domingo, 10 de fevereiro de 2013

No Escuro da Floresta - Capítulo VII





Capítulo VII

À noite, à volta de nossa lareira, ficamos bem juntos, tentando entender tudo o que acontecera. Aquele lugar tinha alguma coisa de muito diferente. Insisti com minha mãe sobre as fadas, e menos incrédula, ela apenas balançou a cabeça. Maria perguntou-me do que se tratava, e fomos todos lá para os fundos da casa, e nos sentamos na área de serviço, olhando ansiosamente para a floresta. Não demorou muito para que as luzes aparecessem.
Exatamente como da primeira vez que eu as vira, elas pareciam dançar e seguiam umas atrás das outras, formando desenhos no ar, como círculos, “oitos”, fileiras sinuosas. Observamos tudo durante algum tempo, e papai , mandando-nos que permanecêssemos onde estávamos, e estando ainda incrédulo – com anos de civilização sobre seus ombros – resolveu checar de perto o que eram aquelas luzes. Mamãe protestou, mas ele disse que estaria bem e voltaria logo.
Vimos quando entrou na floresta, as luzes ainda dançando sobre ele, e desapareceu. Já estávamos mais que aflitas, e começamos a chamar por ele, quando, minutos depois, ele ressurgiu na clareira, ao mesmo tempo que as luzes desapareceram uma a uma.
Sentou-se novamente junto a nós e disse que tudo aquilo era incrível. Lembro-me de suas palavras:
- Não podem ser vagalumes, pois são grandes demais, e parecem seguir uma certa dança, um sincronismo de movimentos que não podem pertencer a nenhum tipo de inseto. Quando olhei dentro da luz, tive a clara impressão de ver um rosto, muito diáfano, pois a luz é forte. Ao mesmo tempo, elas se movem rápido demais para que eu possa afirmar com certeza o que vi.
Mamãe perguntou o que deveríamos fazer a respeito. Ele encolheu os ombros, apenas. Mas , subitamente, ambos pareceram acordar de um sonho, e virando-se para Maria e eu, quase falando ao mesmo tempo, disseram que estávamos proibidas de ir à floresta. Senti como se uma linda flôr dentro de mim murchasse, e pela expressão de Maria, vi que ela sentiu a mesma coisa.
-Mas a Velha Anna falou que eles só saem na primeira noite de lua-cheia!-protestei.
- Não sabemos quem são “eles”, e não sabemos o que pretendem. Portanto, obedeçam e não discutam!
Não ousamos replicar papai.
Na manhã seguinte, fomos todos à cidadezinha fazer compras. Algumas pessoas ainda comentavam o fato, mas parece que aos poucos, tudo aquilo viraria mais uma lenda.
Após as compras, sentamo-nos para tomar café e comer bolo na delicatessen de Carla. Podíamos ver a rua pela vidraça, as pessoas que passavam sem jamais deixarem de se cumprimentar com um sorriso; os jardins e canteiros floridos e bem-cuidados, o comércio próspero, mas ao mesmo tempo, que mais parecia estar preocupado em servir bem do que exatamente lucrar; as ruas de paralelepípedos, de poucos carros, muitas bicicletas e muitos pedestres.
De repente, uma chuva rápida, como se fosse chuva de verão, começou a cair, e um cheiro maravilhoso entrou pela porta da loja quando Matilde abriu-a e entrou correndo, toda molhada, indo abraçar Carla. O cheiro da chuva misturou-se aos cheiros de chocolate e café frescos da lojinha de Carla. Outras pessoas, vestindo suéteres de lã coloridos, entraram e ocuparam as demais mesas. Alguém colocou uma moeda na Juke Box e uma música suave encheu o ar.
Lá fora, a chuva havia parado e um maravilhoso arco-íris aparecera. As cores vibrantes emolduravam o lindo cenário, onde os paralelepípedos brilhavam sob a luz do sol, que insistia em aparecer apesar do céu cinzento como chumbo. Senti-me melancólica, porque em menos de duas semanas, estaríamos voltando para a cidade, o trânsito, o barulho e a poluição, onde os vizinhos mal se conheciam e os perigos e ameaças não eram apenas supostas fadas na floresta, mas criminosos de verdade.
De repente percebi que papai e mamãe se entreolhavam ternamente, e que ambos pareciam haver chegado a alguma conclusão misteriosa, da qual somente eles partilhavam.
Ao chegarmos em casa, os dois se trancaram no quarto. Minutos depois, eu e minha irmã fomos chamadas por eles, que perguntaram, com muito cuidado, o que acharíamos de morar ali para sempre. É claro, manteriam o apartamento na cidade, caso não desse certo. Poderiam matricular nós duas numa das escolas da cidade antes do início do segundo bimestre.
Mamãe era escritora, e poderia exercer sua profissão dali mesmo, e papai pediria demissão de seu emprego de executivo – do qual já estava cheio – e passaria a fazer o que sempre quis da sua vida, ou seja, abrir uma marcenaria.
Eu e Maria nos abraçamos, dançando e dando vivas pelo quarto. Lembro-me de ter sido aquele um dos dias mais felizes de nossas vidas.
Imediatamente, peguei o telefone e dei à Matilde a boa notícia, enquanto Maria mal podia esperar que eu terminasse a ligação e ela pudesse contar aos seus novos amigos.
Aquele mês que se seguiu foi cheio de novidades: nova escola, mais novos amigos ( embora Matilde fosse sempre a melhor de todos ) , a montagem da marcenaria de papai, que ele instalou em um galpão antigo que ficava bem perto da cidade  - e logo os primeiros trabalhos apareceram, pois ele era realmente muito habilidoso – o computador que chegou da cidade , de nosso apartamento, e foi instalado no quarto de mamãe para que ela pudesse trabalhar e mais um outro, novinho em folha, só para Maria e eu! Agora, em nosso quarto, tínhamos nosso próprio computador e uma televisão.
Tudo era maravilhoso.
Ainda nos sentávamos para ver as luzes na floresta. Às vezes, elas não apareciam.
Demos uma linda festa para comemorar os treze anos de Maria, e convidamos todos os nossos amigos da escola. A noite estava muito estrelada, e pudemos fazer tudo no jardim. Papai instalou uma grande mesa no gramado, que mamãe tratou de encher de bolos, doces, comidas e bebidas variadas, e todos nos sentamos à volta da mesa, outros no gramado, e ficamos ouvindo música, conversando, rindo, dançando. Alguns adultos tomaram um pouco mais de vinho do que deveriam, dançaram mais do que deveriam, mas tudo foi muito divertido e ninguém passou das medidas.
Mamãe estava linda, deslumbrante, num vestido branco de camponesa, e Maria usava um par de calças jeans – sob os protestos de mamãe- tênis e camiseta. Já eu não podia deixar de usar o vestido azul que mamãe encomendara especialmente para a ocasião, totalmente esvoaçante, etéreo, e as flores coloridas, enfileiradas em uma tiara que ela ajeitara sobre meus cabelos rebeldes. Matilde também estava linda, mas vestia uma bata cor-de-rosa toda bordada e calças jeans, como Maria.
Todos vestíamos roupas novas para a ocasião. Todo mundo parecia estar muito feliz, e Maria ganhou muitos presentes, mas eram presentes diferentes dos que ela costumava ganhar quando morávamos na cidade: vasos com flores, biscoitos e chocolates caseiros, livros , chinelinhos macios para usar no quarto, feitos à mão, bijuterias também feitas por quem as presenteara, camisetas pintadas à mão. Tudo  muito lindo, e feito com muito carinho. Tão diferentes dos estojos de maquiagem, jogos eletrônicos, tênis importados caríssimos...
Nós estávamos adorando nossa nova vida.
Havíamos convidado Narciso para a festa. Ele apareceu, mas ainda estava muito triste, e por mais que todos nos esforçássemos para que ele se sentisse à vontade, não passávamos de estranhos para ele. Papai o havia empregado em sua marcenaria como auxiliar, mas ele ainda estava aprendendo a trabalhar com a madeira. Sentia-se muito grato , era sempre muito gentil e educado, mas também muito tristonho. As mulheres solteiras da cidade enxameavam à volta dele como abelhas, mas ele as tratava com polida indiferença.
     Todos na cidade tínhamos feito um acordo entre nós de não tocarmos mais no assunto de seu                             desaparecimento, para não o deixarmos constrangido, e todos cumpríamos o combinado. Assim era Vila Pequena: um lugar onde as pessoas eram unidas e verdadeiras, preocupadas umas com as outras.

Uma das amigas de mamãe nos segredou que Narciso fora visto no cemitério, depositando flores no túmulo da ex-noiva. Parecia muito pensativo, e chorava. Por isso, tentávamos fazer com que ele se sentisse querido. Algumas pessoas o visitavam em sua casa, levando-lhe pratos com bolos e assados, oferecendo suéteres tricotados à mão, cobertores e outros presentes. Ele aceitava, agradecia, convidava-as para entrar. Oferecia um café, mas logo todos percebiam , através do silêncio embaraçador, que o único assunto que pairava no ar era o seu desaparecimento por trinta anos, o que tinha ou o que não tinha acontecido na floresta, e o que acontecera na cidade no tempo em que ele estivera fora. Então, polidamente, as pessoas se despediam dele. Ele as acompanhava até a porta , e era um alívio , tanto para ele quanto para quem o visitara.
Já tarde da noite, após o bolo ter sido partido e as pessoas mais velhas terem se retirado, pairava no ar um doce cansaço, feito de risos, vinho, excesso de guloseimas e um pouco de sono.Mas a noite estava cálida e tão linda que todos queríamos  permanecer onde estávamos. Matilde adormecera docemente na rede que penduráramos entre duas árvores no jardim. Carla a cobrira com uma manta de lã.
As mulheres conversavam em voz baixa e alguns homens fumavam seus cigarros e charutos. Maria estava em seu quarto com alguns amigos, ouvindo música e exibindo o computador. Eu me vi sozinha.
Olhei para o outro lado do jardim e vi quando Narciso se levantou, pegou seu chapéu e dirigiu-se para a estrada.
Não sei o que deu em mim. Talvez a imensa pena que senti de sua solidão, talvez a curiosidade natural de uma criança, quem sabe a vontade de ajudar. Ou tudo isso junto. Mas o fato, é que eu o segui. Ele caminhava rapidamente, e eu tive que correr para conseguir alcançá-lo. Ele ouviu meus passos atrás dele, e talvez por causa de meu vestido azul esvoaçante e de minha figura imprecisa correndo sobre a estrada escura, cabelos soltos ao vento, ele estancou e gritou: “ Fryeda!”
Parei de correr e fui caminhando vagarosamente até onde ele estava. Parei diante dele, que estava ofegante, e vi quando seu riso se apagou aos poucos. A dor em seus olhos fez com que eu segurasse suas mãos nas minhas.
-         Desculpe, não sou Fryeda. Quem é ela? Uma fada?
Ele pareceu confuso novamente. Seus olhos pareciam ver alguma coisa que eu jamais conseguiria enxergar, um mundo onde , com certeza, eu jamais poderia estar. E estavam cheios de dor.  Tanta dor era demais para uma menininha de nove anos, e eu abracei-o pela cintura. Ele chorou, afagando meus cabelos devagar.
- Você é só uma menininha, mas parece muito mais inteligente do que todas aquelas pessoas. Espero que você nunca saiba o que é sair de repente de um mundo que você conhece, deixando para trás todos aqueles que aprendeu a amar. Ser levado para um lugar onde tudo é tão... maravilhoso , e ao mesmo tempo tão diferente, impreciso... e de repente, aparecer novamente em seu antigo mundo para descobrir que todos morreram, que você está só e não pertence mais a mundo nenhum, nem sabe mais quem é.
Ele estava certo: eu era apenas uma menininha, mas eu entendi perfeitamente o que ele tinha acabado de me dizer.
- Mas agora você está aqui, estamos todos com você, e nós o amamos, Narciso.
- Mas talvez seja tarde demais...
Fiquei olhando para seu lindo rosto, e quase me apaixonei, como as mulheres adultas. De repente entendi por que as fadas o tinham escolhido: porque ele era muito parecido com elas. Assim como minha amiga Matilde: linda, selvagem, natural, livre. Uma certeza começou a formar-se em minha cabeça de criança: Narciso também era filho de uma fada! Lembrei-me de ouvir as pessoas dizendo que ele tinha um pai , um avô e um meio-irmão, mas ninguém falou nada sobre a mãe dele. Era isso! Por isso eles o levaram! Narciso era um deles. Uma luz de compreensão passou de mim para ele. Eu sabia que ele tinha lido meus pensamentos, que ele sabia exatamente que eu tinha descoberto toda a verdade a respeito dele. Mas então, por que o tinham mandado de volta?
- Sabe, menininha, eu quis voltar. Tinha alguém aqui que eu amava muito, e eu quis voltar para ela.
- Sua noiva?
Ele assentiu com a cabeça.
- Eles concordaram em me deixar voltar, mas não me disseram nada sobre a diferença na passagem de tempo.
- Mas você não tentou voltar novamente para ... eles?
- Sim. Andei pela floresta durante muitas noites, mas parece que eles me rejeitaram para sempre. Eles nunca fazem alguém prisioneiro contra a vontade.
- A Velha Anna disse que alguns enlouquecem...
- As pessoas são diferentes umas das outras. Algumas são mais sensíveis. Elas acabariam enlouquecendo de qualquer maneira, mesmo se permanecessem por aqui. A mistura genética pode não dar certo.
Não entendi realmente, na época, o que vinha a ser  mistura genética, mas consegui  adivinhar, usando um pouco de intuição e de imaginação.
- Você acha que eles um dia podem me levar com eles?
Ele riu, mas até seu riso era triste.
- Apenas se você o desejar e se eles a quiserem. Mas nunca antes de você completar dez anos.
- Eu não quero...
- Então, não se preocupe.
- Mas a Carla... a Matilde é filha de um dos de seu povo.
- A Carla assim o desejou.  Um dia você pode pedir a ela que lhe conte esta estória. Mas agora eu preciso ir. Volte para casa, menininha.
Ele se virou e continuou seu caminho. Fiquei ainda algum tempo parada na estrada, pensando em tudo o que ele me dissera. Eu estava , ao mesmo tempo, fascinada e assustada.

Um comentário:

  1. A história me pareceu bastante interessante. Outra hora leio mais capítulos. bj

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