu deveria contar à Matilde. Ela precisava saber que, se resolvesse mesmo ir morar com as fadas, o tempo passaria lentamente, e se ela resolvesse voltar, poderia encontrar todos mortos, ou muito velhos, como acontecera com Narciso. Entrei em casa e levei-a para meu quarto, despejando sobre ela todos os meus medos. Ela ouviu tudo com seus olhos atentos.Pareceu hesitar. Me abraçou, e fiquei olhando as coisas no quarto, atrás dela, e sentindo que em breve aquelas coisas estariam ali sem ela, para sempre. Recomecei a chorar. Ela disse:
- Minha querida Noêmia, eu posso voltar se quiser. É só dizer ao meu pai que só quero ficar um pouco com eles. Mas eu preciso ir, tenho que conhecer o meu outro pedaço. Mas eu volto, eu prometo. Eu prometo!
Meus sentimentos se mesclavam, eu não entendia o que estava acontecendo comigo. Às vezes tinha ódio de Matilde, às vezes eu a amava apaixonadamente. Tinha vontade de bater nela, e também tinha vontade de ficar o tempo todo só olhando para ela, para nunca mais esquecer-me de como ela se parecia.
De repente, uma ideia me ocorreu: será que Carla sabia das intenções de sua filha? Matilde havia me dito que eu era a única que sabia. E se eu contasse para ela? Afinal, se eu o fizesse, seria para o bem de minha amiga.
Quase não dormi à noite, pensando no assunto. Na manhã seguinte, bem cedo, vesti meu uniforme normalmente, como se estivesse indo para a escola, mas no caminho, disse à Maria que precisava fazer uma coisa urgente e que logo estaria chegando na escola. Ela protestou, mas diante da minha insistência e da promessa de que, mais tarde, contaria tudo a ela, hesitantemente, Maria concordou em deixar-me ir. Mas tive que dizer a ela que ia conversar com Carla, que Matilde não podia saber, e como aquela era a única hora que Carla estaria em casa sem Matilde, eu não poderia perder a oportunidade.
Quando cheguei, como eu planejara, Matilde tinha ido para a escola. Carla ficou surprêsa em me ver, e mandou-me entrar.
Fui logo direto ao assunto:
- Carla, é verdade que a Matilde é meio-fada?
 Ela parecia já estar esperando por aquela pergunta.
- É.
Fiquei esperando um longo relato de como ela tinha sido concebida, mas Carla não disse mais nada, permanecendo calada, me olhando. Continuei:
- Tudo bem se não quer me contar detalhes. Eu acredito em você. Mas você tem que saber que ela está planejando ir embora para sempre.
- Eu sei.
Quase gritei:
- E você não vai fazer nada?
- Claro que vou; eu vou com ela.
Tudo começou a rodar. Meu plano falhara. O que fazer? Quem poderia impedi-las? Narciso, talvez?...
Sabia que, se corresse, eu ainda o encontraria em casa. Saí pela porta afora como uma louca, em direção à casa da floresta, desobedecendo a promessa que fizera a meus pais de nunca mais voltar lá sozinha. Encontrei-o fechando a porta da casa. Eu estava ofegante e mal conseguia falar. Ele me levou para dentro, deu-me um copo d'água e fez com que eu me acalmasse. Mas antes que eu dissesse qualquer coisa, foi logo falando:
- Eu disse que você aprendesse a respeitar as decisões das pessoas. Você fez muito mal, Menininha.
- Meu nome é Noêmia! - Gritei.
- Pois bem, Noêmia. E tem uma coisa que você precisa saber: eles me aceitaram de volta. Eu vou embora também, junto com elas. Não tem nada que eu possa fazer por aqui. Não pertenço mais a este mundo.
Ele parecia, finalmente, desde que o conhecera, muito tranquilo. Quase feliz.
- Agora, vá para a escola. Você já está bem atrasada.
- Quero ir também.
- E deixar seus pais aqui? E todos os seus amigos?
- Matilde é minha amiga. Minha única amiga. E meus pais têm Maria.
Suavemente, ele deslizou as pontas dos dedos pelo meu rosto. Um calafrio percorreu minha espinha, uma sensação maravilhosa.
- E se eu prometer para você que volto daqui a onze anos?
Meu pequeno coração tornou-se muito grande, e transbordou. Era tudo o que eu queria.
- Mas Matilde e Carla voltarão também?
- Ela não prometeu para você?
Concordei com a cabeça.
- Você vai me esperar? - Ele perguntou.
- Eu juro que sim.
- Então, cresça.



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